quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Mudanças no DSM-5: despatologização aspie e trans?



No dia 1º de Dezembro de 2012, o conselho diretor da Associação Psiquiátrica Americana (APA), aprovou a revisão final da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o DSM-5 - também conhecido como a Bíblia da Psiquiatria, embora sua influência extrapole em muito a atuação psiquiátrica. Dentre as inúmeras mudanças, destaco duas realizadas pela APA (saiba mais aqui, aqui e aqui): 1) eliminação do diagnóstico de Síndrome de Asperger, que será, a partir de 2013, incorporado ao diagnóstico guarda-chuva de Transtorno do Espectro Autista e 2) remoção do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero, substituido pelo de Disforia de Gênero. Com relação à estas modificações, cabe a reflexão: trata-se de um movimento de despatologização ou somente de mudanças na nomenclatura e localização dentro do manual?


Com relação à primeira alteração, o argumento da APA é de que a incorporação de diversos diagnósticos em somente um favoreceria um processo diagnóstico mais consistente e preciso das crianças com autismo. Segundo a entidade, inúmeras pesquisas realizadas por cientistas de diversos países, apontaram para a existência de um continuum, de leve a greve, entre as diversas manifestações autísticas e não somente de um “sim ou não” para cada transtorno específico. A APA alerta, no entanto, que tal modificação nos critérios não implicará em qualquer alteração no número de pacientes que recebem tratamento para distúrbios do espectro do autismo em centros de tratamento. Isto significa que uma pessoa que hoje possui o diagnóstico de Asperger, continuará tendo acesso aos tratamentos que recebia. Mas uma pergunta se faz necessária: será que, no decorrer do tempo, haverá uma diminuição no número de pessoas diagnosticadas? Difícil saber, mas provavelmente ninguém que hoje é considerado Asperger ficará sem um diagnóstico. Neste sentido, parece tratar-se mais de uma ampliação do diagnostico de autismo, do que de um movimento de despatologização da Síndrome de Asperger. De qualquer maneira, não é uma mudança pequena. Afinal, os nomes dos transtornos conformam identidades. E muitos indivíduos atualmente, no Brasil e no mundo, se identificam como Aspies, mesmo que seja para criticar o diagnóstico e propor sua despatologização. Em 2004 foi criado nos EUA o movimento Aspie for Freedom, que defende a ideia de que os autistas e os aspies não são deficientes ou doentes, mas sim diferentes - assim como os gays, negros e canhotos. Sendo assim, não precisam ser tratados ou curados, mas entendidos e respeitados enquanto "neurodiversos", ou seja, diferentes dos "neurotípicos", que são todos os não-autistas. Afinal, argumentam, se a neurodiversidade é uma doença, a "neurotipicidade" (ou seja, a normalidade) também o é. Sobre esta visão, é muito interessante conferir o irônico site do Instituto para o Estudo do Neurologicamente Típico, criado por um autista, que define a "síndrome neurotípica" como "um transtorno neurobiológico caracterizado pela preocupação com questões sociais, delírios de superioridade e obsessão pela conformidade". Alguém aí se identificou com este diagnóstico? Para um aprofundamento destas questões, recomendo o artigo O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade, do filósofo (e meu professor) Francisco Ortega.




Já a segunda modificação aprovada pela força-tarefa do DSM-5, isto é, a retirada do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero do futuro manual, poderia apontar para um movimento concreto de despatologização da transexualidade. Será? De acordo com o site da Campanha Internacional Stop Trans Pathologization – STP 2012, um de seus objetivos principais é a retirada da categoria “disforia de gênero/ transtornos de identidade de gênero” das próximas edições dos manuais diagnósticos (DSM e CID). Na recente mudança, foi-se eliminado o rótulo de Transtorno de Identidade de Gênero, mas o de Disforia de Gênero permanece. A perspectiva parece ter sido eliminar a palavra "Transtorno", que traz consigo a ideia de uma doença mental, substituindo-a pela teoricamente menos negativa "Disforia", que apontaria para um sofrimento emocional relacionado à incongruência entre sexo e gênero. Segundo a pesquisadora Jaqueline Jesus (nos comentários desta notícia): "A APA não despatologizou a transexualidade, apenas a realocou dentro do Manual, e a agregou com outras expressões transgênero dentro da categoria 'disforia de gênero', considerando assim que todas as pessoas trans sofrem por terem essa identidade de gênero. Sinto, mas isso ainda é patologizar". Ao mesmo tempo, dentro do próprio movimento pela despatologização trans, existem aqueles, mais pragmáticos, que se posicionam favoráveis à manutenção da medicalização da transexualidade, haja vista que muitos sujeitos trans - mas não todos - desejam se submeter à cirurgia de redesignação sexual. E, para isso, o aval médico é, atualmente, indispensável. Para estas pessoas, a recente modificação no DSM-5 talvez possa representar um avanço. Mas não para outras, que defendem a total retirada da transexualidade tanto do DSM quanto do CID, por acreditarem, como Judith Butler, que 

"O diagnóstico reforça formas de avaliação psicológica que  pressupõem que a pessoa diagnosticada é afetada por forças que ela não entende. O diagnóstico considera que essas pessoas deliram ou são disfóricas. Ele aceita que certas normas de gênero não foram adequadamente assimiladas e que ocorreu algum erro ou falha. Ele assume pressupostos sobre os pais e as mães e sobre o que seja ou o que deveria ter sido a vida familiar normal. Ele pressupõe a linguagem da correção, adaptação e normalização. Ele busca sustentar as normas de gênero tal como estão constituídas atualmente e tende a patologizar qualquer esforço para produção do gênero seguindo modos que não estejam em acordo com as normas vigentes".

Deste ponto de vista, as modificações realizadas pela equipe do DSM-5 não parecem ter modificado em nada o caráter patologizante/estigmatizante do autismo e da transexualidade. Talvez ainda não tenha chegado a hora destas configurações identitárias serem efetivamente despatologizadas e desmedicalizadas, como ocorreu com a homossexualidade algumas décadas atrás. 


Update 07/12/12: Além da eliminação da Síndrome de Asperger e do Transtorno de Identidade de Gênero, diluídos em outras categorias, outras alterações foram realizadas no DSM-5 (veja aqui um release da APA com todas as modificações). Dentre os novos transtornos catalogados estão: o Transtorno da Acumulação Compulsiva (Hoarding Disorder), o Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica (Binge eating desorder), Transtorno da Escoriação (Excoriation Disorder), Transtorno da Desregulação do Humor Disrupitivo (Disruptive Mood Dysregulation Disorder, mais conhecido como "birra"), etc. Outra alteração importante foi a retirada do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de depressão, o que significa que em breve, alguém que acabou de perder uma pessoa querida poderá ser diagnosticado com Depressão. A indústria farmacêutica deve estar dando pulos de alegria...

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Ser formado em Psicologia é igual ser Psicólogo?



Para quem não sabe, dois ícones do conservadorismo brasileiro - o pastor evangélico Silas Malafaia e a senadora ruralista Katia Abreu - são psicólogos. Ou melhor, se formaram em Psicologia e estão inscritos no Conselho Federal de Psicologia (CFP), embora não exerçam a profissão. Uma rápida pesquisa no Cadastro Nacional dos Psicólogos prova que ambos estão realmente inscritos e ativos em seus respectivos Conselhos Regionais (ver imagem abaixo). Deve haver algum motivo para manterem-se ativos, pagando a anuidade do CFP, mesmo que não exerçam a profissão e não precisem da Psicologia para viver. Afinal, ele é pastor e ela senadora e empresária pecuarista. Devem existir outras razões para utilizarem-se publicamente do título de Psicólogo. Razões, imagino, muito pouco nobres...


Com relação ao pastor Silas, não encontrei em seu site oficial (vitoriaemcristo.org) nem em seu perfil no Twitter, nenhuma menção à sua formação em Psicologia, o que apontaria para uma certa honestidade no uso que ele faz da alcunha de Psicólogo já que, efetivamente, ele não atua como um. No entanto, em debates públicos (como na audiência na Câmara dos Deputados ontem, veja o video no final do post), Silas costuma expôr o fato de ter se formado em Psicologia como que para respaldar e dar uma certa credibilidade "científica" à sua fala, mesmo que na realidade não haja nada de Psicologia, muito menos de ciência no que ele diz. Seu discurso é eminentemente religioso e político - e politicamente conservador



Por exemplo, em um discurso proferido na Câmara dos Deputados em 2011, Silas afirmou o seguinte (fonte): “Eu sou psicólogo também, e homofobia é sentir aversão a um homossexual e querer agredir, maltratar. Existe uma diferença entre criticar comportamento e discriminar pessoas. Eles fazem um jogo muito lindo: eles dizem que criticar comportamento é discriminação”. Fica claro que a afirmação "sou psicólogo" é utilizada na tentativa de validar o que ele diz em seguida. Um site gospel chega a afirmar o seguinte sobre esta questão: "O pastor se formou em psicologia clínica [???] e não exerce a profissão, mas faz com frequência menção a sua formação nas pregações aos fiéis". A formação de Silas aparece em destaque também em seus DVDs de auto-ajuda, por exemplo, no Vencendo a Depressão (ver abaixo). No entanto, importante ressaltar que as soluções apresentadas por ele para este e outros problemas, são eminentemente religiosas. Afirmar-se psicológo e vender fé como psicologia me parece mais uma estratégia comercial do que algo coerente e embasado nas teorias psicológicas - se a Psicologia é ciência ou não, discutirei em outro momento.




Segundo notícia do ano passado, O CRP-RJ recebeu diversas denúncias do movimento gay contra Silas, por suas declarações homofóbicas - que batem de frente com a Resolução 01/99 do CFP (o artigo 4° estabelece que "os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica"). Um processo disciplinar foi aberto contra ele e, ao que tudo indica, não deu em nada, pois sua inscrição no conselho permanece ativa. Questionada sobre o processo de Silas no CRP, a "Psicóloga Cristã" Marisa Lobo - que está com um processo disciplinar no CRP-08 pelos mesmos motivos - disse em uma entrevista se tratar de perseguição heterofóbica e religiosa e não acredita que ele será cassado. Será que ela terá a mesma sorte? 



Finalmente, com relação à Katia Abreu, a informação de que é Psicóloga, encontra-se destacada em seu perfil no Twitter, aparecendo antes mesmo do título de senadora. Em entrevista para a Agência Senado (ver aqui), ela disse o seguinte: "Eu estava no último ano de Psicologia. Pretendia ser uma grande psicanalista. E aí eu tive que tocar a fazenda. Tinha um filho de 4 anos, outro de 1 ano e estava grávida de dois meses. Um ano depois que meu marido morreu foi criado o estado do Tocantins, em 1988. Aí eu fui para a fazenda e comecei a trabalhar pra criar os meninos". Ao que tudo indica, ela nunca atuou como psicóloga. O que não consigo entender é porque, depois de tanto tempo atuando como política e empresária pecuarista, ela ainda paga a anuidade do CFP e afirma-se publicamente psicóloga. 


Uma questão importante, que gostaria de trazer como reflexão, é a seguinte: legalmente, qualquer pessoa que finaliza um curso de Psicologia, em qualquer universidade, faculdade ou centro universitário, e obtém um diploma válido, pode ser considerado Psicólogo. No dia seguinte à obtenção do diploma, esta pessoa pode atuar em qualquer área da Psicologia e, publicamente, apresentar-se e dar declarações com o título de Psicólogo. E mais: mesmo que a pessoa não atue ou nunca tenha atuado como psicólogo(a), ela pode falar o que quiser e dizer-se publicamente psicólogo(a). 
Não considero isso correto, haja vista que certas declarações acabam prejudicando a imagem e a credibilidade de toda a categoria, mas é assim que a coisa funciona no Brasil. Ao mesmo tempo, censurar é uma péssima opção. Alguém imagina alguma solução possível para este problema? 




Update 30/11/2012: Encontrei uma fala da Katia Abreu que deixa explícito que, como Silas, ela usa o fato de ter se formado em Psicologia em momentos estratégicos. Em uma audiência na Comissão de Constituição e Justiça, ela deu a seguinte declaração  (fonte): "Sou psicóloga. E percebo que o governo tem uma obsessão compulsiva pelo gasto, que precisa ser tratado urgentemente". Ou seja, ela usa de sua "autoridade de psicóloga" para diagnosticar o governo. Que absurdo!

domingo, 25 de novembro de 2012

Veja e a indústria farmacêutica: jornalismo ou propaganda?



Ontem, passando por uma banca de jornal, vi a capa da edição desta semana da revista Veja: "Depressão: A promessa de cura - A cetamina é a primeira esperança de tratamento totalmente eficaz da doença que afeta 40 milhões de brasileiros". Fiquei consternado! Na verdade, nem sei como ainda me surpreendo com esta revista, que representa o que há de pior no jornalismo nacional - e mesmo internacional. Não digo isso somente porque discordo de suas posições políticas conservadoras mas porque, mesmo em termos jornalísticos básicos, ela comete erros absurdos, inclusive nas seções não-políticas. 

Especificamente com relação aos assuntos ligados à área da saúde, é conhecida - e já analisada em alguns trabalhos acadêmicos - a estreita e promíscua ligação da revista com a indústria farmacêutica. Não é a primeira vez que a Veja, sob a aparência de um jornalismo isento, faz propaganda descarada de alguma medicação. Como afirma a pesquisadora Fernanda Lunkes, que analisou em sua tese de doutorado o discurso de medicalização em várias reportagens da revista, "sob um efeito de cientificidade, compreendo que as matérias se inscrevem em um negócio, e um bom negócio, à indústria farmacêutica e à Veja. As matérias, inseridas principalmente nas Seções medicina e saúde, filiam-se ao discurso da venda e do lucro, onde quem mais ganha é quem vende o produto". Em outro trecho ela afirma que a revista "direciona seus argumentos a favor da indústria e não produz marcas linguísticas de resistência a ela. Ao contrário, ao trazer termos relacionados ao contexto capitalista, como venda, mercado, consumo, ela torna o medicamento um produto a ser vendido/consumido por qualquer um e muitas vezes sem ser por motivos de doença e sim porque está 'na moda' (e se está na moda é preciso consumir)". Por tudo isso, não seria um exagero afirmar que a revista presta um verdadeiro desserviço à população brasileira em matéria de saúde. Ao invés de informar, faz propaganda.


Há pouco mais de um ano, a revista publicou uma reportagem de capa sobre um "milagroso" remédio para emagrecer  "sem grandes efeitos colaterais". Terá sido coincidência sua publicação  justo num momento em que o governo se mobilizava para restringir a venda de alguns remédios para emagrecer? Certamente não. Afinal, sempre que alguma ação governamental é realizada no sentido regulamentar ou restringir o uso de certas medicações, eis que surge a Veja para defender os interesses da indústria. Nesta outra capa, a revista é ainda mais explícita em suas intenções.


Com relação à reportagem de capa desta semana ainda não a li  pois, como me recuso a comprar a revista, estou esperando ela cair na internet - o que ainda não ocorreu. Desta forma, somente analisando a capa, faço algumas considerações preliminares:

1) Como é possível falar em cura para uma doença ou transtorno ou problema como a depressão? Afirmar que existe uma cura para a depressão é como dizer que é possível eliminar definitivamente qualquer tristeza ou ansiedade ou ainda as dúvidas, os receios e os medos, dos quais, dentre outras coisas, a depressão é consequência. É claro que existe algum componente biológico na depressão, mas isto não significa dizer, como querem os psiquiatras modernos, que a depressão é simplesmente um problema genético/cerebral que pode ser eliminado por via química. A coisa é muito mais complexa que isto, mas a revista compra (e vende) muito bem, de forma acrítica, este discurso biologizante/ medicalizante. Uma curiosidade é que há 13 anos, em março de 1999, a revista divulgava, em sua capa, que o mal da depressão "já pode ser vencido com a ajuda de remédios". Será que em 2025 teremos uma nova capa da Veja prometendo mais uma cura definitiva para a "doença da alma"?



2) Sério que 40 milhões de pessoas tem depressão no Brasil? Isto equivale a cerca de 20% da população. Como já discuti neste post, os altos índices de depressão no Brasil e no mundo provavelmente refletem menos a realidade endêmica do problema e muito mais a ampliação e a banalização do diagnóstico moderno de depressão, que desconsidera o contexto em que os sintomas emergem e se mantém. Não sei qual a fonte utilizada pela Veja, mas mas o curioso é que a mesma revista, em 2009, divulgou que 17 milhões de brasileiros tinham depressão. Será que em três anos os índices praticamente triplicaram? Não creio. Este estudo epidemiológico internacional de 2011 aponta que cerca de 10% dos brasileiros teriam depressão. Metade do que aponta a Veja; 

3) A montagem utilizada pela revista para ilustrar a capa se utiliza do clichê da "pílula da felicidade", contrapondo a imagem de uma jovem triste à sua (nova) versão feliz. Esta montagem se assemelha muito àquelas produzidas pela indústria farmacêutica para divulgar seus produtos - seja para médicos ou para a população em geral (o que no Brasil, felizmente, é proibido). Esta semelhança não pode ser simplesmente mera coincidência.



4) Com relação à cetamina (também chamada de ketamina), trata-se de um anestésico que tem sido cada vez mais consumido na Europa e nos EUA. Algumas pesquisas, como a relatada por esta reportagem, apontaram para o alívio imediato dos sintomas da depressão por alguns indivíduos após a ingestão da medicação. O fato é que existem ainda poucos e inconclusivos estudos sobre os efeitos antidepressivos da droga, o que é muito diferente de afirmar que os cientistas descobriram um "tratamento totalmente eficaz" para a depressão. O que esta manchete sensacionalista não diz é que o efeito da cetamina é limitado e que, como qualquer medicação, gera efeitos colaterais e pode, inclusive, levar à dependência. Este estudo alerta ainda para o fato de que "o seu uso não se restringe apenas à prática clínica ou pesquisa, sendo frequentemente utilizada como droga de abuso pelos jovens em festas como um potente alucinógeno". Não sei ainda se isto é mencionado no decorrer da reportagem - o que duvido muito -, mas a capa, pelo menos, passa a ideia de uma medicação 100% eficaz e sem efeitos colaterais. 

A pesquisadora Lia Hecker Luz, neste estudo sobre a "pílula da longevidade à venda nas páginas da Revista Veja" conclui, após analisar 50 matérias sobre saúde, que a revista "assume esse papel de anunciar aos seus leitores, formados pela classe média, o que há de novo no mercado farmacêutico e de equipamentos de saúde, dando às matérias de Jornalismo científico caráter publicitário, citando nomes comerciais de medicamentos e de seus fabricantes" E conclui com um importante alerta: "Antes de ler as matérias da revista, o leitor deve lembrar-se das prováveis respostas a duas questões: quem tem interesse na notícia e quem vai lucrar com a divulgação da mesma". Quem NÃO vai lucrar, certamente, é o leitor da revista.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Humor Psi: A Psicobotânica

Segue o segundo texto escrito por mim em 2007 para o Jornal do Centro Acadêmico.

Apresento-lhes a mais nova área da Psicologia: a Psicologia Botânica. O que até bem pouco tempo estava restrito a um pequeno número de jovens pesquisadores agora se espalhou pelo mundo. A Sociedade Botânica do Brasil (SBB) juntamente com a Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), fundaram, numa parceria inédita, a Sociedade Brasileira de Psicologia Botânica (SBPB). E já estão organizando o primeiro periódico sobre o tema. Especulam-se que chamar-se-á Journal of Botanical Psychology, atendendo às inúmeras demandas internacionais.

Isto para não falar do I Congresso Latinoamericano de Psicologia Botânica, marcado para Dezembro. Nele serão apresentados os resultados dos últimos estudos e pesquisas realizados no Brasil e no mundo. Além disso, serão lançados inúmeros livros, dentre eles, “A Psicologia Botânica, Freud e a Pós-modernidade” (Ed. Imago), “A fruta como sintoma” (Ed. Casa do Psicólogo), “O caule fala” (Ed. Vozes), "Vencendo a adubofobia" (Ed. Artmed) e os mais aguardados “Plantas: Quem ama educa” e “O que toda planta inteligente deve saber” (Ed. Sextante), ambos do prestigiado autor Içami Tiba.

Por todo o país, teses de mestrado e doutorado tem sido escritas sobre o tema, a partir de inúmeras abordagens. Por exemplo, a tese de mestrado “O feminino e a Psicanálise Botânica – Um estudo de caso” analisa o caso de uma samambaia, chorona e histérica que, com todo o corpo paralisado, passou por cinco anos de análise e agora compreende que não pode querer ser outra coisa além do que se é. Continua paralisada, porém feliz. 

Já a tese de Doutorado “Para-psicobotânica – Análise de uma planta sensitiva”, analisa o comportamento de uma Mimosa pudica, espécie de vegetal que fecha seus folíolos ao mínimo toque. Conclui, após complexas teorizações, que tudo o que se move é animal e que todo animal possui alma. Desta forma, todas as plantas são seres animais e espirituais. 

O Greenpeace foi além e lançou à campanha “Planta também é gente! Você comeria um parente?”. E a coisa segue por aí... É o eterno retorno. Começa como  psicologia e termina como histeria...


Update (25/11/2012): Àqueles que ainda duvidam que plantas tem sentimentos e sofrem, recomendo o video abaixo, que reproduz um clássico experimento de Psicobotânica, intitulado "O grito da cenoura".

Humor Psi: Personal Psych



Em 2007, no último ano da faculdade, escrevi alguns textos cômicos sobre a Psicologia e os Psicólogos para o Jornal do Centro Acadêmico do curso. Segue o primeiro deles.

Tendo em vista a multiplicidade de áreas de atuação do psicólogo (clínica, escolar, organizacional, jurídica, etc.), lanço mais uma possibilidade, inacreditavelmente inédita: a atuação “personal”. Imaginem esta cena: você chega em casa cansado, levemente estressado, precisando de alguém para conversar (na verdade, para lhe escutar). Você então abre seu guarda-roupa e tchanam: eis que surge seu personal psych! Com sua escuta diferenciada ele ouve atentamente seus problemas, suas frustrações, seus desejos, interpreta seus sonhos, seus atos falhos, questiona sobre sua infância, sobre sua mãe... Aliviado, você fecha a porta do guarda-roupa, toma aquele banhozinho gostoso, veste aquele pijaminha cheiroso e dorme. Feliz, completamente feliz. Não seria uma maravilha?

Agora imaginem outra cena: você chega em casa cansado, levemente estressado, você quer muito dormir, mas seu quarto está uma bagunça e isto lhe incomoda. Você liga então para sua namorada e desabafa sobre seu problema. Ela, mau-humorada como sempre, fala algo do tipo: “E eu com isto?”. Você desliga o telefone mais frustrado do que quando ligou. Neste momento lhe ocorre uma idéia: ligar para a ABPP (Associação Brasileira dos Personal Psychs). Você liga e a secretária lhe informa que, dentro de 2 dias um PP do tipo O (organizacional) estará chegando em sua residência. Você reclama do valor do frete, mas acaba aceitando. Dois dias depois, o interfone toca. Você atende. É ele, é ele! Você não consegue esconder sua ansiedade. Você abre a porta e tchanam: eis que surge seu personal psych! Agora você tem certeza de que sua vida vai mudar.  

A primeira coisa que ele faz (antes mesmo de lhe cumprimentar) é analisar o ambiente onde você está inserido: observa atentamente todos os detalhes de sua casa, todas as coisas fora do lugar, todos os cantos empoeirados, todos os CDs desordenados. Decide então implantar o Programa 5S de Qualidade. Descarte, organização, limpeza, saúde e autodisciplina. Tudo o que você precisa! Implantado o PQ (programa de qualidade), o PP lhe aplica uma PC (pesquisa de clima) e descobre, após analisar exaustivamente os dados quantitativos, que você tem problemas de relacionamento interpessoal. Ele, então, pela primeira vez, lhe dirige a palavra perguntando: “Como vai?”, e você responde que tem brigado muito com sua namorada. Identificada a variável interveniente, ele decide inseri-la em um PDV (programa de demissão voluntária) mas, como a variável não quis colaborar, o PP inicia então um processo OP (out-placement), demitindo-a por conta própria e encaminhando-a para a PQP. Recolocada a antiga colaboradora, o PP decide iniciar um processo de recrutamento de candidatas à vaga, agora em aberto. 

A partir dos anúncios em jornais e sites de namoro, aparecem cerca de 20 candidatas. Destas 5 são imediatamente descartadas por não se encaixarem no perfil mínimo exigido pelo cliente (você!). As demais candidatas passam por um rigoroso processo seletivo constituído por uma bateria de testes psicológicos (BAI, BDI, Escala de Neuroticismo, Escala Kinsey, etc), entrevistas e dinâmicas de grupo. Ao final 3 são selecionadas e apresentadas ao cliente (você! você!). A escolhida passa, então, por um longo programa de T&D (treinamento e desenvolvimento) sobre sua vida, seus defeitos, suas manias e chatices. E a cada dois meses uma AD (avaliação de desempenho) e uma PC (pesquisa de clima) são aplicados e rigorosamente analisados para averiguar a qualidade (inclusive sexual) do seu relacionamento e da sua vida. Isto para não falar nas auditorias semanais do Programa 5S. Mas nada disto lhe incomoda. Agora sim você pode falar que sua vida está perfeita. Você está tão feliz, mas tão feliz, mas tão feliz, que pensa “Como eu vivi sem meu Personal Psych?”. Adquira já o seu*.

* Além do tipo C (clínico) e do tipo O (organizacional), existem PPs do tipo EE (escolar e educacional). Isto sem falar nos modelos especiais: E (esporte), J (jurídico), T (transito) e M (misto). Para os menos abastados, versões genéricas podem ser adquiridas. Mas, cuidado! Modelos falsificados estão sendo vendidos no mercado como originais. Os efeitos colaterais são fortíssimos.





OBS: No próximo artigo discutirei uma possibilidade ainda mais recente e inovadora: a psicologia botânica. Planta também sofre, também ama, também se sente paralisada diante das adversidades da vida. Não podemos nos esquivar de tal problema.

sábado, 10 de novembro de 2012

Entrevista com o cartunista Miguel Montenegro (Psicopatos)


Quem acompanha este blog, sabe da minha paixão por cartuns, charges e quadrinhos, assim como por assuntos do mundo psi. E quando algum artista consegue unir estes dois campos, criando cartuns inspirados em temas psi, eu vou à loucura! E eis que encontrei no Facebook uma fã-page de uma série de cartuns chamada Psicopatos e desde então acompanho os geniais desenhos do cartunista português Miguel Montenegro. Miguel trata em seus cartuns de questões absolutamente relevantes à área psi e não poupa críticas nem aos psiquiatras, representados pela figura de um porco, nem aos psicanalistas, representados por um ser que ele designa de gavião-vampiro. Segundo seus cartuns, não são só os psiquiatras que rotulam e patologizam; os psicanalistas também o fazem, com a diferença de não medicarem. O teste de Rorschach e até mesmo a "vaca sagrada" da psicanálise, são alvos constantes de seus cartuns.



Resolvi contatar Miguel para uma entrevista, assim como fez o psicólogo Vladimir Melo com o cartunista Pacha Urbano (autor da genial série "As traumáticas aventuras do filho do Freud" - veja a entrevista com ele aqui). Miguel gentilmente aceitou o convite. Enviei, então, as perguntas por email e ele respondeu. Segue abaixo o resultado:

Miguel, quando você começou a desenhar?

Desenho desde que me lembro, mas foi com onze anos que decidi ser ilustrador profissional quando crescesse. O meu sonho era fazer banda desenhada para a Marvel Comics. Quando consegui, o interesse foi esmorecendo aos poucos. Ter de desenhar oito horas por dia, todos os dias, pode-se tornar aborrecido.

Atualmente, você desenha profissionalmente ou somente por hobby?

Eu continuo a fazer trabalhos de ilustração para publicidade em regime free-lance, sobretudo storyboards, porque é a minha profissão. O meu objetivo é poder desenhar só por prazer, mas é possível que invista novamente na área da ilustração. Às vezes sinto aquela vontade antiga de voltar a desenhar mais regularmente. Normalmente passa rápido, mas vamos ver como é de futuro.




Qual sua relação com a Psicologia e com a Psicanálise?

Eu estou a terminar o mestrado em Psicologia Clínica. Neste momento estou a estagiar no serviço de psiquiatria do Hospital Sta. Maria, em Lisboa. Este ano espero ainda entrar na Sociedade Portuguesa de Psicoterapia Existencial.

Já fez análise ou psicoterapia em algum momento da sua vida?

Ando atento à procura de um terapeuta para dar início a esse processo. É tarefa difícil. Gostava de alguém cuja base teórica fosse fenomenológico-existencial, mas que também tivesse formação psicanalítica. Só conheço uma pessoa com essas características. É um professor meu com quem tenho uma relação próxima, pelo que não é a pessoa indicada. Mas não tenho pressa. Vai acontecer quando tiver de ser, se tiver de ser.



Quando e de que forma surgiu a ideia dos Psicopatos?

Os Psicopatos estão comigo desde o fim do primeiro ano do curso de psicologia. Na altura, a ideia era fazer uma tira ou outra, quando me confrontasse com algumas das contradições que encontramos nas “ciências” psicológicas, e que, manifestas de outra maneira, podiam ser mal aceites. Provavelmente por falta de tempo, fui adiando a ideia, e o primeiro Psicopatos nasceu em Fevereiro de 2012. Toda a gente gostou, até os professores de psicanálise. Só um é que me veio chatear, dando-me um raspanete em público. Enfim…Fiz mais duas ou três tiras, até que o ISPA, a minha universidade, mostrou interesse em publicar um livro de Psicopatos no fim do ano. Deram-me carta branca para desenhar o que quisesse, sem qualquer censura. Eu fiquei muito contente com a ideia, e passei a tentar produzir 2-3 tiras por semana. Agora que já temos quase 150 – embora só cerca de metade estejam publicadas no Facebook –, vamos começar a pensar em publicar tudo em livro.



Noto em seus cartuns, uma relação de amor e ódio com a psicanálise. Qual sua visão da psicanálise e dos psicanalistas?

É interessante essa observação. Algumas pessoas acham que eu odeio a psicanálise, o que é errado. Outras, mais perspicazes, percebem que o que faço é apresentar uma visão crítica da psicanálise, no sentido de a tentar compreender na sua essência. Nesse intuito, comecei a notar que algumas questões fundamentais ficam por responder: O Inconsciente existe? Se as pulsões são energias reais e não metafóricas, então porque não as conseguimos medir como uma energia típica da física? Como pode a psicanálise dizer-se humanista se desconsidera o individuo consciente a favor dessa coisa a que chama de Inconsciente e que nunca ninguém viu? A psicanálise diz-se ciência, mas não apresenta nenhum objeto concreto e real passível de ser estudado pelo método cientifico. Está mais próxima da astrologia do que da medicina.




Tenho uma curiosidade: qual a penetração da psicanálise em Portugal? Ela é disseminada por aí como é aqui no Brasil e na França?

Em Portugal, a psicanálise ainda é a corrente dominante. A corrente cognitivo-comportamental cada vez tem mais relevância, sobretudo pelas vantagens que apresenta em contexto hospitalar e institucional. Infelizmente, a corrente fenomenológico-existencial só agora está a aparecer, havendo menos de vinte terapeutas no pais todo. Espero poder vir a contribuir para a sua disseminação.




Percebo também uma crítica à psiquiatria e ao excesso de medicação. Como enxerga esta questão?

Considero que não há medicação nem a mais nem a menos. Ela deve ser aquela que o próprio deseja tomar, como e quando assim entender. Não encontro fundamento para que umas drogas sejam legais e outras ilegais, para além da manutenção de um monopólio financeiro por parte de alguns grupos económicos, todos eles associados à medicina, o que considero, no mínimo, imoral. 



Tal como em relação à psicanálise, nada tenho contra a psiquiatria em si mesma, como nada tenho contra a astrologia ou contra o nutricionismo. Defendo o direito de qualquer adulto poder aceder livremente a qualquer prestação de serviço, desde que o contrato entre si e o prestador de serviços seja realizado numa base de escolha livre e honesta entre ambas as partes. A minha atitude é sobretudo antifraude e anti-coerção. A psicanálise, ao dizer que é ciência, comete um fraude; ao “tratar” crianças, é coerciva. De igual forma, a psiquiatria, ao dizer que é medicina legítima com fundamento científico, comete um fraude: doenças mentais não são doenças reais, são doenças metafóricas; ao internar e medicamentar pessoas contra a sua vontade, é coerciva.

Agradeço muito sua disponibilidade por ceder esta entrevista. Um grande abraço.

Obrigado, Felipe. Foi divertido



Veja mais cartuns do Miguel aqui.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

"Amor por contrato" e a grama mais verde do vizinho


No último fim de semana, zapeando pelos canais a cabo, acabei caindo no filme "Amor por contrato", que estava passando no Telecine Touch. Dificilmente pararia para assistir a um filme com este título e neste canal, mas a intuição prevaleceu e resolvi arriscar. E foi uma grata surpresa! Não que o filme seja uma obra-prima. Pelo contrário, é bobo em vários momentos e raso de uma forma geral, mas a ideia central é interessantíssima. "The joneses", nome original do filme, conta a história da família Jones, uma família típica dos comerciais de margarina: Steve e Kate e os filhos adolescentes Mick e Jenn moram em uma casa luxuosíssima repleta de aparelhos ultramodernos, possuem - e exibem sem pudor - automóveis caros e potentes e, além de vomitarem dinheiro e poder, esbanjam felicidade. Steve e Jenn demonstram grande paixão um pelo outro e parecem ter uma vida sexual incrível. Os filhos adolescentes são rebeldes e comportados na medida certa. Todos são ricos, bonitos e carismáticos. Enfim, a família Jones seria perfeita se não fosse tudo uma grande mentira. Outros filmes, como o Beleza Americana, já exploraram a falsidade generalizada do chamado "american dream", mas no caso de Amor por contrato - e como o próprio título em português já denuncia - a falsidade está em um outro nível [a partir daqui haverá vários spoilers!].


Os Jones nem mesmo são uma família. Na verdade, eles são funcionários da empresa Lifeimage, que utiliza uma inesperada estratégia de marketing: ela contrata sujeitos de "boa aparência" (leia-se: brancos e magros) para atuarem como membros de uma família perfeita - a idéia é: se fosse uma família "real" nunca poderia ser perfeita. O objetivo desta empresa - e, portanto, de seus funcionários - não é vender diretamente produtos, mas gerar insatisfação e estimular o desejo de consumo de produtos de luxo nos vizinhos. A estratégia é simples e genial: criar uma família com a grama mais verde do que toda a vizinhança. Os Jones não vendem coisas, vendem ilusões. E de fato eles atingem este objetivo: um vizinho em especial, o Larry, com medo de "ficar para trás", começa a comprar vários produtos utilizados por Steve, endividando-se tremendamente. Quando Larry vê Steve com um carro maior e mais potente que o dele (e a comparação com o pênis não seria inadequada neste caso) ele se sente diminuído e, para aliviar este sentimento de frustração, decide comprar um carro novo. Na verdade, Larry não quer ter o que Steve tem, ele quer ser como Steve. Constatando a falência de seu próprio casamento, Larry passa a comprar mais e mais coisas, talvez na esperança de tornar sua vida e seu relacionamento tão perfeitos e completos como, supostamente, os de Steve. O problema é que Steve sempre o supera, gerando uma frustração constante em Larry. Frustração semelhante talvez à que sentem vários indivíduos aficionados por tecnologia ao comprarem o tablet mais moderno e verem, em pouco tempo, novos equipamentos ainda mais modernos e "completos" surgirem no mercado. O que o filme expõe muito bem, ainda que de forma esquemática, é que frustração e consumo andam juntos. Talvez seja por isso que quanto mais frustrados estivermos com nossas vidas mais susceptíveis estamos a consumir coisas ou idéias - o enorme consumo de livros de autoajuda está aí para provar. Os marketeiros e publicitários sacaram isto faz tempo. Quanto mais eles conseguirem nos convencer de que nós e nossas vidas são muito menores do que poderiam ser, mais estamos abertos ao que eles tem para nos vender.


Esta estratégia vale para muitas coisas, inclusive para doenças. É tática conhecida da indústria farmacêutica, em função da restritiva regulamentação no marketing de medicamentos em quase todo o mundo, divulgar não os remédios mas as doenças. Não é coincidência que grande parte das associações de defesa dos portadores de diversos "transtornos mentais" é patrocinada por algum laboratório farmacêutico (dê só uma olhada nos apoiadores desta entidade na parte de baixo do site). A idéia é que quanto mais pessoas se identificarem com o diagnóstico, melhor para eles. E nada melhor para fazer as pessoas acreditarem que estão doentes do que exibir sistematicamente pessoas felizes - ou pelo menos mais felizes que você. Grande parte das propagandas funciona como os Jones: estabelecem padrões inatingíveis de saúde e felicidade que geram frustração e, logo, consumo - porque a indústria vende tanto o problema quanto a solução! No caso de Larry, não houve solução possível. Completamente endividado e desesperado, decide dar fim à própria vida, afogando-se na luxuosa piscina de sua casa. Diante da impossibilidade de ter a grama tão verde como a de Steve, Larry opta por eliminar toda sua frustração de uma só vez. E esta situação felizmente desperta Steve para a mentira e a crueldade de seu trabalho. Como não poderia deixar de ocorrer num filme hollywoodiano, tudo acaba bem: Steve se arrepende de seus atos, abandona o emprego e se apaixona de verdade por sua esposa de mentira - e ela por ele. Como seria bom se tudo ocorresse assim na vida real. Melhor ainda seria se conseguíssemos seguir o conselho do filósofo Gilles Lipovetsky (veja aqui): 

Os objetos de consumo vão proporcionar algum sentimento de evasão, mas não trarão paz, harmonia. Consumir não basta. A felicidade exige outra coisa, principalmente na relação com os outros e consigo. Quem entendeu isso faz política, se engaja em associações. É possível ter satisfação ajudando os outros, as crianças, sentindo-se útil, lutando pela ecologia. Isso não é consumo. O homem não pode se reduzir a um consumidor.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Sobre exames objetivos para problemas subjetivos



Em Abril deste ano, o site da Superinteressante publicou a seguinte reportagem: "Cientistas criam exame de sangue para detectar depressão em jovens" (leia aqui). Segue um trecho:


Hoje, médicos e psiquiatras fazem o diagnóstico da depressão com base no relato dos pacientes sobre seus sintomas – o que é algo totalmente subjetivo, ainda mais porque às vezes a tristeza tem motivo (perda de um ente querido, fim de um casamento etc.) e nem sempre isso é levado em conta. Agora, pesquisadores da Northwestern University (EUA) desenvolveram uma opção que pode ser muito mais confiável: um exame de sangue capaz de diagnosticar a doença em adolescentes e diferenciar a depressão maior e a depressão maior combinada com ansiedade. O teste, desenvolvido ao longo de um período de mais de 10 anos, pôde identificar mais de 25 marcadores genéticos (mais precisamente, no RNA mensageiro) para a depressão com base em estudos com ratos gravemente deprimidos e ansiosos (pois é, os bichos também podem ter dessas). Estudos adicionais em seres humanos descobriram que muitos desses marcadores também são válidos para adolescentes humanos, e a combinação entre eles permitiu aos pesquisadores usarem o exame de sangue por si só para determinar com precisão quais dos voluntários estavam deprimidos e/ou ansiosos e quais estavam completamente sãos. Mas uma das autoras do estudo, a professora de psiquiatria Eva Redei, disse ao site FoxNews.com que o teste não deve eliminar as conversas entre o médico e o paciente para o diagnóstico. A ideia é servir apenas como um complemento. “O teste apenas ajuda a informar. Queremos dar aos pacientes deprimidos – e existem muitos – a mesma chance que nós estamos dando para quem sofre de diabetes, hipertensão e outras doenças para as quais existem exames”, explicou ela.

A despeito da descoberta de marcadores biológicos ser o sonho dourado da Psiquiatria moderna, não acredito que ela possa um dia vir à prescindir da subjetividade da clínica, se quiser continuar existindo. Afinal, a psiquiatria só existe ainda em função desta subjetividade. Historicamente, sempre que foram descobertos marcadores biológicos para problemas psiquiátricos, eles deixaram de pertencer ao escopo da Psiquiatria e migraram para outras especialidades, em especial a Neurologia. Ou seja, a Psiquiatria, como a Psicologia, só existe ainda em função desta "incômoda" subjetividade. Negá-la, buscando marcadores biológicos objetivos, é como dar um tiro no próprio pé. Na verdade, existem autores que afirmam que a Psiquiatria está com os dias contados. No futuro, dizem, existirão somente neurologistas e "neurocientistas clínicos". Afinal, se problemas "mentais" são, na verdade problemas "cerebrais", quem melhor do que neurologistas e neurocientistas para entendê-los e tratá-los? Desta forma, somente levando em conta esta subjetividade não objetificável - e, portanto, irredutível ao cérebro ou aos genes -, é que a Psiquiatria (do grego, "médico da alma"), poderá continuar existindo. De uma forma geral, minha visão sobre exames objetivos para diagnosticar problemas subjetivos é perfeitamente expressa por este cartum.
 Traduzido e adaptado por mim mesmo. O original pode ser visto aqui.

Evento na UERJ debate o DSM-5


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

GUEST POST: A situação do psicólogo clínico brasileiro


No ano em que comemora 50 anos de sua regulamentação, a Psicologia está mais plural do que nunca. No entanto, a psicologia clínica ainda domina o imaginário da profissão - tanto entre leigos como entre os próprios profissionais. Muitos, talvez a maioria, daqueles que ingressam nas inúmeras faculdades de Psicologia espalhadas por todo o país, ainda sonham em abrir um consultório quando se formarem. Mas como é ser um psicólogo clínico no Brasil atualmente? Para tentar responder esta questão, convidei o psicólogo clínico, bacharel e mestre em filosofia Daniel Grandinetti para compartilhar, neste espaço, sua visão sobre esta problemática. Na verdade, esta é uma versão mais concisa de um post publicado por Daniel em seu blog, o No Gabinete do Psicólogo. Quando o li, há alguns meses, fiquei mexido com suas palavras. Mesmo que não concorde com tudo o que ele diz, não dá pra ficar indiferente à sua narrativa provocadora. Segue o texto do Daniel.

A Psicologia Clínica no Brasil pede ajuda; ou melhor, parece que sua situação está precária há tanto tempo, que ela se esqueceu de que nada está bom. Está conformada, quieta, comemorando os 50 anos de sua profissionalização neste país. Entretanto, dificilmente poderíamos entender a Psicologia Clínica no Brasil como uma profissão. É assim que o dicionário Aurélio define a expressão:

Profissão sf. 1. Ato ou efeito de professar (4). 2. Atividade ou ocupação especializada, da qual se podem tirar os meios de subsistência; ofício. 

O psicólogo clínico geralmente professa sua convicção nas técnicas e teorias que regem sua ocupação, que é bastante especializada. Nesse sentido, o exercício da Psicologia Clínica no Brasil é uma profissão. Mas, tirar sua própria subsistência através do exercício da clínica é uma tarefa herculínea para o psicólogo brasileiro. Poucos, em média, conseguem esse feito. Nesse sentido, a Psicologia Clínica brasileira é uma ocupação que mais se assemelha a um hobby do que a uma profissão. E, quando falo em hobby, não estou insinuando que o psicólogo exerce a clínica com pouca seriedade ou dedicação. Existem hobbies que exigem muito de tudo isso, além de profunda paixão. Aliás, é justamente nesse sentido que falo da clínica em Psicologia como um hobby: uma ocupação mantida em grande parte pela paixão, mas que não retribui com o sustento àquele que a exerce. 



O principal problema enfrentado pelo psicólogo clínico é a falta de interesse, por parte da sociedade, pelo serviço que ele deseja prestar. Ele descobre que nem sempre aquilo que as pessoas precisam (ou que nós pensamos que elas precisam) é aquilo que elas querem. A faceta mais perigosa da falta de interesse da sociedade é a sua internalização pelo psicólogo clínico. O psicólogo aprende que ele é o principal interessado naquilo que ele faz, e aprende a tratar com naturalidade o fato de viver num mundo que não deseja particularmente aquilo que ele tem a oferecer. 

No exercício da clínica, o psicólogo enfrenta a falta de interesse de seus pacientes fazendo a eles todo tipo de concessão. O paciente é tratado na conta devida de um cliente. O psicólogo toma a falta de interesse do paciente como um problema seu, e que, portanto, deve ser resolvido pela “melhora” dos serviços prestados por ele. Em meio à angustia constante da possibilidade de perder seus pacientes, o psicólogo se esquece de que o interesse na melhora é, deve ou deveria ser do paciente, não dele, psicólogo. 

No efetivo estabelecimento da Psicologia Clínica como profissão, o psicólogo aprende a tomar como natural o fato de que ele é sempre o interessado em prestar seus serviços, jamais as clínicas em que ele trabalha. Não há empregos para psicólogos clínicos. Ao contrário da maioria das demais profissões de saúde, não há demanda suficiente por serviços de Psicologia Clínica que justifique a contratação de um psicólogo clínico. A profissão de psicólogo clínico é autônoma quase por definição. 



Frente à inexistência de empregos para psicólogos clínicos, o profissional que decide por essa área tem duas possibilidades: Tentar ou o consultório particular ou as clínicas de Psicologia espalhadas por aí. Se ele não tiver uma fonte segura e constante de encaminhamentos de pacientes, a tarefa de manter um consultório particular se mostrará quase impossível. Restará a ele as clínicas de Psicologia. Nos contratos de serviço com elas, o psicólogo geralmente aluga seu espaço de trabalho e espera delas receber pacientes conveniados, em sua grande parte. Formalmente, o psicólogo não presta serviço algum à clínica; é a clínica que presta ao psicólogo seus serviços (o aluguel da sala), e por isso o psicólogo não tem direito de receber dela nada além do espaço que alugou. O encaminhamento de pacientes ao psicólogo pela clínica não faz parte do contrato. É quase uma “cortesia”. A clínica, por sua vez, recebe o pagamento fixo pelo aluguel, todo mês. Ao psicólogo não é dada qualquer garantia de que conseguirá retirar de seu trabalho pelo menos o necessário para pagar o aluguel. E uma vez que as clínicas cobram do psicólogo aluguel pelo preço de mercado, e repassam a ele entre dez e vinte reais por consulta de paciente conveniado (geralmente, muito mais próximo dos dez do que dos 20 reais), o psicólogo precisa atender uma grande quantidade de pessoas, contando que elas não faltem a nenhuma sessão, somente para pagar o aluguel. O resultado é que a conta quase nunca fecha, e o psicólogo clínico paga para trabalhar. Até o trabalho escravo, por definição, é mais vantajoso que o trabalho do psicólogo clínico. O escravo não recebe nada, mas tampouco paga para trabalhar. 

O Conselho Federal de Psicologia explicitamente relega o profissional representado por ele à sua própria sorte quando ele quer estabelecer contrato com uma clínica. Ao invés de criar normas e propor leis que evitem a exploração do psicólogo, o CFP apenas o aconselha a “tomar cuidado”, lhe desejando boa sorte! É fato que mais de 90% dos psicólogos brasileiros são mulheres. Mulheres são mais receptivas, estabelecem relações intimistas com mais facilidade, são mais acolhedoras, mais empáticas, compreensivas. Essas são qualidades que se encaixam perfeitamente no perfil ideal do psicólogo, e por essa razão a grande quantidade de mulheres psicólogas engrandece a profissão. Por outro, no entanto, o número elevado de psicólogas nos traz dificuldades. Mulheres casadas são geralmente sustentadas pelos maridos. E isso não é diferente no caso das psicólogas. Assim, as psicólogas não carregam sobre as costas o peso da necessidade de buscar sua subsistência. O pagamento da psicóloga geralmente fica todo com ela, ou então entra apenas como um complemento da renda do marido. As clínicas supracitadas atraem em grande parte psicólogas casadas, que não têm a preocupação direta com o ganho. Caso os psicólogos clínicos constituíssem uma classe de profissionais que trabalha pelo sustento próprio, e por provedores de família, o diálogo com essas clínicas e com qualquer um que explore o trabalho do psicólogo seria posto em outros termos. A exploração não aconteceria com tamanha facilidade, mesmo com a omissão do CFP a respeito. 



O psicólogo deve aprender a dizer não à exploração do seu trabalho. Não deve aceitar trabalhar em clínicas a não ser que seu saldo seja positivo no final do mês. Deve procurar fazer acordos em que a clínica ganhe proporcionalmente ao seu próprio ganho e à sua produtividade. Se o psicólogo produzir muito e ganhar muito, a clínica também ganhará. Se não produzir nada e não ganhar nada, a clínica nada ganhará. O psicólogo deve saber que a cada concessão abusiva sua a um paciente, e a cada sim dado àqueles que lhe exploram, toda a classe sai perdendo. Quem faz concessões excessivas não dá o valor devido ao seu próprio trabalho, e quem não valoriza seu próprio trabalho não pode cobrar a valorização dos outros. O psicólogo clínico está habituado a trabalhar sozinho em seu consultório. Por isso, ele se torna individualista. Acredita que o único interessado em seu trabalho é ele mesmo, e não percebe que o interesse pelo trabalho de seu colega também pode despertar o interesse dele pelo seu, e que uma classe de profissionais interessados no trabalho uns dos outros aprende a ter mais auto-estima, produz mais e desperta, naturalmente, o interesse das pessoas em geral. O psicólogo perde a consciência do valor daquilo que faz, e por isso se torna submisso e omisso.