sábado, 18 de agosto de 2012

Psicólogos em Cartum


Um dos objetivos deste blog sempre foi, além de discutir questões relevantes para a Psicologia brasileira, reunir cartuns, charges e quadrinhos relacionados ao universo psi. Sempre fui apaixonado por desenhos, já tendo inclusive me arriscado como desenhista muitos anos atrás. Em 2008, quando comecei a reunir desenhos para este blog, traduzindo alguns inclusive, não havia nenhum site no Brasil que fizesse tal coisa. Atualmente, existem inúmeros blogs e grupos no Facebook dedicados ao humor sobre Psicologia. Da minha parte, insisto em manter esta atividade colecionista neste espaço em função da minha grande admiração (com um pouquinho de inveja, confesso) pelos artistas que conseguem condensar idéias e reflexões em imagens ao mesmo tempo simples e complexas, que, ao nos fazerem rir, permitem que enxerguemos a realidade de outra forma. Um bom cartum, assim como uma boa obra de arte, leva à reflexão sobre o mundo e sobre nós mesmos. 


Neste sentido, os cartuns protagonizados por psicólogos permitem-nos analisar de que forma os profissionais psi são retratados, e isto provavelmente reflete a representação social dos psicólogos, ou seja, a forma ou as formas como estes são vistos na/pela sociedade. Da análise de alguns desenhos com psicólogos, uma coisa que salta aos olhos é o predomínio quase absoluto da atividade clínica. Dificilmente um psicólogo é representado em outra função. E esta representação certamente é compartilhada por grande parte da sociedade, que compreende psicólogo como sinônimo de psicoterapeuta - e mesmo como equivalente a psicanalista ou psiquiatra (a diferença entre tais profissionais nunca é nítida). Mesmo que grande parte dos profissionais ainda se dedique ao atendimento individual em consultório e que clinicar ainda seja o sonho de grande parte dos que iniciam uma graduação, a psicologia está se tornando, cada vez mais, uma prática institucionalizada. Muitos dos que se formam atualmente, iniciam suas carreiras como psicólogos em empresas, escolas, presídios, instituições de saúde mental ou assistência social, dentre outras. Não que a atividade clínica esteja em baixa - pelo contrário - mas a Psicologia no Brasil, que completa este mês 50 anos de sua regulamentação, está mais multifacetada do que nunca. No entanto, a visão tradicional do psicólogo permanece. 


Outra característica evidente dos cartuns com psicólogos é a absoluta vinculação com a psicanálise. O divã é onipresente e não são raras referências diretas à Freud e à teoria psicanalítica. E mais: a despeito de grande parte dos profissionais, pelo menos no Brasil, serem mulheres, os homens dominam os cartuns, sendo normalmente caracterizados com barba e óculos, à imagem e semelhança do "Pai" Freud. Comumente retratados como seres frios e distantes, quando não sonolentos ou displicentes, os psicólogos se limitam a escutar o sofrimento dos pacientes, permanecendo sentados, de pernas cruzadas, estáticos e impassíveis, com suas canetas e blocos de anotação na mão - ou então com placas do teste Rorschach. Quando falam, limitam-se a fazer perguntas óbvias, dar diagnósticos ("Você é bipolar") ou, então, algum conselho ou prescrição do tipo "faça isso, faça aquilo" para os pacientes. Sua autoridade é evidenciada pelos onipresentes diplomas, sempre pendurados na parede do consultório. No entanto, apesar de posarem de sabe-tudo são, algumas vezes, representados como inseguros, mal-resolvidos e até mesmo "loucos", tal qual seus próprios pacientes. 



Neste estudo clássico, da década de 80, os autores apontam para a descrição mais frequente e recorrente, que é a do "psicólogo louco, pirado, encücado, anormal, desequilibrado, diferente: 'Sinceramente, o psicólogo é visto como um maluco problemático que, além de seus problemas, ainda quer resolver os dos outros'; 'O psicólogo é visto como um indivíduo cheio de problemas que não tem capacidade de resolver o problema de ninguém'; 'Geralmente como um 'ser' estranho e muitas vezes ouve-se dizer 'todo psicólogo é louco'". Nos cartuns, as representações tendem a oscilar entre o psicólogo onipotente e são e o psicólogo impotente e louco, com prevalência da primeiro. Se tais representações refletem ou não a realidade, cabe uma discussão. Mas considero essencial, especialmente neste momento em que comemoramos 50 anos da Psicologia no Brasil, refletirmos o quanto estamos presos a estas representações da nossa profissão. Porque se não o fizermos, corremos o risco de permanecermos engessados pelo poderoso Efeito Pigmaleão.




Um sentido para a vida


Rato de laboratório


Psicólogos no bar

História da Psicologia no Brasil

Em homenagem aos 50 anos da regulamentação da Psicologia no Brasil, disponibilizo abaixo um material que fiz em 2008 sobre a História na Psicologia no Brasil.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um estranho ato de comunhão: normal ou patológico?


Ontem assisti à premiada peça "Ato de comunhão", baseada no famoso e bizarro caso do canibal alemão. Para quem não conhece ou não se lembra da história, segue um resumo (saiba mais aqui e aqui): desde pequeno, o alemão Armin Meiwes tinha o sonho se alimentar de carne humana. Adorava, inclusive a historia do João e Maria, em que a bruxa come o garoto. Por motivos óbvios, reprimiu este sonho... até a morte de sua mãe, quando resolveu, finalmente colocá-lo em prática. Com o nickname de "antropófago", procurou na internet, por dois anos, alguém que aceitasse lhe servir de alimento. E eis que, em 2001, o engenheiro de computação Bernd Brandes, à época com 42 anos, aceitou a oferta, afirmando: "Espero que me ache saboroso". Brandes vai, então à casa de Meiwes e, diante de uma câmera, declara ser o seu desejo ser comido por ele. Inicialmente, Meiwes corta o pênis de Brandes, frita-o, temperando-o com pimenta e alho, e ambos degustam o órgão. Meiwes, então, dá alguns medicamentos para Brandes e, após este apagar, retira-lhe as vísceras e os ossos e guarda sua carne picada no freezer, consumindo-a no decorrer de alguns meses. 

Em uma famosa entrevista (que virou o livro "Entrevista com um canibal") Melves afirma: "Eu salguei o filé de Bernd com sal, pimenta, alho e noz-moscada. Comi ele com croquetes 'princesa', couve de Bruxelas e molho de pimentão verde". Segundo ele, ao comer sua carne, sempre acompanhada de um bom vinho, sentia Bernd incorporando-se ao seu corpo, num verdadeiro ato de comunhão: "A primeira mordida foi com certeza única, indefinível, já que eu tinha sonhado com isto durante trinta anos, com esta conexão íntima que se faria perfeita através desta carne".

Nesta mesma entrevista, Meiwes  afirma ser uma pessoa normal. E, pelo que pesquisei, avaliações psiquiátricas e psicológicas chegaram a esta mesma conclusão. Segundo reportagem do jornal alemão Der Spiegel (traduzida aqui) "Um exame psiquiátrico feito antes do seu julgamento concluiu que ele não é louco, mas tem uma 'alma muito perturbada''. Assim, sendo considerado imputável, ou seja, responsável por seus atos, foi condenado à prisão perpétua. O caso gerou, entretanto, uma polêmica jurídica na Alemanha, já que defensores de Meiwes afirmaram que Bernd queria ser morto, o que não configuraria homicidio, mas sim uma espécie bizarra de suicídio. De acordo com este site,  no segundo julgamento, Meiwes "disse ao juiz que sua fome de carne humana já estava saciada e que estava arrependido de seus atos". Tal argumento não convenceu o júri.

Apesar de se dizer normal, contraditoriamente, o próprio Meiwes afirmou que "se eu tivesse ido a um psiquiatra há alguns anos, provavelmente não teria feito o que fiz.”. Disse ainda: "Eu quero ir para a terapia, sei que preciso, e espero que isto aconteça em algum momento". A despeito de suas crenças sobre si mesmo, uma coisa é certa: o que ele fez não é normal, sob nenhum ponto de vista. O filósofo Georges Canguilhem dizia que a palavra normal traz implícitos dois significados: o primeiro aponta para aquilo que é comum. Sob esta perspectiva, a atitude de Meiwes, assim como a de Brandes, não tem nada de normal, afinal não é comum comer e ser comido - literalmente - por aí. Mas também é óbvio que os dois não são os únicos no mundo a partilharem deste mórbido fetiche. Segundo a reportagem do Der Spiegel, "a polícia estima que em torno de 10 mil pessoas, na Alemanha somente, partilham o fascínio de Meiwes pelo canibalismo". Tendo a Alemanha uma população de mais de 80 milhões de pessoas, nenhum malabarismo estatístico seria capaz de demostrar ser este um "fascínio" comum. 



O segundo sentido atribuído por Canguilhem à palavra normal, é o de ideal, aquilo que deve ser. Sob este aspecto então, Meiwes não é, em absoluto, normal. Afinal, matar e comer pessoas (ou ser comido) não é algo bem visto, sequer tolerado, na nossa e em quase todas as sociedades. Mesmo em sociedades indígenas antropófagas, pelo que sei, comer um outro ser humano era muito mais parte de um ritual coletivo de incorporação do poder do inimigo do que uma atitude visando saciar um desejo individual, como fez Meiwes. Neste segundo sentido da palavra normal, portanto, não podemos considerar a atitude do canibal alemão, algo normal.

Alguns poderiam argumentar que pessoas normais fazem coisas anormais e este seria o caso de Meiwes. Ele seria uma pessoa normal, "em geral", mas que, "neste caso", tomou uma atitude anormal, mas isto não faria dele todo anormal. Ok, até aceito este argumento, desde que se defina o que é uma "pessoa normal" (e se puder, dê algum exemplo). Eu não sei o que é. Certamente é muito mais fácil dizer o que é anormal do que o que é normal. Assim como é mais fácil dizer o que é uma doença do que o que é saúde. É claro que se pode sempre definir uma coisa pela negação do seu contrário (saúde é ausência de doença e normalidade é ausência de anormalidade), só que essa conceituação circular não resolve o problema.

A questão central sobre este caso, na minha opinião, não é se Meiwes é normal ou não, mas se ele tem uma doença mental ou não. Porque dizer que ele é um doente significa desresponsabilizá-lo pelo que fez. É por este motivo que algumas pessoas e grupos defendem a retirada da pedofilia do DSM. Pois se o pedófilo é um doente, não deve ser punido, mas tratado. Na contramão, afirmam estes grupos, pedofilia é crime, não doença. Afinal, poderiam dizer, nem tudo que é anormal é necessariamente patológico. Mas o que é algo patológico? Para Canguilhem "patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”. Segundo ele, não existirem fatos que sejam patológicos ou normais em si. O que é normal em uma situação pode ser patológico em outra. Sendo assim, é o próprio sujeito que define o que é ou não doença e se está ou não doente. A norma, para Canguilhem, é sempre individual. A doença não pode, portanto, ser definida por uma média estatística ou um por julgamento social, mas por um julgamento de valor realizado pelo próprio sujeito diante da polaridade dinâmica da vida. Segundo este critério, o ato canibalista de Meiwes não pode ser considerado patológico, afinal não lhe trouxe qualquer sofrimento. Pelo contrário, gerou-lhe prazer - e não seria incorreto dizer que gerou prazer inclusive em Brandes, que desejava ser comido (e este caso é exemplar ao expor a enorme variabilidade humana no que diz respeito ao que gera sofrimento e prazer). 

Há, no entanto, um outro critério para definir o que é doença, que Canguilhem aponta mais tarde em sua obra, após ler Foucault, que é a normatividade social, ou seja, as normas estabelecidas pela sociedade. Afinal, são as sociedades que definem o que é normal e o que é patológico. Não há uma essência para o que é saudável e para o que á patológico. Um comportamento que hoje é entendido como patológico, amanhã pode deixar de ser, da mesma forma que coisas que hoje são vistas como doenças, no passado não o eram. Por exemplo, fumar era algo normal, corriqueiro e valorizado, enquanto hoje trata-se de um comportamento altamente indesejável e até mesmo estigmatizado; ser homossexual era uma doença, hoje não é mais, embora existam grupos que lutem por sua re-patologização. Tudo isto demostra que nenhum comportamento é, em si mesmo, normal ou patológico. Complicado, não? 

E pra você, Meiwes (acima) tem ou não uma doença mental?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O DSM-5 vem aí...


Reproduzo abaixo um excelente artigo, publicado no dia 21 de Março deste ano no site da Agência Fiocruz de Notícias (veja aqui). O artigo foi escrito pelo histórico Paulo Amarante em parceria com o Fernando Freitas, ambos ligados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) e à Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Alguns de vocês já devem ter lido pois circulou por algumas redes sociais, mas eu só li hoje e o reproduzo neste blog em função de sua atualidade e pertinência. Pra quem não sabe, a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM, em inglês) será publicado no ano que vem. Aproveito o espaço para divulgar o seminário "Psiquiatria e DSM-5", que será realizado dia 30 de Novembro no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ). Mais informações em breve.

Psiquiatrização da vida e o DSM V: 
desafios para o início do século XXI

Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com disforia”. Adolescentes que apresentam, de forma particular, comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo, quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”.

Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela Associação Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em vigor desde 1994. Há outras novidades que vem chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a “dependência a shopping”.

O que o DSM representa? Não apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria construção da subjetividade e intersubjetividade do homem contemporâneo? A medicalização crescente do nosso cotidiano. Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de 300.



Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinados a sua hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam que suas pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2) servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) ser uma “ponte” para a interface clínica/pesquisa; (4) ser o “livro de referência” em saúde mental para professores e estudantes; (5) disponibilizar o “código estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar “procedimentos forenses”.

Os impactos provocados por cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós está o exemplo da pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da metrópole de São Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa nacional tomou tal pesquisa para chamar a atenção da população para a situação do sistema de assistência em saúde mental do país, que estaria muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS. E que, sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como alarmante.

O que escapa à maioria das pessoas que receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou essa pesquisa (além da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a Opas) foram grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire. Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se isso não é conflito de interesses, então é necessário revisar esse conceito!



O DSM-V chega sendo objeto de grandes controvérsias. Basta uma consulta na internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV. O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que vêm se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência de assegurar e ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.

Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM nos possibilita constatar, principalmente a partir dessa sua quinta versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos sofrimentos mentais, e, sim, produzir mais mercado para as intervenções psiquiátricas, cumpre à sociedade recusar esse projeto medicalizante e patologizante. As entidades de saúde, particularmente as médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde, Ministério Público, conselhos profissionais, dentre outros) precisam se posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de tais iniciativas.



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

GUEST POST: Sobre Psicologia, Ciência e Religião



Inaugurando a seção Guest Post, publico abaixo um texto do meu xará e parceiro de ótimas discussões no Twitter, o Felipe Hautequestt, que é Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Escrito inicialmente como um comentário ao meu post anterior, o texto foi ampliado para ser publicado aqui. Eu gostei tanto do que ele escreveu, inclusive quando ele discorda dos meus argumentos, que pedi sua autorização para publicá-lo. Desejo que este seja o primeiro Guest Post e que este blog deixe de ser apenas um monológo e torne-se um espaço de disseminação de múltiplas vozes sobre as grandes questões da Psicologia. Portanto, se alguém concordar ou discordar do que eu ou o Felipe escrevemos e/ou quiser acrescentar algum ponto de vista sobre esta ou outra questão, é só escrever um texto e me enviar por email. Segue o texto do Felipe Hautequestt: 

No meu entendimento, a questão da cientificidade da Psicologia pode ser perfeitamente colocada entre parênteses quando se trata de afastar a Psicologia do domínio da fé e da doutrina religiosas. Não é necessário ir tão longe, pouco importa aqui se a Psicologia sucedeu ou não como ciência. E, aliás, essa questão só pode ser adequadamente respondida se entrarmos em acordo quanto ao que é uma ciência e quais são seus caracteres distintivos, para começar. O que importa é que a Psicologia se pretende uma ciência empírica, tendo nascido de um projeto de cientificidade do qual não pode abdicar (por mais que o sentido de ‘cientificidade’ esteja em aberto e não precise ser necessariamente aquele dado pelos positivistas do século XIX). Dois critérios certos podem ser extraídos dessa pretensão fundadora sem cair em discussões árduas de filosofia da ciência: (1) ela deve necessariamente fazer algum tipo de recurso à experiência, submeter-se, portanto ao seu crivo; e (2) ela deve apresentar hipóteses e teorias argumentadas, raciocinadas. Ou seja, ela não pode ser nem uma ciência puramente especulativa (metafísica), nem um corpo doutrinal que exija uma adesão pela fé, pela aceitação integral duma verdade revelada (religião), sem razões que a sustentem. 





Esse é o ponto central, no meu entendimento. As religiões não lidam com problemas de fato (isto é, de como as coisas são) – por exemplo, como funciona o mundo subatômico –, mas sim com problemas de valor (como as coisas devem ser) – por exemplo, como devo conduzir minha vida. Por isso, os enunciados religiosos se fecham de saída, e por definição, a ambas os critérios: oferecem narrativas que não são passíveis de nenhum tipo de controle pela experiência (como quer que o caracterizemos) e, além disso, são calçadas na fé, e não na argumentação racional. É importante dizer que isso não constitui nenhum demérito para as religiões, apenas define sua especificidade em relação a outros tipos de discurso. E porque seus traços essenciais são estes, é por essência que a religião está automaticamente excluída de qualquer discurso que se pretenda científico – independentemente dele ser efetivamente científico ou não. 




Esse é o critério que embasa (e com toda razão, a meu ver) a Resolução 016/95 citada no texto: aquelas práticas faziam referência aberta a proposições de caráter nitidamente religioso, místico e/ou esotérico. Poderiam dizer alguns: "Ah, mas funcionam! Essas práticas reúnem muitos indícios de que são eficazes, isso não basta?!". Ora, mas a medida da Psicologia como ciência aplicada nunca pode se limitar ao resultado puro e simples – trata-se de saber por que e como as técnicas funcionam, e isso requer uma teoria, um conjunto coerente de proposições que dê algum sustento àquela prática. Era para isso que Canguilhem nos alertava, em seu famoso artigo ‘Que é a Psicologia?’, ao escrever: “Quando se diz que a eficácia do psicólogo é discutível, não se pretende dizer que ela seja ilusória, mas simplesmente assinalar que essa eficácia está sem dúvida mal fundamentada enquanto não se provar que ela resulta realmente da aplicação de uma ciência.” Na medida em que certas práticas vetadas pelo CFP comecem a apresentar um esforço de embasamento teórico, e os profissionais se organizem para vir em sua defesa e argumentar em seu favor, então cabe ao Conselho admiti-las no campo de atuações possíveis do psicólogo. Pois, a partir de agora, tais práticas estão aptas a terem seus alicerces e fundamentos criticados por outros psicólogos e, como se sabe, a crítica cumpre um papel central e decisivo no desenvolvimento científico. (Popper dizia que uma teoria imune a críticas deveria, por isso mesmo, ser descartada de antemão como digna de consideração pelos cientistas.) 


Isso tudo, é claro, não dá tanto uma determinação positiva à Psicologia, não diz tanto o que ela é, mas busca apenas demarcar seus limites negativos, estipulando aquilo que ela não é e não pode ser a partir de certas condições básicas a serem atendidas. Acho eu que é nesse sentido específico que se pode falar de uma identidade ou especificidade da profissão a ser defendida: no sentido de uma identidade às avessas, por contraste com o que ela definitivamente não pode ser. Sendo assim, a demarcação ideal dos campos precisa ser mantida e resguardada, por mais que enfrentemos algumas dificuldades na hora de decidir o que se deve incluir ou rejeitar (se programação neuro-linguística e acupuntura contam ou não contam, por exemplo), e por mais que a inclusão ou rejeição de certa prática possa ser futuramente revogada em vista de novos desdobramentos do campo psi. O importante é perceber que esse problema de demarcação não é só uma tentativa dos órgãos fiscalizadores de preservar a credibilidade do psicólogo contra os excessos de charlatães, místicos etc., mas antes e sobretudo uma tentativa de reconhecer os limites de cada tipo de discurso.

"Cada um no seu quadrado"

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Sobre Psicologia, religião e outras misturas


Um dos principais argumentos utilizados pela "psicóloga cristã" em sua defesa - com razão, tenho que admitir - é que ela não é a única psicóloga que mistura psicologia e religião. Várias associações brasileiras estão aí para provar. Listo abaixo algumas delas:



Sobre esta problemática, o CFP divulgou, em Fevereiro deste ano, uma nota pública “de esclarecimento à sociedade e às(o) psicólogas(o) sobre Psicologia e religiosidade no exercício profissional” (leia na íntegra aqui). Logo no início, é dito que “não existe oposição entre Psicologia e religiosidade, pelo contrário, a Psicologia é uma ciência que reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. A relação dos indivíduos com o ‘sagrado’ pode ser analisada pela(o) psicóloga(o), nunca imposto por ela(e) às pessoas com os quais trabalha”.


Em outro trecho, o CFP afirma que, segundo o Código de Ética, os “serviços de Psicologia devem ser realizados com base em técnicas fundamentados na ciência psicológica e não em preceitos religiosos ou quaisquer outros alheios a esta profissão”. O documento finaliza com a seguinte afirmação: 

"A Psicologia como ciência e profissão pertence à sociedade tendo teorias, técnicas e metodologias pesquisadas, reconhecidas e validadas por instâncias oficiais do campo da pesquisa e da regulação pública que validam o conjunto de formulações do interesse da sociedade. Os princípios e conceitos que sustentam as práticas religiosas são de ordem pessoal e da esfera privada, e não estão regulamentadas como atribuições da Psicologia como ciência e profissão".


Tudo isto soa muito bonito na teoria: ciência é ciência e religião é religião; psicologia é ciência e, portanto, não pode se misturar com nenhuma religião ou misticismo; os psicólogos devem se utilizar somente de técnicas fundamentadas cientificamente e reconhecidas por instâncias oficiais. E zéfini! Mas será que, realmente, é assim que acontece? Primeira questão: será que a Psicologia é realmente uma ciência? É uma questão muito complexa mas, sob o risco de ser leviano e não entrando em pormenores teóricos, arrisco uma resposta: em grande parte não! Afinal, quem de fato faz ciência na Psicologia? Um psicólogo clínico atendendo em seu consultório é um cientista? Obviamente não. Ele pode até se embasar em estudos científicos, mas o atendimento em si não tem como ser científico. É uma relação humana individualizada e complexa, sujeita a diversos "viéses". Não há controle. É uma relação de ajuda, não de investigação científica. 

Neste sentido, levar a cabo o princípio da cientificidade na Psicologia, significaria excluir grande parte das teorias e atuações psicológicas. Afinal, a psicanálise, por exemplo, é uma ciência? Muitos psicanalistas afirmam categoricamente: não! Mas isso desmerece e tira toda a legitimidade das teorias e práticas psicanalíticas, amplamente disseminadas no Brasil? Claro que não. Enfim, se o CFP resolver cassar o registro profissional de todos os psicólogos que não praticam ciência, vai sobrar muito pouca gente. Mas também permitir que qualquer psicólogo diga ou faça qualquer coisa também não me parece correto. É preciso haver uma regulamentação.

E aí, chegamos em uma questão crucial: quais são, afinal, as tais "teorias, técnicas e metodologias, pesquisadas, reconhecidas e validadas", referidas na nota pública do CFP? Existe, por acaso, alguma resolução que liste ou indique quais "teorias, técnicas e metodologias" são permitidas de serem empregadas pelos psicólogos? Na contramão, existe alguma resolução que especifique quais "teorias, técnicas e metodologias" estão fora do âmbito da Psicologia e, portanto, caso sejam utilizadas, configurariam infração pelo psicólogo? Mais uma vez a resposta é negativa. 


Em 1994 o CRP-03, da Bahia, chegou a emitir uma resolução vetando ao psicólogo a publicidade de algumas práticas ditas "alternativas", tais como astrologia, numerologia, cristaloterapia, terapia energética, psicoterapia xamânica, psicoterapia esotérica, terapia da transmutação energética, terapia regressiva de vidas passadas, psicoterapia espiritual, terapia dos chacras, terapia dos mantras, terapia de meditação, psicoterapia do corpo astral e trabalho respiratório monhâmico (fonte). Interessante constatar que o que foi vedado foi a publicidade, não o emprego de tais práticas.

No ano seguinte, o CFP publicou a Resolução 016/95, que mantinha a orientação do CRP-03 e acrescentava outras práticas: tarologia; quiromancia; cromoterapia; florais; fotografia kirlian e programação neurolingüística. Posteriormente, a PNL foi retirada desta resolução, tornando-se uma prática "reconhecida". No entanto, pelo que pesquisei, tal resolução foi revogada. Desconheço os motivos. Em 2000, o CFP emitiu uma resolução autorizando e regulamentando o uso da hipnose como técnica complementar ao trabalho do psicólogo e, em 2002, foi a vez, da acupuntura. Desta forma, somente a hipnose e a acupuntura são regulamentadas pelo CFP como práticas complementares. Todas as outras técnicas "alternativas" não são, legalmente, nem permitidas nem proibidas. No entanto, existe um entendimento extra-regulamentar dos CRPs e do CFP sobre as terapias "alternativas" e sobre a "mistura" psicologia-religião: eles são contra! Não sabem muito bem porque, mas são contra mesmo assim. Só que, a despeito desta posição crítica dos conselhos, muitos e muitos psicólogos continuam a se utilizar de técnicas e abordagens místico-religiosas, alheios a toda esta discussão. 


Para finalizar este post, gostaria de citar aqui dois trechos da conclusão da tese de doutorado “As terapias alternativas no âmbito da Psicologia: conflitos e dilemas” (disponível aqui), defendida em 2010 pela minha amiga e ex-colega de trabalho, Rosana Cognalato no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

“Diante de toda essa diversidade que é a psicologia e diante da sua pretensa cientificidade, ela se apresenta como um território fértil para a utilização das ‘terapias alternativas’, o que deixa os Conselhos numa situação bastante desagradável, tendo em vista que a sua função é a de resguardar a identidade/especificidade e a dignidade legítima dessa profissão. É como se os Conselhos quisessem que a psicologia fosse o que ela ainda não é, mas precisa ser, para ser uma profissão séria, funcional e competente. O que traz a noção implícita de que seriedade e cientificidade são sinônimos, indissociáveis.

E conclui: "A relação da psicologia com as terapias alternativas, a partir da sua constituição enquanto 'ciência', de forma tão própria e tão especial, a tornou uma precursora, diante da sua atração pelo 'alternativo'. A cientificidade cambaleante da psicologia a coloca numa condição dubiamente conflitiva e confortável, a partir das indefinições que as terapias alternativas suscitam, e que estão mais explícitas na psicologia do que em qualquer outra ciência. Independente disso, todas elas 'misturam'. Nenhuma ciência é pura".


Update 08/08/12: No dia 7 de Agosto, o blog do jornalista Paulo Lopes, publicou a seguinte notícia: "CRP de Minas adverte grupo que mistura psicologia com religião" (leia aqui).O grupo em questão é o CPPC mencionado acima. Esta notícia só confirma o que eu disse: que o CFP e os CRPs não toleram misturas entre Psicologia e Religião. Se isto é bom ou ruim, cabe o debate...