sexta-feira, 11 de junho de 2021

Mais 2 filmes interessantes sobre perda de memória

Dando continuidade ao post anterior, gostaria de indicar mais dois filmes muito interessantes que assisti nos últimos meses e que também tratam do tema da perda de memória: 1)  "Memórias de um amor" (Little fish): sensível romance, com pitadas de ficção científica, sobre os impactos de uma epidemia de perda de memória na vida de um casal. Excelente e pouco conhecido filme estadunidense, lançado em 2021 e disponível para aluguel no Google Play; 2) "Apples": filme grego muito interessante e estranho sobre um sujeito que perde a memória e é encaminhado para um bizarro programa de construção de uma nova identidade pessoal. Se você gostou de O lagosta (também estranho e também dirigido por um cineasta grego), certamente vai gostar deste filme, lançado em 2020 e disponível apenas em plataformas "alternativas". #ficaadica

domingo, 25 de abril de 2021

6 filmes inesquecíveis sobre perda de memória

Ainda impactado com o filme Meu pai, que assisti ontem à noite, trago hoje uma pequena lista de 6 filmes inesquecíveis sobre perda de memória. São eles: 1) Amnésia (2000, disponível no Prime Vídeo): clássico do Christopher Nolan sobre um sujeito amnésico envolvido na investigação do assassinato de sua esposa. O filme se tornou célebre especialmente devido à sua edição, que inverteu a cronologia da história, começando pelo fim e terminando pelo começo. Sensacional! 2) Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004, disponível no Telecine Play): outro clássico contemporâneo, dirigido pelo Michael Gondry, sobre um sujeito entristecido pelo fim de um relacionamento que decide recorrer aos serviços uma empresa especializada em apagar memórias. Uma obra-prima! 3) Embers/Apagados (2015, disponível para aluguel no Google Play): filme pouquíssimo conhecido - mas que eu considero genial - sobre um mundo pós-apocalíptico no qual uma infecção teria acabado com a capacidade de memorização dos seres humanos. Aterrorizante justamente por demonstrar o terrível impacto da falta de memória para a humanidade. Uma pérola! 4) Para sempre Alice (2014, disponível na HBOGo): impactante e sensível filme sobre uma renomada professora de linguística que, com 50 anos, começa a perder sua memória e é diagnosticada com a Doença de Alzheimer. Baseado em um livro homônimo, este filme mostra como poucos o impacto de tal doença na própria pessoa e na sua família. 5) Marjorie Prime (2017, disponível no Telecine Play): belo e filosófico filme de ficção científica, pouco conhecido, sobre uma filha e seu marido que decidem recorrer a uma tecnologia de inteligência artificial para recriar holograficamente o seu falecido pai, de forma que esta versão "prime" possa auxiliar sua mãe, uma senhora com Alzheimer, a relembrar seu passado. Um belo filme, repleto de lindos e profundos diálogos, sobre a fragilidade da memória. 6) Meu pai (2020, disponível para aluguel no Belas Artes à la carte): forte concorrente ao Oscar 2021, este filme retrata com muita sensibilidade o processo de deterioração mental de um homem, vivido de forma sublime pelo Anthony Hopkins. Um filme forte, triste e belo. Uma obra-prima!

12 livros sobre o funcionamento da memória


Dando continuidade às indicações bibliográficas, eu trago hoje 12 livros sobre o funcionamento da memória (veja a imagem à cima). Trata-se, na verdade, de uma versão ampliada de uma lista bastante popular deste blog intitulada 10 livros para entender o funcionamento da memória. Seguem algumas considerações sobre esta lista: 1) todos os livros indicados foram publicados no Brasil mas, infelizmente, alguns deles estão esgotados (caso do "Em busca da memória", do Eric Kandel, e do "A arte e a ciencia de memorizar tudo"), estando disponíveis para compra apenas em sebos virtuais; 2) caso você queira apenas ter um panorama geral sobre tema da memória, recomendo especialmente os dois primeiros: "Memória" e "A arte e a ciência de memorizar tudo" (livro maravilhoso com um título horroroso). Já caso queira informações mais detalhadas sobre a psicologia da memória indico especialmente "Os sete pecados da memória", os dois capítulos dedicados ao tema do livro "Psicologia Cognitiva" e um capítulo sensacional do livro "O gorila invisível" intitulado "O técnico que esganou". Finalmente, caso você queira se dedicar à biologia da memória indico o livro do Kandel, o capítulo dedicado ao tema do livro "Neurociências Cognitivas" e também o livro "O presente permanente", que trata em detalhes do famosíssimo caso H.M. 3) dos dois livros do Oliver Sacks sugeridos (e todos os livros do autor são altamente indicados!) eu indicaria especificamente o capítulo "A falibilidade da memória", do livro "O Rio da consciência" - que trata do tema das falsas memórias - e também o capítulo "Marinheiro perdido", do clássico livro "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu" - que retrata o caso de um sujeito que, devido à Síndrome de Korsakov, desenvolveu uma severa amnésia que o impediu de formar novas memórias - tal qual H.M. Já no livro clássico do Luria "Mente e memória" - originalmente intitulado "A mente de um mnemonista"- encontramos um relato oposto, sobre um sujeito que possuia uma memória infalível e ilimitada. 4) o último livro da lista, e que tem o mesmo título do clássico do Kandel, "Em busca da memória", é altamemte indicado para quem quiser entender um pouco melhor a Doença de Alzheimer.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

2 documentários sensacionais - e assustadores!

Nos últimos dias assisti dois documentários sensacionais - e assustadores: 1) Coded bias (2021): importante documentário da Netflix sobre os viéses embutidos nos algoritmos de várias tecnologias. O filme mostra como tais tecnologias - por exemplo, as de reconhecimento facial - reproduzem os preconceitos existentes na sociedade (como de gênero e raça), o que é uma outra forma de dizer que elas não são neutras, como as empresas que as desenvolveram querem nos fazer acreditar. E o motivo para isso é simples de entender: tecnologias são produzidas por pessoas (em geral por homens brancos) e pessoas possuem viéses e preconceitos. A conclusão geral do documentário é de que o maior risco das tecnologias de inteligência artificial não está na possibilidade delas se revoltarem contra os seres humanos (como nos filmes de ficção científica) mas sim delas serem utilizadas por empresas e governos para controlar e oprimir a população - o que já acontece. 2) Welcome to Chechnya (2020): impactante documentário norte-americano, vencedor de inúmeros prêmios, sobre a terrível situação das pessoas LGBTs na Chechênia, uma das repúblicas da federação da Rússia. O documentário acompanha um grupo de ativistas russos que auxiliam jovens gays chechenos a saírem do país para não serem torturados e mortos pela polícia ou pelos próprios pais - o que se tornou uma política de Estado promovida pelo governante da região (Ramzán Kadírov, uma espécie de Bolsonaro checheno) e legitimada pelo governo russo de Vladimir Putin. Um dos pontos altos do documentário é a utilização de uma sofisticada tecnologia de "deep fake" para alterar digitalmente o rosto dos ativistas russos e também dos jovens gays chechenos, de forma a ocultar suas identidades - de outra maneira eles poderiam ser identificados, presos, torturados e até mortos pelo governo russo. Enfim, trata-se de um documentário muito doloroso de assistir e que traz uma importante denúncia sobre a absurda e terrível situação das pessoas LGBTs na Rússia. "Welcome to Chechnya" está disponível para aluguel em várias plataformas, caso da Google Play. Recomendo ambos documentários fortemente!

sábado, 17 de abril de 2021

7 filmes protagonizados por cientistas mulheres

Aproveito a proximidade do fim-de-semana e a estreia, na Netflix, do filme Radioactive - que retrata a história da Marie Curie, cientista polonesa naturalizada francesa e que foi vencedora de dois Prêmios Nobel - para indicar outros 6 filmes protagonizados por cientistas mulheres. São eles: 1) Na montanha dos gorilas (1988); 2) Temple Grandin (2010); 3) Estrelas além do tempo (2016); 4) Contato (1997); 5) Aniquilação (2018) e 6) A chegada (2016). Uma observação importante é que os três primeiros filmes retratam cientistas reais ao passo que os três últimos retratam cientistas fictícias. Outra observação é que de todos estes 6 filmes o único que eu considero mediano é o Estrelas além do tempo - os demais eu avalio como excelentes! Quanto à Radioactive eu tive oportunidade de assistí-lo ontem e minha avaliação é a seguinte: a história real que o inspirou é sem dúvida fascinante e importante de ser retratada no cinema - até para que as novas gerações possam conhecer um pouquinho da vida e do trabalho da Marie Curie. Mas, enquanto obra cinematográfica, o filme é, na minha opinião, péssimo, tanto na abordagem de seu processo científico quanto no retrato de sua vida pessoal. Não achei o filme uma catástrofe completa mas ele está muito longe de fazer jus ao tamanho e a importância de sua protagonista. 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

6 livros sobre a história da psiquiatria

E finalmente chegamos à última lista da semana... Desta vez eu trago 6 livros sobre a história da psiquiatria (veja imagem ao lado). E como fiz com as outras listas gostaria de trazer também alguns comentários sobre alguns dos livros: 1) o primeiro da lista, Psiquiatria: uma história não contada é uma espécie de biografia chapa branca da psiquiatria. Escrito pelo Jeffrey Lieberman, que foi presidente da Associação Psiquiátrica Americana, este livro traz a narrativa "oficial" de que, apesar das boas intenções, tudo era trevas no campo da psiquiatria até o advento dos psicofármacos na década de 1950. A partir de então o sol passou a brilhar e todos foram felizes para sempre. Segundo Lieberman, com a revolução farmacológica "pela primeira vez em sua longa e famigerada história, a psiquiatria podia oferecer tratamentos científicos humanos e eficazes para quem sofre de doença mental". Apesar dessa narrativa fantasiosa, que desconsidera os inúmeros problemas e limites das medicações psiquiátricas, considero que o livro traz informações factuais importantes e não facilmente encontráveis em outras obras; por isso o indico aqui. 2) incluí na lista a clássica obra História da loucura, do Foucault, mesmo compreendendo ela abrange muito mais do que a história da psiquiatria; ainda assim o nascimento desta especialidade médica constitui, em sua narrativa, um ponto de mudança/ruptura importante na forma de se compreender e tratar a loucura; 3) optei por incluir um livro publicado em inglês, Mad in America, por considerá-lo um livro fundamental sobre o tema. Escrito pelo jornalista Robert Whitaker (mesmo autor do Anatomia de uma epidemia, já traduzido para o português e indicado na lista anterior) este livro deu origem ao importante site Mad in America que, por sua vez, inspirou a criação do site Mad in Brasil e de muitas outras versões em diferentes países. Todos esses sites "Mad in" constituem-se como importantes espaços de reflexão sobre o campo da saúde mental e, também, de critica à psiquiatria "oficial", em especial ao seu biologicismo majoritário. Com relação aos demais livros indico igualmente suas leituras, já que são todos excelentes e fundamentais!

quinta-feira, 15 de abril de 2021

6 livros críticos à psiquiatria oficial

E lá vamos nós para mais uma lista. Desta vez selecionei 6 livros críticos à chamada "psiquiatria oficial" (veja imagem ao lado). Em todas estas obras encontramos importantes e bem embasadas críticas tanto à abordagem diagnóstica descritiva da psiquiatria contemporânea - materializada nos cada vez mais volumosos e abrangentes manuais oficiais de transtornos mentais - quanto à sua abordagem biologicista - que compreende os transtornos mentais como transtornos cerebrais causados por supostos desequilíbrios químicos e que tem na psicofarmacologia a base fundamental do seu tratamento. Importante apontar que estas duas abordagens até o momento não se integraram, como muitos adeptos da psiquiatria biológica gostariam. Tanto é que após o lançamento do DSM-5, em 2013, surgiram uma série de críticas de que continuava faltando a este manual um maior embasamento na biologia, em especial nas neurociências. E o motivo para esta "falta imperdoável" é que apesar de todo o investimento em pesquisas cerebrais desde a década de 1990, até o momento não encontraram sequer um marcador biológico confiável para qualquer transtorno mental - o que significa dizer que não identificaram qualquer característica ou alteração no funcionamento e na estrutura cerebrais comuns a todos os portadores de determinado transtorno. A consequência disso é que o grande sonho dos psiquiatras biológicos de ter exames objetivos que os auxiliem no processo de diagnóstico - como ocorre em outras áreas da medicina - não apenas não se concretizou como está muito longe de se concretizar. Parece que quanto mais tentam eliminar a psiquê da PSIquiatria mais essa subjetividade "incômoda" insiste em se fazer presente. Da mesma forma, o sonho de uma pílula mágica também não se concretizou. Por mais que os psicofármacos representem um inegável avanço aos tratamentos utilizados anteriormente na psiquiatria, ainda assim essas medicações estão longe de serem panacéias inofensivas como muitos ainda acreditam. A cada dia surgem mais e mais pesquisas apontando para inúmeros prejuízos de curto e longo prazo relacionados ao uso de certas medicações - sobre isso recomendo a leitura fundamental do livro Anatomia de uma epidemia. Uma questão importante sobre os livros selecionados para esta lista é que eles foram escritos não apenas por críticos "de fora" da psiquiatria, mas também por críticos "de dentro" - este é o caso, por exemplo, do Voltando ao normal, escrito pelo psiquiatra Allen Frances, que foi "simplesmente" o coordenador da força-tarefa do DSM-IV; mas também é o caso do Medicalização em psiquiatria, co-escrito pelo psiquiatra Paulo Amarante e do Psiquiatria no divã, escrito pelo psiquiatra Adriano Aguiar. E estas críticas internas apontam para o fato de a abordagem "oficial" da psiquiatria não ser a única, mas apenas uma dentre tantas. Enfim, caso tenha interesse por esta problemática recomendo fortemente todos esses livros.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

6 livros de introdução à filosofia da mente

Minha entrada nas discussões sobre as neurociências, que hoje é o meu tema de estudos, ocorreu, lá na graduação, pela filosofia da mente - agradeço imensamente ao professor Saulo Araújo, da UFJF, por isso! Considero esta área de estudos e reflexões absolutamente fundamental para qualquer um que se interesse pelos campos da psicologia e das neurociências. E isto porque a filosofia da mente estuda e reflete justamente sobre o chamado problema mente-cérebro, que é uma espécie de atualização do mais antigo problema corpo-alma. As questões sobre as quais os filósofos da mente se debruçam incluem: o que é a mente? De que forma a mente se relaciona com o cérebro? A mente possui uma natureza diferente do cérebro e do restante do corpo? Se a mente é criada pelo cérebro, como isso ocorre? E foi pensando na importância de tais reflexões para interessados em psicologia e/ou neurociências que eu fiz mais essa lista , com 6 livros de introdução à filosofia da mente, todos publicados e disponíveis em português (veja imagem ao lado). Alguns esclarecimentos sobre a lista: 1) meu livro preferido dentre todos esses é o primeiro, Mente: conceitos-chave em filosofia, que é um livro super-claro e ao mesmo tempo aprofundado sobre o tema, 2) coloquei nesta lista apenas um livro do João de Fernandes Teixeira, Como ler filosofia da mente, mas eu poderia indicar inúmeros outros, já que ele é o principal autor brasileiro sobre o tema; escolhi esse por ser o mais simples e introdutório; 3) descobri o livro Filosofia: textos fundamentais comentados (o terceiro da lista) por uma indicação do @psi.fsquestt em um de seus cursos - e fiquei encantado. Na verdade este é um livro de introdução geral à filosofia mas ele possui um capítulo específico sobre filosofia da mente (intitulado Mentes e corpos) que não apenas faz uma ótima introdução ao tema como ainda inclui, na íntegra, vários textos clássicos de área, em ótimas traduções. Sensacional! Quanto aos demais livros, são todos igualmente excelentes mas se eu tivesse que indicar apenas três eu indicaria os 3 primeiros. #ficaadica

12 livros sobre a história das neurociências


Segue aí mais uma lista de indicações bibliográficas (veja imagem acima). Desta vez eu trago uma série de livros dedicados à história das neurociências. Na verdade o mais correto seria falar em "história das intervenções, reflexões e estudos sobre o sistema nervoso" já que o campo das neurociências foi constituído e institucionalizado somente na década de 1960 nos Estados Unidos. Parafraseando uma famosa frase do Hermann Ebbighaus é possível dizer que as neurociências - como a psicologia - possuem um longo passado, ainda que uma história curta. Grande parte dos livros indicados tratam deste longo passado, anterior à constituição do campo neurocientífico, mas alguns deles também tratam, brevemente, de sua história curta. Como ocorreu na última indicação bibliográfica, grande parte dos livros sobre esse tema estão disponíveis apenas em inglês, infelizmente. Portanto, para a presente lista selecionei quatro livros publicados em português, um em espanhol e sete em inglês. Dentre aqueles publicados no Brasil indico fortemente o primeiro, Duelo dos neurocirurgiões, um excelente e acessível livro de divulgação científica sobre o passado dos estudos cerebrais. Se eu tivesse que indicar apenas um livro para quem quiser adentrar no tema eu indicaria esse - e também, como complemento, A história da neurociência, que é praticamente um livro didático sobre o tema (e, até por isso, bastante simplista em diversos aspectos). Outro livro bastante acessível é o Historia de la neurociencia, que faz um percurso bem abrangente sobre o tema, tratando das reflexões e estudos sobre o cérebro desde a Grécia Antiga até os dias atuais. Já em inglês eu indicaria fortemente os dois últimos: livros soberbos, super-completos e recentes sobre o tema. Mas se eu tivesse que indicar apenas um destes dois livros eu indicaria o The idea of the brain: a story, lançado em 2020 e que é uma obra-prima. Enfim, caso você se interesse por estes temas (que me interessam muito) estas são as sugestões que eu daria. #ficaadica

segunda-feira, 12 de abril de 2021

12 livros de neurociência crítica

Dando continuidade às indicações bibliográficas gostaria de indicar hoje 12 livros que trazem visões críticas ao campo das neurociências e, especialmente, a certos neuro-discursos, que possuem, atualmente, grande visibilidade e legitimidade. Todas as obras indicadas trazem questionamentos à certos usos e interpretações dos achados neurocientificos que, por vezes (muitas vezes!), caem em perigosas e equivocadas formas de reducionismo. Importante apontar que nenhuma destas obras pretende desconsiderar o valor da pesquisa neurocientífica mas todas acreditam na importância da critica para o avanço desta e de todas as ciências. Não se trata, portanto, da critica pela crítica, mas da critica que tenta trazer complexidade à uma ciência que se dedica a estudar um objeto complexíssimo: o sistema nervoso - que, cabe apontar, inclui o cérebro, mas não se resume a ele. A proposta do campo da neurociência critica e de outras abordagens críticas começa justamente por re-inserir o cérebro e o sistema nervoso numa teia de relações que envolve o restante do corpo, a mente (que se relaciona com o cérebro mas não se reduz à ele) e também os ambientes físico e social que nos envolvem e nos constituem. Esta visão em rede, por sua vez, traz como consequência o entendimento de que não basta analisar o cérebro e o sistema nervoso para se compreender determinados fenômenos psíquicos e sociais - ao menos não em suas totalidades. Enfim, o que todos estes livros pretendem é trazer complexidade para fenômenos e conceitos que, muitas vezes, tem sido apresentados e explicados de forma excessivamente simplista e reducionista - no sentido negativo do termo. Incluí nesta lista 3 livros publicados em português (o meu, inclusive) e 9 livros estrangeiros. E o motivo desta disparidade é que, de fato, existem pouquíssimas publicações em português sobre esta temática que, igualmente, é pouquíssimo estudada em nossas pós-graduações. Caso você tenha interesse em adentrar e se aprofundar neste campo da neurociência crítica sugiro que comece pelos livros em português e, posteriormente, avance para as leituras estrangeiras.

9 filmes críticos à indústria farmacêutica

Um dos posts mais acessados deste blog é o Top 5 - Filmes críticos à indústria farmacêutica, que publiquei dez anos atrás, em 2011. Pois decidi atualizar essa lista, acrescentando filmes que assisti mais recentemente - e este é o resultado (veja imagem ao lado): 9 filmes no total, sendo 3 filmes de ficção e 6 documentários. Alguns desses filmes estão disponíveis nas plataformas de streaming (caso, por exemplo, do Take your pills, lançado pela Netflix) mas outros eu não saberia indicar exatamente onde podem ser vistos - recomendo, nesse sentido, o aplicativo JustWatch. Uma consideração importante é que muito embora a indústria farmacêutica tenha o seu valor e a sua importância- e a produção de vacinas para Covid-19 deixou isto muito claro - não podemos nos esquecer de que tal indústria (como, de fato, todas as indústrias) tem como objetivo central o lucro e não propriamente ou não necessariamente a saúde das pessoas. E este objetivo financeiro faz com que as empresas farmacêuticas tomem uma série de atitudes bastante questionáveis eticamente, especialmente no que diz respeito ao marketing dos seus produtos - e isto fica bastante claro no caso dos remédios psiquiátricos, cuja estratégia de venda inclui o marketing dos transtornos mentais e não apenas dos produtos voltados para tratá-los. Muitos dos filmes indicados aqui exploram, aliás, tais estratégias. Recomendo ainda, como complemento, a leitura de alguns livros, especialmente caso você tenha interesse em compreender melhor os métodos utilizados pelas empresas farmacêuticas para aumentar suas vendas e diminuir os custos envolvidos no desenvolvimento de seus produtos. Em português eu destacaria A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, livro clássico da médica britânica Márcia Angell. Já em inglês indico fortemente Bad Pharma, do psiquiatra britânico Ben Goldacre (autor também do livro Bad Science, já publicado no Brasil com o título Ciência picareta) e Drugs for life, do antropólogo norte-americano Joseph Dumit.

14 filmes fundamentais para pessoas interessadas no campo da saúde mental


A página do Instagram @saudementalcritica me indicou, em um dos seus stories, como alguém que poderia sugerir bons filmes para seu seguidores. Pensando nisso - e de forma a não decepcionar o criador da página - fiz uma pequena lista de 14 filmes fundamentais para quem se interessa pelo campo da saúde mental - sendo 8 filmes ficcionais (muitos baseados em histórias reais) e 6 documentários (quase todos brasileiros). Muitos outros filmes poderiam ser indicados mas escolhi apenas aqueles que considero os mais relevantes. A lista inclui desde clássicos (como Um estranho no ninho, Laranja Mecânica e Bicho de Sete cabeças) até filmes mais recentes (como Nise, Distúrbio e Terapia de risco). Dentre os documentários incluí um único estrangeiro (Sicko, do Michael Moore) que embora não trate diretamente do tema da saúde mental, aponta para importância de sistemas públicos de saúde, caso do SUS. Uma observação importante é que alguns destes filmes são facilmente achados em plataformas de streaming enquanto outros somente em plataformas "alternativas". Enfim, deixo aí algumas dicas para quem se interessar.

6 livros críticos ao neurossexismo

Estou finalizando a leitura do recém-lançado livro Gênero e os nossos cérebros, da neurocientista Gina Rippon e, ao invés de fazer uma resenha deste livro específico (que achei sensacional!) pensei em indicar algumas obras que tratem da questão do neurossexismo - veja imagem ao lado. Este termo, criado pela psicóloga Cordelia Fine e utilizado inicialmente em sua clássica obra Delusions of Gender (lançada em 2010 e traduzida para o português como Homens não são de Marte, mulheres não são de Vênus) diz respeito às interpretações dos achados neurocientíficos que explicam ou justificam os estereótipos de gênero, socialmente construídos. Todos os livros aqui indicados trazem importantes e bem fundamentadas criticas às teorias e interpretações supostamente científicas que explicam as diferenças de gênero recorrendo apenas ou fortemente à Biologia. Segundo tais teorias, homens e mulheres seriam essencialmente diferentes por terem genes e cérebros completamente distintos, e mesmo opostos, desde a concepção - o que explicaria os diferentes comportamentos e aptidões entre os gêneros. As autoras dos livros indicados se opõem com veemência à esta interpretação, mostrando, com muitos dados científicos, que se homens e mulheres são diferentes isto não se deve a diferenças essenciais/biológicas, mas às diferentes experiências generificadas a que homens e mulheres estão expostos desde o nascimento - e até mesmo antes, basta prestar atenção nos tais "chás de revelação". O conceito de neuroplasticidade é fundamental nesta nova interpretação dos dados científicos por apontar justamente para o fato de os cérebros (e, mais amplamente, as pessoas) serem formados no e pelo mundo - e se o mundo divide desde brinquedos até profissões em função do gênero, a tendência é que as pessoas acabem seguindo e perpetuando tais divisões. Como bem afirma Gina Rippon "precisamos examinar com muita atenção o que acontece tanto fora quanto dentro da cabeça. Não podemos mais engessar o debate sobre as diferenças sexuais entre natureza versus criação - precisamos reconhecer que a relação entre um cérebro e seu mundo não é uma via de mão única mas um fluxo de tráfego constante em mão dupla".

OBS: eu também trato desta questão do neurossexismo nos meus dois livros. No primeiro, "O cérebro vai à escola" eu aponto, no terceiro capítulo, para a forma essencialista como os livros sobre neurociência voltados para educadores tratam do tema das diferenças de gênero. Já no Você não é seu cérebro!, há um capítulo intitulado "Desconstruindo Marte e Vênus: reflexões sobre neurossexismos e neurofeminismos", no qual eu tento resumir toda esta discussão.

Homenagem à Contardo Calligaris

No último dia 30 de Março faleceu Contardo Calligaris, psicanalista e autor de um pequeno-grande livro intitulado Cartas a um jovem terapeuta - e de muitos outros. Eu não sou psicanalista nem, de fato, muito afeito à abordagem psicanalítica (embora goste dos escritos mais sociológicos de Freud), mas este livro foi extremamente marcante na minha formação e me ajudou muito em meus primeiros momentos como terapeuta. Gosto desse livro especialmente porque ele não é voltado apenas para psicanalistas, mas para terapeutas em geral e para estudantes de graduação que almejam um dia se tornarem terapeutas. Sua abordagem não ortodoxa e não voltada apenas para convertidos à psicanálise me encantou desde a primeira vez que li. E desde então já o reli algumas vezes e sempre me surpreendo com suas reflexões, resultado de anos de prática clínica. Aliás, esta experiência clínica do autor transborda em seus escritos, inclusive neste livro. Fica totalmente claro ao leitor que a obra foi escrita por alguém que não apenas domina uma série de teorias (o que é importante mas insuficiente para a prática clínica) mas que também atende dia após dia, ano após ano, inúmeras pessoas com suas dores, suas alegrias e suas contradições. Sua abordagem pé-no-chão é o que mais gosto neste livro, e é justamente o que sinto falta em grande parte dos livros de/sobre psicoterapia, nos quais as discussões teóricas, às vezes terrivelmente abstratas, ganham sempre mais destaque do que o arroz-com-feijão da psicoterapia, que é a escuta, o acolhimento e a empatia - elementos fundamentais que compõem ou deveriam compor qualquer prática psicoterapêutica, independente da abordagem do terapeuta. A postura não ortodoxa de Calligaris, que o permite circular por áreas e saberes, atingindo assim pessoas de fora da comunidade psicanalítica, é algo que trago comigo. Penso, como ele, na abordagem terapêutica como um norte possível, não como uma camisa de força ou como algo que traga todas as respostas - pois nenhuma teoria ou abordagem jamais trará. Enfim, Contardo Calligaris fará falta... foi um grande sujeito e um fantástico escritor, que trouxe imensas contribuições para a área psi no Brasil e no exterior. Lamento profundamente sua morte!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sobre o Big Brother e o poder das circunstâncias

Já que está todo mundo falando de Big Brother, eu gostaria de falar também. Mas como eu não acompanhei sistematicamente nenhuma edição - nem mesmo a atual - pretendo fazer aqui apenas algumas considerações gerais sobre o programa, pensando nele como uma espécie de experimento nada ortodoxo de psicologia social - um experimento que, cabe apontar, não seria jamais aprovado por qualquer Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. De toda forma, é fato que muitos experimentos clássicos em psicologia social se assemelham imensamente a "pegadinhas" e a "reality shows" na medida em que que buscam analisar reações espontâneas dos participantes diante de determinadas situações artificialmente concebidas - e uma questão importante sobre os reality shows que já vale à pena apontar é que por mais artificiais que sejam as situações criadas pela direção do programa, de fato há sempre algo de "reality" em jogo, já que seria impossível aos participantes agir de forma totalmente autocontrolada ou dissimulada 24 horas por dia, especialmente após algum tempo de confinamento. Uma outra questão, amplamente demonstrada por inúmeros experimentos em psicologia social, é que todos somos profunda e continuamente influenciados pelas circunstâncias - e isto vale tanto para os participantes do Big Brother quanto para cada um de nós. A principal diferença, nesse caso, é que eles, ao contrário de nós, estão vigiados todo o tempo por dezenas, talvez centenas de câmeras que captam (quase) tudo o que falam e fazem e que transmitem todo esse imenso conteúdo para quem quiser assistir. Mas com relação ao poder das circunstâncias de influenciar e, de fato, moldar o nosso comportamento, estamos todos no mesmo barco. Como bem afirma o psicólogo social Sam Sommers no sensacional livro O poder das circunstâncias, "o mundo que nos rodeia está constantemente nos influenciando, colorindo a forma como pensamos e orientando como nos comportamos. No entanto, raramente notamos".

E nós raramente notamos as circunstâncias que nos influenciam pelo mesmo motivo pelo qual se imagina que os peixes não notem a água ao seu redor: devido a um processo quase inevitável de naturalização das forças que nos envolvem. Como afirma Sommers "nosso esquecimento típico sobre o poder das circunstâncias surge porque a maior parte de nossa existência diária ocorre em ambientes familiares, nos limites da rotina conhecida. É preciso o choque do desconhecido para lembrar o quão cego você é ao seu ambiente de sempre". O Big Brother, neste sentido, se constitui como um ambiente novo - e, portanto desconhecido - para seus participantes e, justamente, por isso, revela de uma forma bastante singular o poder das circunstâncias de moldar o self e o comportamento. É muito comum, nesse contexto atípico, que as pessoas ajam de uma forma diferente de como gostariam de agir e também de como agiram no passado em suas vidas cotidianas - algumas chegam a se surpreender, depois que saem da casa, com o que fizeram e falaram enquanto estavam lá. E o motivo é que tais comportamentos faziam sentido naquela circunstância específica, mas não em outras circunstâncias. Isto significa também que a ideia, amplamente disseminada, de que os participantes mostram no programa sua "verdadeira face" não faz muito sentido já que nós agimos de diferentes formas em diferentes contextos. Pense por exemplo na forma como você se comporta - isto é, o que você faz e fala e o que não faz e não fala - com seus amigos, com sua família e com seus colegas de trabalho. Muito provavelmente - e os experimentos em psicologia social demonstram isso - você age de formas distintas em cada um destes grupos e a razão é que nós não temos apenas um único e coerente "eu" mas múltiplos, a depender, é claro, das circunstâncias. Como afirma Sommers, nós somos "facilmente seduzidos pela teoria do caráter estável", quando, na verdade, "boa parte do que somos, de como pensamos e do que fazemos é motivada pelas situações em que nos encontramos". Isto não quer dizer que as pessoas não tenham uma personalidade mas sim que aquilo que chamamos de personalidade engloba múltiplas e contraditórias características que afloram (ou não afloram) de acordo com as circunstâncias específicas. Assim, uma mesma pessoa pode manifestar um comportamento mais introvertido em uma situação e um comportamento mais extrovertido (ou menos introvertido)  em outra. Isto não significa, contudo, que a pessoa não tenha uma personalidade mais introvertida mas que em determinadas situações - por exemplo, na presença de pessoas conhecidas - essa característica se aflora menos, dando espaço temporariamente a uma outra faceta. Todos nós, aliás, temos inúmeras facetas que manifestamos ou não manifestamos em circunstâncias específicas. Na casa do Big Brother, por exemplo, os participantes manifestam entre si variadas e, por vezes, contraditórias facetas. No entanto a edição do programa reduz toda esta complexidade ao transformá-los em personagens de uma certa narrativa que a direção pretende vender para o público. E é justamente nessa narrativa ultrasimplificadora da realidade que se encontra o elemento de show do reality show.

Toda esta discussão me traz a uma outra questão: se somos fortemente influenciados pelas circunstâncias isto significa que não somos responsáveis por nossas ações e que a "culpa" de nos comportarmos de determinada maneira é apenas do contexto? É claro que não! Como já deixei claro em diversas ocasiões defendo a existência do livre-arbítrio ainda que entenda que somos contínua e profundamente influenciados por inúmeros fatores que fogem ao nosso controle pessoal. Se não houvesse algum livre-arbítrio, não poderíamos jamais ser responsabilizados e responsabilizar alguém por nada. Como afirma Steven Pinker no livro Tábula Rasa, "se o comportamento não é totalmente aleatório, há de ter alguma explicação; se o comportamento fosse totalmente aleatório, não poderíamos responsabilizar a pessoa em nenhum caso. Portanto, se alguma vez responsabilizarmos pessoas por seu comportamento, terá de ser a despeito de qualquer explicação casual que julguemos cabível, independente de ela invocar genes, cérebro, evolução, imagens da mídia, dúvida sobre si mesmo, criação ou convívio com mulheres briguentas". Tudo isto significa que os participantes do Big Brother são sim responsáveis por tudo o que fazem e falam enquanto estão confinados na casa, ainda que sejam fortemente influenciados por circunstâncias específicas. Penso, nesse sentido, que devemos sempre levar em conta, em nossas análises e opiniões, tanto os comportamentos individuais dos participantes quanto as forças sociais a que eles estão sujeitos - e que influenciam fortemente seus comportamentos embora, repito, não os desresponsabilizem. Como desconsiderar, por exemplo, o efeito da competitividade que permeia todo o programa? Se os participantes são instigados a competir todo o tempo uns com os outros (por pequenos "prêmios" e, especialmente, pelo prêmio principal) como esperar que a regra seja a colaboração? Se o que vale é a racionalidade do cada um por si (pois apenas um vencerá) como esperar que as pessoas ajam de uma outra forma que não atacando com força seus oponentes? E vejam bem que eu não estou negando que haja espaço para colaboração - pois há; estou apenas apontando que a lógica central deste jogo (e de quase todos os jogos) é a da competitividade. E esta lógica certamente influencia o comportamento dos participantes, que tendem a se juntar em grupos especialmente para derrotar outros grupos - o que, curiosamente, os fortalece como indivíduos. E isto, por sua vez, leva o participante à um processo de conformidade e obediência ao grupo ao qual ele se vinculou e também, como consequência, a uma grande animosidade com relação aos indivíduos de fora do seu grupo. Não é de se estranhar, portanto, que ocorram tantas brigas entre indivíduos de grupos "rivais". E o motivo é que eles são - e todos somos - seres fundamentalmente sociais e, exatamente por isso, todas nossas ações e decisões são profundamente influenciadas pelas circunstâncias que nos envolvem.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

"O peso do pássaro morto" e as dores de um vida

Em meu projeto de ler mais ficção, descobri no final do ano passado o livro "O peso do pássaro morto", da escritora brasileira Aline Bei, e o li integralmente de uma só vez, em apenas uma tarde. Com relação à forma, achei o livro bastante peculiar pois ele é uma espécie de romance em formato de poesia ou um romance-poético - ou eu poderia chamar simplesmente de poesia? Não sei - prefiro deixar estas definições para os especialistas em literatura. Já com relação ao conteúdo é possível dizer, sem revelar nada de significativo, que ele trata da vida de uma mulher desde sua infância até a idade adulta. Narrado pela própria protagonista, o livro trata de temas difíceis e dolorosos como a morte, o estupro, a rejeição, o desamor, a solidão e o esquecimento. Se você busca um livro alto-astral com um olhar positivo ou otimista sobre o mundo e a vida, fuja desse. Mas se você estiver disposto ou disposta a um olhar duro e melancólico sobre a vida (e sobre a morte) este livro é, certamente, uma boa pedida. Pessoalmente, gostei muito do livro, embora tenha ficado muito triste ao terminá-lo. Não é definitivamente um livro fácil - não devido ao estilo da autora, mas sim devido aos temas que trata. De toda forma, recomendo muito sua leitura.

Trecho do livro:

“Na escola
em casa
na cozinha
perguntei pra minha mãe:

– o que é morrer?

ela estava fritando bife pro almoço.

– o bife
é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que farão com a sua carne.
quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos, mas tentamos.


almoçamos a morte e foi calado.
enquanto minha mãe lavava louça fui até a casa do seu luís às escondidas, mas não exatamente
acho que minha mãe ouviu
a porta batendo e que era eu
saindo com os meus 8 anos atravessando a rua olhando
pros 2 lados que meu pai me ensinou Cuidado
e batendo na casa do seu luís
pra perguntar. minha mãe deixou eu ir, deve ser
porque morreu uma menina de oito anos e isso
transformou ter a minha idade em ser adulta”

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre "Devs" e a (in)existência do livre-arbítrio

Nós somos livres para fazer nossas escolhas ou aquilo que chamamos de escolha na verdade é determinado por causas anteriores, que fogem completamente ao nosso controle pessoal? Enfim, nós possuímos ou não livre-arbítrio? Tal questão, amplamente debatida no campo filosófico ao menos desde a Grécia Antiga, mais recentemente tem sido analisada também no campo científico - em especial pela física e pela neurociência. Neste último caso, como já apontei em outras ocasiões, tem crescido no interior do campo neurocientífico, especialmente a partir da década de 1980, um discurso que nega a existência do livre-arbítrio sob o argumento de que é o cérebro, no fim das contas, que toma todas as decisões. Segundo esta visão neuro-determinista nós não fazemos de fato qualquer escolha; na verdade aquilo que chamamos de escolha é apenas o resultado de uma série de atividades encadeadas de nossos neurônios e suas sinapses. Pois todas estas questões me trazem à fantástica série de ficção científica Devs, lançada em 2020 pelo canal FX - e infelizmente pouco vista, comentada e analisada no Brasil. Criada por ninguém mais e ninguém menos que Alex Garland, roteirista e diretor de dois clássicos sci-fi contemporâneos (Ex Machina, que já analisei anteriormente, e Aniquilação) Devs tem como protagonista Lily Chan, uma jovem funcionária da megaempresa de tecnologia Amaya, cujo noivo, Serguei, aparece morto, carbonizado, um dia após começar a trabalhar num setor especial e misterioso da empresa, chamado Devs. Lily desconfia que Serguei não ateou fogo em si mesmo, como teriam mostrado as imagens das câmeras de segurança da empresa, e decide investigar o que de fato ocorreu. E com isso ela se vê imersa em uma série de tramas envolvendo, especialmente, os objetivos ocultos da empresa Amaya e de seu criador, Forest - e eu recomendo que você só continue lendo esta análise caso já tenha assistido à primeira temporada da série (ALERTA DE SPOILER). 

Como descobrimos em certo momento, a máquina desenvolvida pela equipe do Devs, sob a coordenação de Forest, tem como um de seus principais objetivos visualizar o passado e o futuro como um filme. Concebida com base no princípio determinista segundo o qual todos os fenômenos da natureza estão conectados por rígidas relações de causalidade, tal máquina tem a capacidade de prever o futuro através de uma complexa - e, ao que parece, completa - análise causal do passado. Trata-se, enfim, de uma máquina capaz de ver (ou simular) tudo, tanto aquilo que ocorreu quanto aquilo que ocorrerá. Em relação ao comportamento humano esta máquina teria o poder, por exemplo, de mostrar o que você estará fazendo amanhã à tarde. Agora, vamos supor que ela mostrasse você matando uma outra pessoa neste horário (como enxergariam os precogs do filme Minority Report). Teria você a liberdade para agir de uma outra forma sabendo de tal previsão? Seguindo as leis deterministas, utilizadas para a elaboração da máquina, não existiria essa possibilidade. O futuro será conforme a previsão independente do que você faça - aliás, você não teria como agir de outra forma em nenhuma situação, o que é uma outra forma de dizer que não existe o livre-arbítrio, pois o futuro já estaria previamente determinado. Na série, esta teoria é colocada à prova quando a equipe do Devs enxerga, através da máquina, Lily atirando em Forest - e, com isso impedindo, por algum motivo que não consegui compreender, a previsão de eventos para além deste momento. Se a teoria determinista estivesse correta não seria possível fazer nada para impedir isso. E então, quase na hora prevista para tal incidente, Forest mostra para Lily a previsão do que ela supostamente fará em alguns instantes. Mas na hora H, contrapondo-se ao que foi previsto, ela age de uma forma ligeiramente diferente. Com isso a teoria determinista é refutada e o livre-arbítrio comprovado. E ainda que ela e Forest acabem morrendo - de uma forma diferente da prevista - a máquina continua funcionando e acaba por ser utilizada para um último objetivo: transportar a consciência de Forest (e também a de Lily) para uma realidade simulada na qual a filha de Forest (Amaya) estaria viva novamente. Neste momento descobrimos o propósito final da máquina de Devs (que significa, na verdade, Deus): mapear o passado e o futuro de forma a criar uma realidade alternativa simulada para a qual algumas consciências seriam transportadas e, assim, imortalizadas - tal como ocorre no episódio San Junipero da série Black Mirror (sobre o qual já comentei anteriormente). Nesta nova realidade, apenas teriam consciência da simulação - e também livre arbítrio para tomar as próprias decisões - Forest e Lily. Para todas as demais pessoas - que não são de fato pessoas, apenas simulações sem consciência de que são simulações - aquela seria a única realidade existente. Aliás, nós também levamos nossas vidas como se esta fosse a única realidade. Nem nos passa pela cabeça que tudo o que vemos e sentimos poderia ser "apenas" uma simulação criada por uma megaempresa de tecnologia. Você, por acaso, já parou para pensar nessa possibilidade?

PÓS-ESCRITO: Em um importante artigo publicado em 2018 pela revista AJOB Neuroscience - denominado The Impact of a Landmark Neuroscience Study on Free Will: A Qualitative Analysis of Articles Using Libet and Colleagues' Methods [que poderíamos traduzir como "O impacto de um estudo de referência em neurociência sobre o livre-arbítrio: uma análise qualitativa de artigos que usaram os métodos de Libet e colegas"] - os pesquisadores Victorio Saigle, Veljko Dubijevic e Eric Racine simplesmente colocaram por terra o argumento utilizado por alguns neurocientistas de que a neurociência já teria provado a inexistência do livre-arbítrio. Tais pesquisadores não provaram, contudo - e dificilmente teriam como provar - que o livre-arbítrio existe; eles apenas demonstram de uma forma bastante consistente que a neurociência ainda não conseguiu provar sua inexistência. Nesta mesma direção, o filósofo Mark Balaguer, na conclusão de sua obra "Livre-arbítrio", publicada pela Série Conhecimento Essencial (The MIT-Press), afirma que "os inimigos do livre-arbítrio costumam exagerar quando apresentam seus argumentos. A verdade é que eles estão longe de saber o suficiente sobre como o cérebro funciona para concluir, com qualquer grau de certeza, que nós não temos livre-arbítrio". E arremata: "A neurociência tem feito progressos verdadeiramente surpreendentes nas últimas décadas. Mas essa ciência ainda está em sua infância. Nós simplesmente não estamos prontos para responder agora a questão do livre-arbítrio". 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan: "Você não é seu cérebro!"

Ontem à noite eu tive a hora de ministrar a Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan, centro universitário sediado na cidade de São João Del-Rei, em Minas Gerais. O evento contou com a participação virtual de mais de 600 pessoas de diversas cidades e instituições do país. O tema que escolhi para minha palestra foi, não coincidentemente, o mesmo título do meu último livro: "Você não é seu cérebro!" e nela eu trago um olhar crítico/realista sobre o campo das neurociências. Caso tenha interesse em assistir minha palestra, ela está disponível na íntegra abaixo - ou diretamente no canal do Youtube do professor da Uniptan Luis Vinicius do Nascimento, a quem agradeço imensamente pelo convite.
 
PS: a palestra tem início aos 32 minutos e 45 segundos do video.

"Normal people" e a chatice das pessoas normais

Segundo o Dicionário Informal, a expressão reme-reme diz respeito à "algo que vai andando devagar, nem bem, nem mal, assim-assim, vai andando como de costume, como sempre, não melhora, nem piora, não acelera, nem para". Pois esta expressão é perfeita para descrever a série Normal people, lançada em 2020 pela plataforma Hulu - e distribuida no Brasil pela StarzPlay. Trata-se de um reme-reme infernal com 12 longos (embora curtos) episódios. Baseada no best-seller homônimo da escritora Sally Rooney - que não pretendo ler - a série acompanha os (poucos) encontros e os (muitos) desencontros dos jovens irlandeses Marianne e Connell, desde o ensino médio até o início vida adulta. A série tem um tom exageradamente triste e dramático, que me incomodou muito. Em certos momentos, diante do chove-não-molha interminável dos personagens, e dos infinitos olhares melancólicos de um para o outro, minha vontade era entrar na tela e gritar para eles: "Pelo amor de deus, fiquem juntos ou se separem logo. Acabem de uma vez com todo esse sofrimento". Mas o sofrência não acaba nunca e só se acentua, o que torna a experiência insuportável em vários momentos. E o que dizer da trilha sonora, que parece ter sido retirada da playlist "Músicas tristes para chorar até dormir", do Spotify? Pra coroar a desgraceira, todos os personagens da série são incrivelmente chatos e desinteressantes - e se eles são as tais "pessoas normais" do título, a única conclusão possível é que as pessoas normais são terrivelmente chatas e desinteressantes, o que faz muito sentido. Por sinal, acho o título da série (e do livro) excessivamente ambicioso e, justamente por isso, equivocado. Afinal de contas, o que raios é uma "pessoa normal"? Não consigo imaginar questão mais complexa e problemática que essa, mas a resposta da série (e, ao que parece, do livro) é que Marianne e Cornell seriam modelos arquetípicos dessa tal normalidade. Mas o meu ponto é: se esses personagens terrivelmente chatos são "pessoas normais" então deus me livre ser normal! 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

"I may destroy you" e machismo nosso de cada dia

Por ser um homem branco, heterossexual e cisgênero eu jamais vivenciei sequer uma vislumbre do preconceito, da discriminação e da violência sofridos todos os dias por mulheres, negros(as), homossexuais e pessoas trans. Os privilégios que eu possuo - e que tento me manter consciente - de alguma forma me distanciam das experiências vivenciadas por inúmeras pessoas que não gozam de tais privilégios. No entanto, eu tento me aproximar o quanto posso de tais experiências, seja por meio de minha atuação clínica - que tem na empatia uma base fundamental - seja através de livros, filmes e séries criados e/ou protagonizados por mulheres, negros(as), homossexuais, pessoas trans, etc. É claro que por mais que eu tente me aproximar destas experiências, uma distância ainda permanece e sempre permanecerá, o que significa dizer que eu jamais saberei exatamente como é ser uma mulher ou uma pessoa negra, homossexual ou trans - até porque não existe apenas uma experiência feminina, negra, homossexual ou trans, mas inúmeras (embora seja possível identificar algumas vivências em comum, como aquelas relacionadas ao preconceito, à discriminação e à violência). Por uma limitação própria de nossa estrutura mental eu jamais compreenderei e sentirei, com toda a profundidade necessária, como é ser uma pessoa diferente de mim mesmo. O máximo que eu posso fazer, nesta busca por compreensão, é tentar me aproximar da vivência deste Outro, seja através da escuta de suas experiências seja através da apreciação de determinadas obras de arte, como aquelas advindas da literatura e do cinema. Todas estas reflexões me trazem, nesse sentido, à série I may destroy you, lançada em junho de 2020 pelo canal HBO. Criada, protagonizada, produzida e codirigida pela multitalentosa Michaela Coel (das séries Chewing gum e Black earth rising), I may destroy you conta a história de Anabella, uma jovem escritora londrina, envolvida na escrita de seu segundo livro, que certa noite sai para relaxar e se divertir com os amigos e acaba sendo dopada e brutalmente estuprada por um homem desconhecido no banheiro de um bar. No dia seguinte Bella acorda com um corte na testa mas não consegue se lembrar do que ocorreu e nem de detalhes do estupro e do estuprador; ela tem apenas flashes dos acontecimentos, que lhe invadem a mente de tempos em tempos. Após este acontecimento traumático, Anabella vai gradualmente se dando conta dos inúmeros (e por vezes sutis) abusos e violências que sofreu ao longo de sua vida por ser mulher - e negra. Ao longo desta primeira temporada, composta por 12 curtos episódios, acompanhamos todos os esforços da protagonista para lidar com seus traumas e seguir adiante. Em especial Bella recorre à todo tipo de apoio para enfrentar seus medos e curar suas feridas: inicia uma terapia, passa a frequentar um grupo de ajuda mútua voltado para mulheres vítimas de abusos e violências e, especialmente, conta todo o tempo com o imprescindível suporte de seus amigos queridos. Baseada nas vivências pessoais de sua criadora. I may destroy you trata com muita sensibilidade dos desafios de ser uma mulher negra em um mundo terrivelmente machista e racista. E com isso a série permite tanto a identificação por mulheres que tiveram experiências de abuso semelhantes às vivenciadas pela protagonista quanto o cultivo da empatia por pessoas que não tiveram tais experiências - caso de homens brancos como eu. E este cultivo da empatia pode contribuir, quem sabe, para que nós homens pensemos e repensemos nossas próprias atitudes - e especialmente o impacto de nossas ações e palavras nas mulheres com quem nos relacionamos ou apenas interagimos e, de uma forma geral, nas vidas e subjetividades de todas as demais pessoas com quem nos deparamos ao longo do caminho. 

domingo, 31 de janeiro de 2021

"8 em Istambul" e os desafios da empatia

O título em português da série turca Bir Başkadır - "8 em Istambul" - não é lá muito preciso, já que bem mais do que 8 personagens dominam a narrativa - aliás, eu nem saberia dizer exatamente quem são estes tais 8. O título original, bem mais interessante, remete a um dito popular turco que aponta para algo ou alguém único, peculiar, singular. Pois esta expressão, impossível de ser traduzida, sintetiza muito bem a proposta desta maravilhosa série da Netflix, que é retratar a vida singular de alguns moradores da multifacetada cidade de Istambul, na Turquia. Dentre estes personagens temos Meryem, que pode ser considerada a protagonista da série, já que todos os demais personagens possuem alguma relação, direta ou indireta, com ela: seu irmão Yasin, sua cunhada Ruhiye, sua terapeuta Peri, a terapeuta de sua terapeuta Gülbin, seu líder religioso Hodja, seu patrão Sinan, dentre outros. A série tem início com Meryem se consultando, pela primeira vez, com a psiquiatra e psicoterapeuta Peri em um hospital da cidade. Meryem vinha tendo alguns desmaios e, por isso, foi encaminhada à psiquiatria pelo médico que lhe atendeu inicialmente. E é a partir dessa situação que a série se desenrola - e cabe apontar que não pretendo neste breve ensaio analisar todos os núcleos e histórias da série; gostaria de me focar especificamente na relação de Meryem com sua terapeuta Peri. Como descobrimos logo nos primeiros episódios, Peri é uma mulher ocidentalizada que nutre dentro de si um grande preconceito - e mesmo uma repulsa - com relação à mulheres muçulmanas que usam véu; pois Meryem é justamente uma mulher muçulmana que usa véu, o que constitui, para Peri, um desafio terapêutico e pessoal imenso - tanto que em inúmeras ocasiões Peri relata para sua própria terapeuta e supervisora, Gülbin, dificuldades no atendimento com Meryem, que os psicanalistas poderiam chamar de dificuldades transferenciais. Pois o fato é que, embora habitem a mesma cidade, Peri e Meryem possuem vidas e subjetividades completamente diferentes, como se habitassem mundos distintos. E esta distância - que está mais para um abismo - dificulta imensamente que Peri se conecte com Meryem e sinta empatia por ela. Afinal de contas, como se conectar e empatizar com uma pessoa que representa tudo aquilo que você rejeita? Este, aliás, é um imenso desafio para todos os terapeutas. Eu próprio já atendi e atendo com frequência inúmeras pessoas com identidades e visões de mundo radicalmente diferentes das minhas e isto sem dúvida traz consigo imensos desafios subjetivos. Como me "colocar no lugar" de uma pessoa que pensa e age de forma completamente diferente de mim? Na verdade, o problema é ainda mais complexo que isso, pois diz respeito não apenas àquelas pessoas com visões de mundo muito diferentes das minhas mas, no final das contas, à todas as pessoas. Como saber, por exemplo, se aquilo que um paciente chama de ansiedade ou tristeza ou angústia é exatamente aquilo que eu próprio chamo e sinto? Como já apontei em outras ocasiões - por exemplo, na resenha que fiz do filme A chegada - não temos, de fato, como saber. Este abismo entre a minha própria subjetividade e as demais subjetividades, incluindo aquelas dos meus pacientes, não é facilmente transponível ou superável. No entanto, apesar destas dificuldades, precisamos seguir com o nosso ofício. E também, como Peri, precisamos compreender melhor nossos preconceitos e, na medida do possível, superá-los, de forma que possamos nos conectar verdadeiramente com nossos pacientes. O desafio - para a terapia e para a vida em geral - está em lidar com o outro especialmente naquilo que ele é diferente de nós. Como aponta um famoso provérbio, atribuído ao mestre Paulo Freire, "amar o igual é amar a si próprio. O desafio está em amar o diferente". No caso de uma psicoterapia eu não diria que precisamos amar nossos pacientes - embora isto seja possível e até desejável, dentro de certos limites éticos e profissionais - mas certamente precisamos fazer o que estiver ao nosso alcance para nos conectarmos às suas vidas subjetivas naquilo que elas tem de mais peculiar. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aversão de si: uma resenha do livro O olho mais azul

Há algum tempo comecei a ler o livro Amada, da escritora norte-americana Toni Morrison e achei o início bem difícil e confuso, o que me levou a desistir temporariamente da leitura - que pretendo retomar em breve. Daí eu comentei sobre essa dificuldade em uma rede social e uma colega me sugeriu iniciar a obra de Morisson por seu primeiro livro, O olho mais azul, publicado originalmente em 1970. E foi o que fiz. E de fato achei a leitura deste livro bem mais tranquila e fluida, ainda que se trate de uma narrativa fragmentada e não-linear - como a própria autora explica no posfácio, ela quis "quebrar a narrativa em partes a serem reunidas pelo leitor". Pois a trama de O olho mais azul gira ao redor da família Breedlove, uma família afro-americana pobre composta pela mãe (Polly), pelo pai (Cholly) e pelos dois filhos (o garoto Sammy e a garota Pecola, que é a protagonista da história). Trata-se, sem dúvida, de uma família bastante problemática: o pai bebe demais e frequentemente bate na mãe e abusa das crianças; já a mãe dedica todo o seu amor e cuidado à família branca para quem ela trabalha há décadas; e as crianças são, assim, negligenciadas e maltratadas e sofrem com tudo isso. Pecola sofre ainda, terrivelmente, por ser considerada feia tanto por sua família quanto por seus vizinhos e colegas. Por ter o cabelo crespo e a pele mais escura que grande parte de seus colegas de escola, Pecola é frequentemente ridicularizada, humilhada e rejeitada pelas pessoas ao seu redor. E por conta disso, ela sonha e deseja ardentemente possuir os olhos azuis, como as meninas que ela (e toda a sociedade) consideram bonitas - aliás, Pecola não deseja simplesmente ter os olhos azuis; ela quer ter os olhos mais azuis dentre todos os olhos azuis. No posfácio do livro, Morisson afirma que este desejo tem relação com uma forte "aversão por si mesma", de origem racial, que acomete Pecola e grande parte das garotas negras - e das pessoas negras em geral. Na narrativa da autora, tal aversão ou desvalorização de si diz respeito a algo que, como o próprio racismo, acaba por persistir, de geração em geração, por meio da reprodução dos valores (e desvalores) dominantes. Mas este é apenas um dos inúmeros temas e questões tratados pela autora - a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel - neste excelente e complexo romance. Recomendo fortemente!

Trecho do livro: "Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: “Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos” (...) Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse".

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Tão perto, tão longe: breves apontamentos sobre o livro "Impressões de Michel Foucault"

Taí um ótimo livro para quem quer se aproximar das ideias de Michel Foucault. Nesta obra autobiográfica, o renomado filósofo Roberto Machado conta saborosas histórias sobre sua convivência com Foucault na década de 1970, no Brasil e na França - e entrelaça tais histórias com preciosos apontamentos sobre a obra foucaultiana, da qual é um dos maiores especialistas brasileiros. Gostei especialmente das reflexões de Machado sobre sua relação ambígua com Foucault, ao mesmo tempo próxima e distante, baseada tanto na admiração como no medo. Como aperitivo trago um belíssimo trecho do capítulo Proximidade e distância: "Uma extrema doçura transbordava de seus olhos, de sua voz, de seus gestos, de seu sorriso. Sua delicadeza sempre foi grande comigo. Talvez eu até não lhe tenha correspondido direito, por timidez, medo, respeito. Nos momentos de maior intimidade, quando estava a alguns centímetros dele, não deixava de me sentir a quilômetros. Também pudera. Ele era a pessoa que mais havia contribuído para o meu pensamento, transformado minha vida. Alguém de quem eu havia lido quase tudo. Sobre quem estava escrevendo. Que havia traduzido. Como não ficar intimidado? Mas, mesmo tendo sido sempre delicado comigo, ele tinha um lado terrível. Talvez, além de generoso, fosse cruel. Alguém que metia medo. Seus olhos argutos, que, sem arrogância, pareciam perscrutar uma verdade secreta, sua boca, crispada, prestes a expressar uma visão singular desconcertante numa voz forte, metálica, suas posturas improváveis, incomuns, atípicas, seus gestos vivos, que orquestravam com exatidão pensamentos exigentes, podiam destruir alguém sem esforço. Sentia-se que era perigoso".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

"A assistente" e a saúde mental no trabalho

No sensacional filme "A assistente", recém-lançado pela Prime Video, acompanhamos, do início ao fim, um dia de trabalho na vida de Jane, uma jovem secretária de uma grande e renomada produtora de cinema. Sua rotina, extenuante, é composta por milhares de pequenas funções ligadas à burocracia, à organização e à limpeza do escritório  e, especialmente, ao gerenciamento da vida profissional (e também pessoal) do poderoso chefão da companhia. Pra piorar, Jane é invisibilizada e diminuída pela equipe e frequentemente humilhada por seu chefe e por outros colegas de trabalho - todos homens, claro. Aliás, o ambiente da empresa é totalmente impregnado de uma machismo indisfarçável, o que pode ser observado não apenas na forma humilhante como Jane é tratada mas também na maneira como o chefão assedia, inclusive sexualmente, as novas funcionárias e candidatas a atrizes. Igualmente sintomático deste ambiente machista é a conivência do setor de RH da empresa com relação ao comportamento sistematicamente assediador do chefe. E pra piorar ainda mais a situação de Jane e das demais funcionárias assediadas moral e/ou sexualmente pelos homens da empresa, há uma espécie de cobrança social para que elas sejam gratas ao emprego que conseguiram - afinal de contas, elas fazem parte da prestigiosa indústria cinematográfica norte-americana, ainda que no nível mais baixo da hierarquia. Mas para além das discussões sobre machismo e assédio no ambiente de trabalho, já amplamente analisadas em outras resenhas do filme, gostaria aqui de trazer um outra questão. Seria possível, em um ambiente tóxico como o da empresa retratada, uma funcionária como Jane ter algum nível de saúde mental? Porque se a saúde mental depende apenas ou fortemente  do indivíduo, então cabe somente a ele buscar maneiras de se "blindar emocionalmente" de tal toxicidade e se sentir bem apesar de todos os abusos e opressões. A grande questão é que a saúde mental não depende apenas do esforço e da força de vontade do indivíduo, estando fortemente relacionada ao ambiente em que este se encontra. Não é por outro motivo que o sofrimento psíquico (que eu jamais equivaleria à categoria de transtorno mental) provavelmente aumentou consideravelmente neste período de pandemia: porque somos seres relacionais e contextuais e o que acontece conosco e ao nosso redor (seja no ambiente de trabalho seja no mundo como um todo) influencia nossa subjetividade e, portanto, nossa saúde mental. Isto significa que é simplesmente inconcebível imaginar Jane mentalmente saudável em um ambiente tóxico como o que ela trabalha. 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Minha participação no Mad in Brasil Conversatórios: "Em defesa de uma neurociência crítica"

Ontem à noite tive à honra de participar do "Mad in Brasil Conversatórios", que foi transmitido pelo Youtube. Para quem não conhece o Mad in Brasil, trata-se da versão brasileira do site Mad in America, criado pelo jornalista norte-americano Robert Whitaker, autor, dentre outros, dos livros Mad in America (infelizmente não traduzido para o português) e Anatomia de uma epidemia: Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, lançado pela editora Fiocruz em 2017. Coordenado pelo Fernando Freitas e pelo Paulo Amarante, ambos ligados à Fiocruz, o Mad in Brasil tem o propósito de trazer discussões críticas especialmente sobre o campo da psiquiatria. De acordo com o site, o MIB tem a missão de ampliar e fortalecer o diálogo entre aqueles que querem "repensar o modelo biomédico de doença e construir um novo paradigma de assistência em saúde mental". E foi com esse objetivo que eles iniciaram, no Instagram, o projeto Conversatórios, que se propõe a dialogar com pesquisadores brasileiros sobre temas ligados ao campo da saúde mental. O primeiro participante, em Outubro de 2020, foi o Fernando Freitas, seguido pelo Paulo Amarante, pela psicóloga Luciana Jamillo e pelo psicólogo Rogério Giannini. Pois agora, no quinto Conversatório, foi a minha vez. O titulo que sugeri para este bate-papo foi "Em defesa de uma neurociência crítica", que não por acaso é o mesmo título de um dos capítulos centrais do meu livro Você não é seu cérebro! E outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema, que lancei em 2020. Caso tenha interesse, assista abaixo (ou diretamente no canal do Youtube do Mad in Brasil) a conversa que tive ontem com a Camila Motta, psicóloga e editora-assistente do MIB. Aproveito para agradecer ao psicólogo Lucas Gonçalves, também da equipe do site, pelo convite.
 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Meu novo livro: "Você não é seu cérebro! e outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema"

Quem me acompanha nas redes sociais (especialmente no Instagram) já sabe que em 2020 eu lancei, pela editora Appris, meu segundo livro, uma coletânea de ensaios intitulada Você não é seu cérebro! e outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema. Na verdade, devido à pandemia eu não pude lançar presencialmente o livro: tive que cancelar todos os lançamentos programados e "lançá-lo" apenas virtualmente. Eu acabei também não escrevendo sobre o livro aqui no blog, o que faço somente agora, quase um ano depois dele ser oficialmente publicado. Antes tarde do que nunca, não é mesmo? Pois bem, o livro é composto por 35 ensaios escritos ao longo dos últimos 10 anos para este blog, e tratam de temas diversos relacionados aos campos da neurociência, psicologia cognitiva e inteligência artificial. Segue abaixo, como um aperitivo, a introdução do meu novo livro:

Todos os 35 ensaios que compõem este livro foram originalmente publicados, ao longo de vários anos, no meu blog Psicologia dos Psicólogos - o que pode levar o leitor a questionar os motivos pelos quais eu decidi publicar, na forma de livro, textos que já estão disponíveis na internet. E eu respondo. Um primeiro (e mais romântico) motivo é que eu sou um apaixonado por livros. Amo ler, amo cheiro de livro, amo visitar livrarias e sebos e, desde criança, eu busco nos livros - e sempre encontro - refúgio, paz, discernimento, informação e sabedoria. Um segundo motivo é que os textos que compõem este livro estão dispersos no blog, espalhados em meio a inúmeros outros textos sobre assuntos diversos. Na seleção dos textos para este livro, escolhi apenas ensaios relacionados às temáticas da neurociência, psicologia cognitiva e inteligência artificial e busquei organizá-los de forma que os textos dialoguem entre si. Por fim, publicar estes 35 ensaios na forma de livro me daria também a oportunidade de revisá-los, corrigí-los e, eventualmente, melhorá-los. No fim das contas alterei pouco dos textos originais mas acabei por incluir inúmeras notas com as referências que utilizei para escrevê-los - o que, na linguagem simplificada e direta de um blog, não faz muito sentido. 

Criado em 2008, logo após eu finalizar a graduação, o blog Psicologia dos Psicólogos - cujo nome foi inspirado em um livro homônimo do filósofo Hilton Japiassu - tem sido, desde o início, um espaço de compartilhamento de reflexões sobre meus temas de interesse, que foram se alterando ao longo do tempo. Inicialmente, utilizei o blog para compartilhar charges e cartuns relacionados ao universo da Psicologia; posteriormente comecei a escrever alguns posts curtos com indicações de livros e filmes; mais à frente, especialmente após 2012 - ano em que ingressei no mestrado - passei a escrever textos maiores e mais profundos sobre temas diversos, em especial sobre as questões que estudava na pós-graduação. Em 2014 finalizei o mestrado e decidi transformar minha dissertação em livro - meu primeiro livro, “O cérebro vai à escola”: aproximações entre neurociências e educação no Brasil, que foi publicado em 2016 pela Paco Editorial. Nesta obra, assim como em inúmeros textos do blog - alguns selecionados para o presente livro - eu analiso os discursos das (e sobre as) neurociências. 

Meu interesse, tanto no primeiro livro quanto agora, continua sendo entender e refletir sobre esses neurodiscursos que possuem, atualmente, grande visibilidade e legitimidade, embora muitas vezes caiam em perigosas e equivocadas formas de reducionismo. De uma forma mais profunda o meu objetivo é refletir acerca de nossa própria humanidade. As perguntas-chave, que guiam praticamente todos os ensaios incluídos neste livro são: quem (ou o que) somos nós? Somos os nossos cérebros? Ou será que somos nossos corpos? Ou nossas mentes? O que, afinal de contas, define nossa identidade? Não pretendo, e nem seria possível, chegar a uma resposta definitiva para tais perguntas, mas eu arrisco algumas respostas, a começar por aquela que dá título ao livro: não, você não é seu cérebro! Mas então quem é você, quem sou eu e quem somos nós? Venha comigo e me acompanhe nesta jornada em busca do entendimento do que somos - e do que não somos.

Gostaria de fazer aqui também algumas considerações sobre o visual do livro. Quando a editora me questionou como eu gostaria da capa, eu respondi que minha única exigência era não ter uma imagem de cérebro. Além de óbvio isto seria equivocado, haja vista que em vários momentos do livro eu crítico a utilização de imagens e pseudoexplicações cerebrais para vender neurocoisas. Mas que imagem, então, colocar? Eu sugeri a eles uma imagem abstrata que retratasse a ideia de que ser humano e ambiente se constituem e se entrecruzam numa rede de influências mútuas onde é quase impossível determinar onde começa um e termina o outro - uma das ideias centrais que eu defendo no livro. Depois de um tempo a editora me enviou esta capa com esta bela imagem abstrata colorida e eu amei (e aprovei) de imediato. A imagem da capa passa justamente a ideia de mistura entre o biológico e o cultural que eu queria passar com o conteúdo do livro. Enfim, ficou exatamente do jeito que eu gostaria que ficasse!

Caso tenha interesse em adquirir meu livro, que está disponível em versão impressa e também ebook, basta clicar aqui. E para ter acesso a uma amostra do livro, clique aqui

E segue abaixo um video no qual eu apresento o livro e algumas de suas discussões: