quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Podemos diagnosticar o sofrimento sem conhecer a história de uma pessoa?

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Can we diagnose suffering without knowing a person’s history?, publicado no site AEON no dia 30 de Agosto de 2022 pelo psicanalista lacaniano inglês Christos Tombras, autor de Discourse Ontology: Body and the Construction of a World, from Heidegger through Lacan (2019).

O poder do diagnóstico está se tornando mais significativo. Em 2022, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a 'bíblia' dos profissionais de saúde mental, apareceu pela primeira vez na lista de mais vendidos do The Wall Street Journal. Foi também o livro de psiquiatria mais vendido na Amazon. Cinco edições foram publicadas desde 1952, e a mais recente, a DSM-5-TR (2022), talvez seja a mais popular de todas. Por quê? É a promessa de que a ciência pode avaliar e compreender o sofrimento humano? É a crença de que essa compreensão pode nos ajudar a encontrar um tratamento específico, adequado e eficaz para nossos problemas?

Estas são promessas tentadoras, mas enganosas. O sofrimento humano não é definido por categorias abstratas. Não existe independentemente dos humanos que estão sofrendo. Por mais útil que seja o DSM, qualquer projeto que busque listar e categorizar problemas psicológicos em termos de algum desvio de uma definição do que é "normal", corre o risco de esquecer que os transtornos não surgem do nada. Eles têm sua própria história. Eles também fazem parte de nossas histórias. Além disso, eles não permanecem constantes; eles mudam assim como nós mudamos.

Desde o momento em que foi concebido em meados do século XX, o DSM foi saudado por muitos como um projeto científico libertador e revolucionário. Nem todos concordaram. Este e outros instrumentos diagnósticos também têm sido criticados por serem difusores da medicina corporativa, produtos de sistemas de saúde burocráticos, corroídos por falsas categorias, e por esquecerem que o sofrimento psíquico está ligado à sociedade que o produziu. No entanto, dentro desse debate, as histórias pessoais daqueles que realmente vivenciam o sofrimento muitas vezes são esquecidas.

A experiência humana é distribuída, não específica e flui no tempo. A organização estilo checklist dos transtornos, que povoam os manuais de diagnóstico e testes – incluindo questionários online, aplicativos de saúde mental e “inventários” de personalidade – tendem a esquecer que as pessoas têm alguma consciência de si mesmas como agentes em uma linha do tempo que vem de algum lugar (o passado) e segue em direção a algum lugar (o futuro). Essa característica distintamente humana de nossa experiência, sua historicidade, esteve no centro do trabalho de filósofos como Martin Heidegger e psicanalistas como Jacques Lacan. A 'historicidade', na filosofia, refere-se menos a uma questão sobre as especificidades factuais da linha do tempo de alguém (o que aconteceu, quando e onde) do que ao fato de que estamos constantemente criando e recriando auto-narrativas. É assim que tentamos dar sentido às nossas vidas à medida que nos movemos ao longo da miríade de caminhos que conectam nosso passado ao nosso futuro. Esses caminhos sinuosos e confusos, cheios de becos sem saída e conexões falsas, muitas vezes contribuem para o nosso sofrimento.

É tentador acreditar que podemos nos ver refletidos objetivamente nos critérios diagnósticos e listas de verificação de 'bíblias' como o DSM, mas nossas histórias e ansiedades individuais escapam ao diagnóstico fácil porque não existem independentemente de nossa história ou de nossas tentativas de articulá-las, entendê-las e encaixá-las nas identidades que estamos constantemente tentando formar.

Sou psicanalista e trabalho em Londres. As pessoas que vêm me ver, principalmente aquelas que me procuram por conta própria, estão buscando ajuda com essas articulações, com a produção de sentido e de identidade. Robert (nome fictício) veio me ver pela primeira vez quando tinha 30 anos. Ele veio porque estava preocupado com seu trabalho em uma galeria de arte, onde se sentia um intruso, não tendo nada em comum com seus colegas. Assim como sua experiência em empregos anteriores, ele tinha um medo profundo e debilitante de que colegas e chefes estivessem sempre lhe observando, esperando que ele cometesse um erro decisivo. Esse medo o faria congelar. Ele não conseguia pensar. Ele queria desaparecer.

"Eu desapareço", ele me diz. 'Olho no espelho e não estou mais lá.'

"O que você quer dizer com desaparecer?" Eu pergunto.

Ele parece incerto. "Não sei de que outra forma descrever. Quando estou nesse estado de preocupação e medo, o rosto que vejo no espelho se desintegra. Não é mais a minha cara. Torna-se uma variedade de elementos. Um olho aqui, outro olho, um nariz, uma orelha... não consigo me reconhecer. Não consigo ver um rosto. Está vazio. Eu não existo mais. Eu congelo".

"O que isso significa?" pergunto novamente.

"Eu vejo elementos desconectados. Eu fico lá, inutilmente", ele olha para mim, "por longos períodos de tempo". Ele faz uma pausa. "Por horas", ele admite, baixando o olhar.

Então, aí está. Robert finalmente consegue me dar um vislumbre de seu sofrimento. Neste momento, eu poderia tentar transformar seus sintomas em um diagnóstico. Sofrimento significativo? Sim. Prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas? Sim. Preocupação com a aparência física? Sim. Comportamento repetitivo, como verificação no espelho? Sim. Indicações de um transtorno alimentar? Não. Diagnóstico? 'Transtorno Dismórfico Corporal', codificado F45.22 no DSM-5-TR. O quadro clínico pintado pelo DSM parece ter sido escrito para Robert.

O DSM foi, desde o início, organizado de acordo com resultados produzidos por ferramentas estatísticas. Como projeto científico, sugere que podemos e devemos falar apenas sobre coisas que podem ser observadas e avaliadas com clareza. Essa mesma ideia aparece em uma série de instrumentos psicológicos que buscam fornecer relatos objetivos das experiências humanas. Entre eles estão a Classificação Internacional de Doenças (CID), atualmente em sua 11ª revisão, e os Critérios de Pesquisa por Domínios (Research Domain Criteria - RDoC) do Instituto Nacional de Saúde Mental.

Como são feitos esses instrumentos? Como avaliar a doença mental, o sofrimento humano e a angústia de forma objetiva? A chave é quantificar o que você vê com a ajuda de ferramentas simples e imparciais, como entrevistas estruturadas ou questionários. Essas ferramentas podem revelar aspectos de como grandes grupos de pessoas pensam e sentem sobre o mundo e sobre si mesmos. Por meio desses dados, surgem padrões e categorias. Quase todas as categorias e critérios em nossos manuais de diagnóstico foram definidos por essas ferramentas, que fazem perguntas como:

Em uma escala de 0 (muito ruim) a 9 (muito bom), como você avaliaria seu humor geral nesta semana? E a semana passada?

Usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente) indique seu grau de concordância com a seguinte afirmação: 'Não consigo mais encontrar alegria em nada.'

Os princípios e intenções subjacentes a esses tipos de perguntas e as ferramentas de que elas provêm são nobres. As coisas, no entanto, não são tão simples. Ao representar nossa experiência de algo como tristeza com dados objetivos, estamos sendo infiéis ao fenômeno real de estar triste? Nossa tristeza tem uma história e um significado dentro de nossa própria história. Ela começou em algum momento, mudou, continua mudando. Nossa tristeza não pode ser representada fielmente 'usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente)' ou usando qualquer medida numérica em qualquer tipo de escala. Ao tirar uma fotografia de um 'transtorno' – ou seja, ao remover qualquer referência ao seu contexto e história – estamos forçando-o a se formatar a conceitos e ferramentas que são impróprios para este fim. Em nome da objetividade científica, transformamos violentamente noções multifacetadas e complicadas em conjuntos de dados a-históricos.

É tudo sobre a história (it's all about history).

Peço a Robert que me conte mais. Quando isso começou?

Robert não sabe dizer exatamente. Ele sente que sempre teve dificuldade em desenhar rostos – até mesmo em ver rostos. Quando  se olha no espelho, ele me diz, é como se seu próprio rosto fosse despido de significado.

"Despido", eu repito.

"Sim", diz ele. "E não apenas o rosto. O mesmo acontece com os corpos. É como se eles também fossem desprovidos de significado. Acabo desenhando como Lucian Freud ou Francis Bacon".

'Isso é um problema?' Eu pergunto, tentando aliviar a tensão.

'Eu não pretendia fazer desta forma', diz ele.

Convido-o a falar mais sobre o corpo humano. "Os nus são despidos das roupas", eu ofereço.

"De fato", diz ele, fazendo uma pausa.

Isso traz uma lembrança.

"Estou um pouco envergonhado", admite Robert.

Ele se lembra de algo que aconteceu quando tinha cerca de 13 anos.

Entrando na adolescência, fascinado e dominado por sua sexualidade, Robert começou a fazer pequenos desenhos eróticos, envolvendo vagamente ele e sua irmã, que tinha cerca de 15 anos. Um dia, sua mãe encontrou os desenhos. Chocada, ela decidiu que a melhor maneira de lidar com isso era convocar uma reunião de família. Ele assistiu horrorizado enquanto ela fazia circular os desenhos, falava longamente sobre eles e o humilhava publicamente. Ela o fez pedir perdão à irmã, e depois o fez destruir os desenhos cerimoniosamente na frente de todos, incluindo seu pai, que não disse nada, mas continuou assentindo com a cabeça. Quando tudo isso acabou, ele foi mandado de volta para seu quarto. Lá ele chorou amargamente por horas e depois redesenhou desafiadoramente tudo de memória. Ele os escondeu cuidadosamente em algum lugar e insiste que não olhou para eles desde então. Para ele, tais desenhos não existem mais.

As dificuldades de Robert com rostos e corpos tem uma história. Por trás de sua incapacidade de discernir o significado dos rostos há um evento traumático do passado.

Pela lógica do DSM, o sofrimento de Robert é definido pela forma precisa que ele assume no momento específico em que uma avaliação é feita. Neste momento, ele pode ser classificado como F45.22 ou algo do tipo. Um diagnóstico do DSM, como este, é uma única fotografia do sofrimento de alguém. Tal fotografia tem precisão, mas a história dessa imagem é deixada de fora: a humilhação e a rejeição de Robert por sua família; a dor que sentiu; sua culpa pelo despertar de sua sexualidade; o medo de que o que ele mais ama – desenhar com seu lápis – o leve a se perder e a ser esquecido.

Robert não teve permissão para processar tudo isso de uma maneira que o ajudasse a compreender seu significado. Seu sofrimento tem uma origem, e há caminhos que levam dessa origem à sua queixa atual. O 'transtorno' de Robert, as horas que ele passa na frente do espelho e a dificuldade de discernir e reconhecer seu rosto, podem ser conhecidos e descritos com precisão pelo DSM com um código apropriado. Mas esse transtorno tem um passado que se perde para o usuário de um manual de diagnóstico.

Em um momento em que o DSM se tornou um best-seller, é importante considerar que uma "fotografia" diagnóstica, por mais útil que às vezes seja, representa um instante desconexo na vida de uma pessoa. O paradigma da "fotografia" diagnóstica por meio da quantificação revela seus limites quando consideramos a historicidade de nossas experiências vividas e reconhecemos que estas não podem ser representadas por conjuntos de dados a-históricos.

O sofrimento psicológico é fundamentalmente inquantificável. Desenvolve-se através de uma miríade de caminhos sinuosos. Desloca-se, muda, transforma. Ele nos convida a compreender o significado em nossa história, mesmo que esse significado ameace escapar, nos sobrecarregar e nos confundir – e mesmo quando nossos próprios rostos desaparecem no espelho.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

4 recentes e surpreendentes filmes de terror

Queria indicar aqui quatro excelentes filmes de terror/suspense que eu vi nos últimos tempos - e quem me acompanha lá no Instagram sabe o quanto eu amo e respeito este gênero cinematográfico: 1) "Boa noite, mamãe" (Goodnight mommy): interessante e surpreendente refilmagem norte-americana de um suspense austríaco lançado em 2014 (que eu não vi). Não falarei nada sobre a história, porque quanto menos você souber melhor. Eu só recomendo com entusiasmo que você não deixe de assistir este filme, recém-lançado pela Prime Video. 2) "Os canibais" (The farm): neste perturbador filme de terror um casal de namorados é sequestrado e levado para uma fazenda que cria humanos para alimentação. A grande sacada do filme é imaginar como seria se os seres humanos fossem tratados da mesma maneira, e com a mesma indiferença, como tratam animais como galinhas, porcos e vacas. E a ideia de colocar os criadores com máscaras desses animais torna a situação ainda mais sinistra. Assista se tiver coragem. O filme também está disponível na Prime Video; 3) "Maria e João: o conto das bruxas" (Gretel & Hansel): lançado em 2020, este filme pouco conhecido traz uma versão bem interessante e contemporânea da clássica história de João e Maria. Ao inverter os nomes no título, o filme destaca o protagonismo de Maria/Gretel na narrativa. Como os anteriores, Maria e João encontra-se disponível no catálogo da Prime Video. 4) "X - A marca da morte" (X): nesta interessante obra de terror slasher, passada nos anos 70, acompanhamos uma equipe de filmes adultos durante as filmagens realizadas em uma fazenda isolada, cujos proprietários são um casal idosos conservador e cristão. Ainda que o filme venha sendo considerado etarista, com toda razão, devido à representação terrivelmente negativa dos personagens idosos, eu acho que a narrativa traz uma abordagem bem interessante do eterno conflito de gerações e uma crítica sagaz ao conservadorismo norte-americano. Caso tenha interesse em assistir, este filme ainda está em cartaz em alguns cinemas.

A mente entre o esquecimento e o apagamento: uma resenha do livro "Para sempre Alice"

No maravilhosamente triste romance "Para sempre Alice", lançado originalmente em 2007, a neurocientista Lisa Genova conta a história de Alice Howland, uma conceituada professora de linguística da Universidade de Harvard que é diagnosticada aos 50 anos com a Doença de Alzheimer de instalação precoce. No livro acompanhamos mês a mês, ao longo de dois anos, o relativamente rápido declínio cognitivo de Alice desde os primeiros esquecimentos, que ela atribui inicialmente ao estresse e à menopausa, até o apagamento quase total de sua mente num estágio avançado da doença. E é com tristeza que seguimos Alice e sua família (que inclui seu marido John e seus filhos, já adultos, Anna, Tom e Lydia) neste doloroso processo que se inicia com o diagnóstico clínico estabelecido por um neurologista e que se estende por uma série crescente de episódios de perda de memória - no início Alice se esquece de alguns nomes e compromissos mas, após alguns meses, passa a se esquecer também de memórias aparentemente consolidadas em sua mente, como o nome dos filhos e, mais adiante, o fato de que eles são seus filhos. Lisa Genova, que é Ph.D em neurociência justamente pela Universidade de Harvard, onde trabalham Alice e John no livro, criou essa comovente história ficcional a partir de uma série de casos reais, o que traz fidedignidade à narrativa desenvolvida por ela neste e também em outros livros como "Nunca mais Rachel", "A outra metade de Sarah", "A família O'Brien" e "Com amor, Anthony", todos baseados em casos reais de pacientes com variadas doenças e condições neuropsiquiátricas. Cabe apontar que Para sempre Alice inspirou um maravilhoso filme homônimo, lançado em 2014 e protagonizado pela atriz Juliane Moore (vencedora do Oscar por esse papel), que eu já indiquei e analisei anteriormente em alguns posts desse blog como O que os filmes e séries nos ensinam sobre a memória e o esquecimento? e 6 filmes sobre perda de memória. Recomendo imensamente tanto o filme quanto o belíssimo livro que o inspirou. Ambos são inesquecíveis!

Trecho do livro: "Apesar da erosão crescente da memória, seu cérebro ainda lhe prestava bons serviços, de inúmeras maneiras. Nesse exato momento, por exemplo, ela estava tomando seu sorvete sem derramar nada na casquinha nem na mão, usando uma técnica de lamber-e-girar que dominava desde menina e que, provavelmente, estava armazenada em algum lugar próximo das informações sobre “como andar de bicicleta” e “como amarrar o sapato (...) Em algum momento, porém, ela esqueceria como tomar sorvete de casquinha, como amarrar os sapatos e como andar. Em algum momento, seus neurônios do prazer seriam corrompidos por um ataque de amiloides aderentes e ela já não seria capaz de desfrutar das coisas que amava. Em algum momento, simplesmente não haveria sentido. Desejou estar com câncer. Trocaria o mal de Alzheimer pelo câncer sem pestanejar. Envergonhou-se de desejar isso, o que decerto era uma barganha inútil, mas, ainda assim, permitiu-se fantasiar. No câncer ela teria algo a combater. Havia a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia. Haveria uma possibilidade de que ela vencesse. Sua família e a comunidade de Harvard se uniriam a sua batalha e a considerariam nobre. E, ainda que no fim ela fosse derrotada, poderia olhá-los nos olhos, consciente, e se despedir antes de ir embora. A doença de Alzheimer era um monstro de um tipo completamente diferente. Não havia armas capazes de matá-lo. Tomar Aricept e Namenda era como apontar um par de pistolas de água contra um incêndio devastador. John continuava a investigar os medicamentos em processo de ensaio clínico, mas Alice duvidava que algum deles ficasse pronto e fosse capaz de fazer alguma diferença para ela; caso contrário, seu marido já teria telefonado para o dr. Davis, insistindo num modo de fazer com que ela o tomasse. Nesse exato momento, todos os portadores do mal de Alzheimer enfrentavam o mesmo desfecho, tivessem eles oitenta e dois ou cinquenta anos, fossem eles residentes do Centro Assistencial Solar Mount Auburn ou professores titulares de psicologia na Universidade Harvard. O incêndio devastador consumia a todos. Ninguém saía vivo" (Para sempre Alice, página 115)