terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

"I may destroy you" e machismo nosso de cada dia

Por ser um homem branco, heterossexual e cisgênero eu jamais vivenciei sequer uma vislumbre do preconceito, da discriminação e da violência sofridos todos os dias por mulheres, negros(as), homossexuais e pessoas trans. Os privilégios que eu possuo - e que tento me manter consciente - de alguma forma me distanciam das experiências vivenciadas por inúmeras pessoas que não gozam de tais privilégios. No entanto, eu tento me aproximar o quanto posso de tais experiências, seja por meio de minha atuação clínica - que tem na empatia uma base fundamental - seja através de livros, filmes e séries criados e/ou protagonizados por mulheres, negros(as), homossexuais, pessoas trans, etc. É claro que por mais que eu tente me aproximar destas experiências, uma distância ainda permanece e sempre permanecerá, o que significa dizer que eu jamais saberei exatamente como é ser uma mulher ou uma pessoa negra, homossexual ou trans - até porque não existe apenas uma experiência feminina, negra, homossexual ou trans, mas inúmeras (embora seja possível identificar algumas vivências em comum, como aquelas relacionadas ao preconceito, à discriminação e à violência). Por uma limitação própria de nossa estrutura mental eu jamais compreenderei e sentirei, com toda a profundidade necessária, como é ser uma pessoa diferente de mim mesmo. O máximo que eu posso fazer, nesta busca por compreensão, é tentar me aproximar da vivência deste Outro, seja através da escuta de suas experiências seja através da apreciação de determinadas obras de arte, como aquelas advindas da literatura e do cinema. Todas estas reflexões me trazem, nesse sentido, à série I may destroy you, lançada em junho de 2020 pelo canal HBO. Criada, protagonizada, produzida e codirigida pela multitalentosa Michaela Coel (das séries Chewing gum e Black earth rising), I may destroy you conta a história de Anabella, uma jovem escritora londrina, envolvida na escrita de seu segundo livro, que certa noite sai para relaxar e se divertir com os amigos e acaba sendo dopada e brutalmente estuprada por um homem desconhecido no banheiro de um bar. No dia seguinte Bella acorda com um corte na testa mas não consegue se lembrar do que ocorreu e nem de detalhes do estupro e do estuprador; ela tem apenas flashes dos acontecimentos, que lhe invadem a mente de tempos em tempos. Após este acontecimento traumático, Anabella vai gradualmente se dando conta dos inúmeros (e por vezes sutis) abusos e violências que sofreu ao longo de sua vida por ser mulher - e negra. Ao longo desta primeira temporada, composta por 12 curtos episódios, acompanhamos todos os esforços da protagonista para lidar com seus traumas e seguir adiante. Em especial Bella recorre à todo tipo de apoio para enfrentar seus medos e curar suas feridas: inicia uma terapia, passa a frequentar um grupo de ajuda mútua voltado para mulheres vítimas de abusos e violências e, especialmente, conta todo o tempo com o imprescindível suporte de seus amigos queridos. Baseada nas vivências pessoais de sua criadora. I may destroy you trata com muita sensibilidade dos desafios de ser uma mulher negra em um mundo terrivelmente machista e racista. E com isso a série permite tanto a identificação por mulheres que tiveram experiências de abuso semelhantes às vivenciadas pela protagonista quanto o cultivo da empatia por pessoas que não tiveram tais experiências - caso de homens brancos como eu. E este cultivo da empatia pode contribuir, quem sabe, para que nós homens pensemos e repensemos nossas próprias atitudes - e especialmente o impacto de nossas ações e palavras nas mulheres com quem nos relacionamos ou apenas interagimos e, de uma forma geral, nas vidas e subjetividades de todas as demais pessoas com quem nos deparamos ao longo do caminho. 

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