quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Podemos diagnosticar o sofrimento sem conhecer a história de uma pessoa?

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Can we diagnose suffering without knowing a person’s history?, publicado no site AEON no dia 30 de Agosto de 2022 pelo psicanalista lacaniano inglês Christos Tombras, autor de Discourse Ontology: Body and the Construction of a World, from Heidegger through Lacan (2019).

O poder do diagnóstico está se tornando mais significativo. Em 2022, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a 'bíblia' dos profissionais de saúde mental, apareceu pela primeira vez na lista de mais vendidos do The Wall Street Journal. Foi também o livro de psiquiatria mais vendido na Amazon. Cinco edições foram publicadas desde 1952, e a mais recente, a DSM-5-TR (2022), talvez seja a mais popular de todas. Por quê? É a promessa de que a ciência pode avaliar e compreender o sofrimento humano? É a crença de que essa compreensão pode nos ajudar a encontrar um tratamento específico, adequado e eficaz para nossos problemas?

Estas são promessas tentadoras, mas enganosas. O sofrimento humano não é definido por categorias abstratas. Não existe independentemente dos humanos que estão sofrendo. Por mais útil que seja o DSM, qualquer projeto que busque listar e categorizar problemas psicológicos em termos de algum desvio de uma definição do que é "normal", corre o risco de esquecer que os transtornos não surgem do nada. Eles têm sua própria história. Eles também fazem parte de nossas histórias. Além disso, eles não permanecem constantes; eles mudam assim como nós mudamos.

Desde o momento em que foi concebido em meados do século XX, o DSM foi saudado por muitos como um projeto científico libertador e revolucionário. Nem todos concordaram. Este e outros instrumentos diagnósticos também têm sido criticados por serem difusores da medicina corporativa, produtos de sistemas de saúde burocráticos, corroídos por falsas categorias, e por esquecerem que o sofrimento psíquico está ligado à sociedade que o produziu. No entanto, dentro desse debate, as histórias pessoais daqueles que realmente vivenciam o sofrimento muitas vezes são esquecidas.

A experiência humana é distribuída, não específica e flui no tempo. A organização estilo checklist dos transtornos, que povoam os manuais de diagnóstico e testes – incluindo questionários online, aplicativos de saúde mental e “inventários” de personalidade – tendem a esquecer que as pessoas têm alguma consciência de si mesmas como agentes em uma linha do tempo que vem de algum lugar (o passado) e segue em direção a algum lugar (o futuro). Essa característica distintamente humana de nossa experiência, sua historicidade, esteve no centro do trabalho de filósofos como Martin Heidegger e psicanalistas como Jacques Lacan. A 'historicidade', na filosofia, refere-se menos a uma questão sobre as especificidades factuais da linha do tempo de alguém (o que aconteceu, quando e onde) do que ao fato de que estamos constantemente criando e recriando auto-narrativas. É assim que tentamos dar sentido às nossas vidas à medida que nos movemos ao longo da miríade de caminhos que conectam nosso passado ao nosso futuro. Esses caminhos sinuosos e confusos, cheios de becos sem saída e conexões falsas, muitas vezes contribuem para o nosso sofrimento.

É tentador acreditar que podemos nos ver refletidos objetivamente nos critérios diagnósticos e listas de verificação de 'bíblias' como o DSM, mas nossas histórias e ansiedades individuais escapam ao diagnóstico fácil porque não existem independentemente de nossa história ou de nossas tentativas de articulá-las, entendê-las e encaixá-las nas identidades que estamos constantemente tentando formar.

Sou psicanalista e trabalho em Londres. As pessoas que vêm me ver, principalmente aquelas que me procuram por conta própria, estão buscando ajuda com essas articulações, com a produção de sentido e de identidade. Robert (nome fictício) veio me ver pela primeira vez quando tinha 30 anos. Ele veio porque estava preocupado com seu trabalho em uma galeria de arte, onde se sentia um intruso, não tendo nada em comum com seus colegas. Assim como sua experiência em empregos anteriores, ele tinha um medo profundo e debilitante de que colegas e chefes estivessem sempre lhe observando, esperando que ele cometesse um erro decisivo. Esse medo o faria congelar. Ele não conseguia pensar. Ele queria desaparecer.

"Eu desapareço", ele me diz. 'Olho no espelho e não estou mais lá.'

"O que você quer dizer com desaparecer?" Eu pergunto.

Ele parece incerto. "Não sei de que outra forma descrever. Quando estou nesse estado de preocupação e medo, o rosto que vejo no espelho se desintegra. Não é mais a minha cara. Torna-se uma variedade de elementos. Um olho aqui, outro olho, um nariz, uma orelha... não consigo me reconhecer. Não consigo ver um rosto. Está vazio. Eu não existo mais. Eu congelo".

"O que isso significa?" pergunto novamente.

"Eu vejo elementos desconectados. Eu fico lá, inutilmente", ele olha para mim, "por longos períodos de tempo". Ele faz uma pausa. "Por horas", ele admite, baixando o olhar.

Então, aí está. Robert finalmente consegue me dar um vislumbre de seu sofrimento. Neste momento, eu poderia tentar transformar seus sintomas em um diagnóstico. Sofrimento significativo? Sim. Prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas? Sim. Preocupação com a aparência física? Sim. Comportamento repetitivo, como verificação no espelho? Sim. Indicações de um transtorno alimentar? Não. Diagnóstico? 'Transtorno Dismórfico Corporal', codificado F45.22 no DSM-5-TR. O quadro clínico pintado pelo DSM parece ter sido escrito para Robert.

O DSM foi, desde o início, organizado de acordo com resultados produzidos por ferramentas estatísticas. Como projeto científico, sugere que podemos e devemos falar apenas sobre coisas que podem ser observadas e avaliadas com clareza. Essa mesma ideia aparece em uma série de instrumentos psicológicos que buscam fornecer relatos objetivos das experiências humanas. Entre eles estão a Classificação Internacional de Doenças (CID), atualmente em sua 11ª revisão, e os Critérios de Pesquisa por Domínios (Research Domain Criteria - RDoC) do Instituto Nacional de Saúde Mental.

Como são feitos esses instrumentos? Como avaliar a doença mental, o sofrimento humano e a angústia de forma objetiva? A chave é quantificar o que você vê com a ajuda de ferramentas simples e imparciais, como entrevistas estruturadas ou questionários. Essas ferramentas podem revelar aspectos de como grandes grupos de pessoas pensam e sentem sobre o mundo e sobre si mesmos. Por meio desses dados, surgem padrões e categorias. Quase todas as categorias e critérios em nossos manuais de diagnóstico foram definidos por essas ferramentas, que fazem perguntas como:

Em uma escala de 0 (muito ruim) a 9 (muito bom), como você avaliaria seu humor geral nesta semana? E a semana passada?

Usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente) indique seu grau de concordância com a seguinte afirmação: 'Não consigo mais encontrar alegria em nada.'

Os princípios e intenções subjacentes a esses tipos de perguntas e as ferramentas de que elas provêm são nobres. As coisas, no entanto, não são tão simples. Ao representar nossa experiência de algo como tristeza com dados objetivos, estamos sendo infiéis ao fenômeno real de estar triste? Nossa tristeza tem uma história e um significado dentro de nossa própria história. Ela começou em algum momento, mudou, continua mudando. Nossa tristeza não pode ser representada fielmente 'usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente)' ou usando qualquer medida numérica em qualquer tipo de escala. Ao tirar uma fotografia de um 'transtorno' – ou seja, ao remover qualquer referência ao seu contexto e história – estamos forçando-o a se formatar a conceitos e ferramentas que são impróprios para este fim. Em nome da objetividade científica, transformamos violentamente noções multifacetadas e complicadas em conjuntos de dados a-históricos.

É tudo sobre a história (it's all about history).

Peço a Robert que me conte mais. Quando isso começou?

Robert não sabe dizer exatamente. Ele sente que sempre teve dificuldade em desenhar rostos – até mesmo em ver rostos. Quando  se olha no espelho, ele me diz, é como se seu próprio rosto fosse despido de significado.

"Despido", eu repito.

"Sim", diz ele. "E não apenas o rosto. O mesmo acontece com os corpos. É como se eles também fossem desprovidos de significado. Acabo desenhando como Lucian Freud ou Francis Bacon".

'Isso é um problema?' Eu pergunto, tentando aliviar a tensão.

'Eu não pretendia fazer desta forma', diz ele.

Convido-o a falar mais sobre o corpo humano. "Os nus são despidos das roupas", eu ofereço.

"De fato", diz ele, fazendo uma pausa.

Isso traz uma lembrança.

"Estou um pouco envergonhado", admite Robert.

Ele se lembra de algo que aconteceu quando tinha cerca de 13 anos.

Entrando na adolescência, fascinado e dominado por sua sexualidade, Robert começou a fazer pequenos desenhos eróticos, envolvendo vagamente ele e sua irmã, que tinha cerca de 15 anos. Um dia, sua mãe encontrou os desenhos. Chocada, ela decidiu que a melhor maneira de lidar com isso era convocar uma reunião de família. Ele assistiu horrorizado enquanto ela fazia circular os desenhos, falava longamente sobre eles e o humilhava publicamente. Ela o fez pedir perdão à irmã, e depois o fez destruir os desenhos cerimoniosamente na frente de todos, incluindo seu pai, que não disse nada, mas continuou assentindo com a cabeça. Quando tudo isso acabou, ele foi mandado de volta para seu quarto. Lá ele chorou amargamente por horas e depois redesenhou desafiadoramente tudo de memória. Ele os escondeu cuidadosamente em algum lugar e insiste que não olhou para eles desde então. Para ele, tais desenhos não existem mais.

As dificuldades de Robert com rostos e corpos tem uma história. Por trás de sua incapacidade de discernir o significado dos rostos há um evento traumático do passado.

Pela lógica do DSM, o sofrimento de Robert é definido pela forma precisa que ele assume no momento específico em que uma avaliação é feita. Neste momento, ele pode ser classificado como F45.22 ou algo do tipo. Um diagnóstico do DSM, como este, é uma única fotografia do sofrimento de alguém. Tal fotografia tem precisão, mas a história dessa imagem é deixada de fora: a humilhação e a rejeição de Robert por sua família; a dor que sentiu; sua culpa pelo despertar de sua sexualidade; o medo de que o que ele mais ama – desenhar com seu lápis – o leve a se perder e a ser esquecido.

Robert não teve permissão para processar tudo isso de uma maneira que o ajudasse a compreender seu significado. Seu sofrimento tem uma origem, e há caminhos que levam dessa origem à sua queixa atual. O 'transtorno' de Robert, as horas que ele passa na frente do espelho e a dificuldade de discernir e reconhecer seu rosto, podem ser conhecidos e descritos com precisão pelo DSM com um código apropriado. Mas esse transtorno tem um passado que se perde para o usuário de um manual de diagnóstico.

Em um momento em que o DSM se tornou um best-seller, é importante considerar que uma "fotografia" diagnóstica, por mais útil que às vezes seja, representa um instante desconexo na vida de uma pessoa. O paradigma da "fotografia" diagnóstica por meio da quantificação revela seus limites quando consideramos a historicidade de nossas experiências vividas e reconhecemos que estas não podem ser representadas por conjuntos de dados a-históricos.

O sofrimento psicológico é fundamentalmente inquantificável. Desenvolve-se através de uma miríade de caminhos sinuosos. Desloca-se, muda, transforma. Ele nos convida a compreender o significado em nossa história, mesmo que esse significado ameace escapar, nos sobrecarregar e nos confundir – e mesmo quando nossos próprios rostos desaparecem no espelho.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

4 recentes e surpreendentes filmes de terror

Queria indicar aqui quatro excelentes filmes de terror/suspense que eu vi nos últimos tempos - e quem me acompanha lá no Instagram sabe o quanto eu amo e respeito este gênero cinematográfico: 1) "Boa noite, mamãe" (Goodnight mommy): interessante e surpreendente refilmagem norte-americana de um suspense austríaco lançado em 2014 (que eu não vi). Não falarei nada sobre a história, porque quanto menos você souber melhor. Eu só recomendo com entusiasmo que você não deixe de assistir este filme, recém-lançado pela Prime Video. 2) "Os canibais" (The farm): neste perturbador filme de terror um casal de namorados é sequestrado e levado para uma fazenda que cria humanos para alimentação. A grande sacada do filme é imaginar como seria se os seres humanos fossem tratados da mesma maneira, e com a mesma indiferença, como tratam animais como galinhas, porcos e vacas. E a ideia de colocar os criadores com máscaras desses animais torna a situação ainda mais sinistra. Assista se tiver coragem. O filme também está disponível na Prime Video; 3) "Maria e João: o conto das bruxas" (Gretel & Hansel): lançado em 2020, este filme pouco conhecido traz uma versão bem interessante e contemporânea da clássica história de João e Maria. Ao inverter os nomes no título, o filme destaca o protagonismo de Maria/Gretel na narrativa. Como os anteriores, Maria e João encontra-se disponível no catálogo da Prime Video. 4) "X - A marca da morte" (X): nesta interessante obra de terror slasher, passada nos anos 70, acompanhamos uma equipe de filmes adultos durante as filmagens realizadas em uma fazenda isolada, cujos proprietários são um casal idosos conservador e cristão. Ainda que o filme venha sendo considerado etarista, com toda razão, devido à representação terrivelmente negativa dos personagens idosos, eu acho que a narrativa traz uma abordagem bem interessante do eterno conflito de gerações e uma crítica sagaz ao conservadorismo norte-americano. Caso tenha interesse em assistir, este filme ainda está em cartaz em alguns cinemas.

A mente entre o esquecimento e o apagamento: uma resenha do livro "Para sempre Alice"

No maravilhosamente triste romance "Para sempre Alice", lançado originalmente em 2007, a neurocientista Lisa Genova conta a história de Alice Howland, uma conceituada professora de linguística da Universidade de Harvard que é diagnosticada aos 50 anos com a Doença de Alzheimer de instalação precoce. No livro acompanhamos mês a mês, ao longo de dois anos, o relativamente rápido declínio cognitivo de Alice desde os primeiros esquecimentos, que ela atribui inicialmente ao estresse e à menopausa, até o apagamento quase total de sua mente num estágio avançado da doença. E é com tristeza que seguimos Alice e sua família (que inclui seu marido John e seus filhos, já adultos, Anna, Tom e Lydia) neste doloroso processo que se inicia com o diagnóstico clínico estabelecido por um neurologista e que se estende por uma série crescente de episódios de perda de memória - no início Alice se esquece de alguns nomes e compromissos mas, após alguns meses, passa a se esquecer também de memórias aparentemente consolidadas em sua mente, como o nome dos filhos e, mais adiante, o fato de que eles são seus filhos. Lisa Genova, que é Ph.D em neurociência justamente pela Universidade de Harvard, onde trabalham Alice e John no livro, criou essa comovente história ficcional a partir de uma série de casos reais, o que traz fidedignidade à narrativa desenvolvida por ela neste e também em outros livros como "Nunca mais Rachel", "A outra metade de Sarah", "A família O'Brien" e "Com amor, Anthony", todos baseados em casos reais de pacientes com variadas doenças e condições neuropsiquiátricas. Cabe apontar que Para sempre Alice inspirou um maravilhoso filme homônimo, lançado em 2014 e protagonizado pela atriz Juliane Moore (vencedora do Oscar por esse papel), que eu já indiquei e analisei anteriormente em alguns posts desse blog como O que os filmes e séries nos ensinam sobre a memória e o esquecimento? e 6 filmes sobre perda de memória. Recomendo imensamente tanto o filme quanto o belíssimo livro que o inspirou. Ambos são inesquecíveis!

Trecho do livro: "Apesar da erosão crescente da memória, seu cérebro ainda lhe prestava bons serviços, de inúmeras maneiras. Nesse exato momento, por exemplo, ela estava tomando seu sorvete sem derramar nada na casquinha nem na mão, usando uma técnica de lamber-e-girar que dominava desde menina e que, provavelmente, estava armazenada em algum lugar próximo das informações sobre “como andar de bicicleta” e “como amarrar o sapato (...) Em algum momento, porém, ela esqueceria como tomar sorvete de casquinha, como amarrar os sapatos e como andar. Em algum momento, seus neurônios do prazer seriam corrompidos por um ataque de amiloides aderentes e ela já não seria capaz de desfrutar das coisas que amava. Em algum momento, simplesmente não haveria sentido. Desejou estar com câncer. Trocaria o mal de Alzheimer pelo câncer sem pestanejar. Envergonhou-se de desejar isso, o que decerto era uma barganha inútil, mas, ainda assim, permitiu-se fantasiar. No câncer ela teria algo a combater. Havia a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia. Haveria uma possibilidade de que ela vencesse. Sua família e a comunidade de Harvard se uniriam a sua batalha e a considerariam nobre. E, ainda que no fim ela fosse derrotada, poderia olhá-los nos olhos, consciente, e se despedir antes de ir embora. A doença de Alzheimer era um monstro de um tipo completamente diferente. Não havia armas capazes de matá-lo. Tomar Aricept e Namenda era como apontar um par de pistolas de água contra um incêndio devastador. John continuava a investigar os medicamentos em processo de ensaio clínico, mas Alice duvidava que algum deles ficasse pronto e fosse capaz de fazer alguma diferença para ela; caso contrário, seu marido já teria telefonado para o dr. Davis, insistindo num modo de fazer com que ela o tomasse. Nesse exato momento, todos os portadores do mal de Alzheimer enfrentavam o mesmo desfecho, tivessem eles oitenta e dois ou cinquenta anos, fossem eles residentes do Centro Assistencial Solar Mount Auburn ou professores titulares de psicologia na Universidade Harvard. O incêndio devastador consumia a todos. Ninguém saía vivo" (Para sempre Alice, página 115)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Mente em declínio: uma resenha do livro "O túnel"

Se você se interessa, pessoal e/ou profissionalmente, pela temática do declínio cognitivo associado ao processo de envelhecimento, recomendo fortemente o livro "O túnel", maravilhoso romance do escritor israelense Avraham Yehoshua, falecido este ano. O livro, recém-publicado no Brasil pela editora DBA, conta a história de Tzvi Luria, um engenheiro de estradas aposentado que recebe de seu neurologista o diagnóstico de demência assim como a recomendação de que volte a trabalhar como uma forma de manter o seu cérebro ativo. Seguindo tal recomendação, Luria acaba por se tornar assistente não-remunerado de um jovem engenheiro no planejamento de uma estrada militar no deserto israelense. Acontece que durante tal planejamento eles descobrem que no trajeto previsto para tal estrada, em uma colina, vivia escondida uma família de palestinos e, por compaixão a esta família, eles decidem propor a construção de um túnel no lugar da demolição da colina, de forma que eles pudessem continuar vivendo ali. O livro trata com muita sensibilidade tanto do processo de declínio cognitivo de Luria (cujo sobrenome é, provavelmente, uma referência ao famoso neuropsicólogo russo Alexander Luria) quanto da complexa, antiga e conflituosa relação entre Israel e Palestina. Cabe apontar que Yehoshua foi um importante defensor dos direitos dos palestinos, algo que fica perceptível neste livro extraordinário lançado originalmente em 2018.

Trecho do livro: "É verdade, a partir de agora será fácil culpar as fraquezas do cérebro por cada engano ou falha, mas será que está ao alcance da alma, que o neurologista separou do cérebro, lutar contra a mente delirante, ou, ao contrário, justamente aderir a ela?"

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

As raízes filosóficas da Terapia Cognitivo-Comportamental ajudam a explicar suas limitações

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo 
The philosophical roots of CBT help explain its limitations, publicado no site AEON no dia 27 de Julho de 2022 pelo escritor e psicanalista Bradley Murray, autor do livro  The Possibility of Culture: Pleasure and Moral Development in Kant’s Aesthetics (2015).

Valerie é uma estudante de pós-graduação de 25 anos. Ela é sensível, generosa e dedicada a um trabalho voluntário local com refugiados. Ela sempre parece ter um sorriso no rosto. Mas desde que era adolescente, Valerie passou por períodos dolorosos de depressão. Quando deprimida, ela é atormentada por pensamentos autocríticos e luta para sair da cama. Nesses momentos, ela às vezes pensa em sua infância conturbada – uma época em que sua mãe também estava acamada com depressão. Forçada a se tornar responsável por sua família, Valerie teve que cuidar emocionalmente de sua mãe e tomar conta de sua irmã mais nova e isso afetou todo o curso do desenvolvimento emocional de Valerie. Quando se tornou adulta, ela tinha uma sensação de vazio que era difícil de se livrar. Ela sentiu que tinha se perdido quando era jovem. Procurando ajuda, Valerie decidiu procurar o centro de saúde mental de sua universidade e, após várias sessões de terapia cognitivo-comportamental (TCC), aprendeu novas maneiras de pensar sobre seu humor. Mas ela ainda se sentia perdida. Algo estava faltando. Para ela, a TCC não conseguiu desenvolver os aspectos submersos de si mesma que haviam sido deixados de lado quando ela era jovem.

Valerie não é uma pessoa real, mas tenho visto muitos pacientes como ela em minha prática que descobriram que a TCC não ressoa com eles. Sim, a pesquisa mostra consistentemente que os pacientes que recebem essa forma de terapia são mais propensos a experimentar uma melhora nos sintomas do que aqueles que não recebem nenhum tratamento (ou que recebem placebos). E sim, a TCC é uma das formas de terapia mais utilizadas, mais bem pesquisadas e mais bem financiadas no mundo, acessível por meio de clínicas de saúde mental, terapeutas online e até mesmo aplicativos. Mas não é perfeita.

Pacientes como Valerie acabam procurando uma alternativa, mas muitas vezes não conseguem identificar o que deu errado. Acredito que suas preocupações podem ser mais bem compreendidas se reconhecermos que nem todos os problemas emocionais dos adultos resultam, em última análise, de falhas no pensamento e no raciocínio, como sustenta a TCC. Nem todos os problemas podem ser resolvidos rapidamente por meio do que os praticantes da TCC chamam de 'reestruturação cognitiva'. Compreender os limites dessa forma popular de terapia exige que façamos uma pergunta difícil: a TCC pode ajudar a nos desenvolver plenamente em termos psicológicos?

Para responder a essa pergunta, precisamos considerar os andaimes conceituais da TCC. Suas raízes filosóficas remontam à Grécia antiga, à era dos estóicos. Uma fé no poder da razão pode ser encontrada na maioria das filosofias gregas antigas – e em muitas filosofias desde então. Quando sofremos, diz a lógica, é porque estamos deixando nossas emoções tomarem conta de nós, nos afastando de ver a realidade. A razão, argumentaram esses primeiros filósofos, nos permite aprender sobre coisas que realmente importam, incluindo como ser feliz, viver uma vida boa e nos libertar de emoções negativas, incluindo depressão, preocupação, raiva, inveja e ciúme.

Um dos fundadores da TCC, o psiquiatra americano Aaron Beck, reconheceu essa herança intelectual em seu influente livro Cognitive Therapy and the Emotional Disorders (1976) – um manual introdutório para terapeutas de TCC. Beck escreveu que os fundamentos filosóficos da TCC 'remontam a milhares de anos, ao tempo dos estóicos, que consideravam as visões (e distorções) do homem dos eventos, e não os próprios eventos, como a chave para suas perturbações emocionais.'

Aprender a pensar de forma diferente sobre os eventos é o que os terapeutas da TCC chamam de "reestruturação cognitiva". Mudar os padrões de pensamento é o que os terapeutas da TCC fazem quando ensinam seus pacientes a evitar erros de raciocínio e a ver a realidade com mais precisão. Em um dos exemplos clínicos de Beck em seu livro de 1979 sobre depressão, ele apresenta alguns elementos de uma sessão com um paciente deprimido. O paciente é um estudante que acabou de ser reprovado em um exame universitário. O terapeuta o questiona sobre por que falhar o deixaria deprimido. A reprovação, segundo o aluno, significa que ele nunca entrará na faculdade de direito. significa que ele 'simplesmente não é inteligente o suficiente' e 'nunca poderá ser feliz'. Depois de discutir essa questão, o terapeuta fornece a mensagem para o paciente:

Então é o significado de falhar em um teste que o deixa muito infeliz. Na verdade, acreditar que você nunca poderá ser feliz é um fator poderoso na produção de infelicidade. Então, você cai em uma armadilha – por definição, não conseguir entrar na faculdade de direito é igual a 'Eu nunca serei feliz'.

Segundo Beck, o problema do aluno é um erro de raciocínio: é ilógico acreditar que ser rejeitado pelas faculdades de direito significa que uma pessoa nunca poderá ser feliz. Se o raciocínio falho do paciente o deixa deprimido, ele pode evitar ficar deprimido aprendendo a corrigir essa e outras falhas de raciocínio. Ainda hoje, de acordo com o modelo da TCC, os transtornos psicológicos geralmente se encaixam nesse molde: o paciente está cometendo erros cognitivos que o levam a estados emocionais negativos. Ajudar o paciente a raciocinar com mais precisão é fundamental para ajudá-lo a se sentir melhor.

A TCC também se baseou em métodos comportamentais, incluindo 'exposição'. Isso acontece, por exemplo, quando alguém com medo de cachorros tenta vencer seu medo passando cada vez mais tempo com estes animais. Do ponto de vista de terapeutas de TCC como Beck, o objetivo da exposição é ensinar o paciente a pensar de uma forma mais racional, dando-lhe evidências diretas que mostrem por que seus pensamentos não se alinham com a realidade.

O mundo da TCC se desenvolveu desde que Beck escreveu esses livros na década de 1970. Um conjunto de novas técnicas foi adicionado, incluindo atenção plena (mindfulness) e aceitação. Mas, em última análise, a TCC ainda se baseia na ideia de que os transtornos psicológicos estão enraizados em problemas de pensamento. Para os defensores da TCC, isso é uma virtude – uma explicação unificada dos problemas psicológicos. A psicóloga Leslie Sokol é uma dessas defensoras. Seu manual amplamente usado para terapeutas de TCC, The Comprehensive Clinician's Guide to Cognitive Behavioral Therapy (2019), escrito em coautoria com Marci Fox, nos diz:

Lembre-se de que todos os problemas psicológicos envolvem problemas de pensamento, de modo que a reestruturação cognitiva pode ajudar os clientes a avaliar seus processos de pensamento. Use o processo de questionamento guiado para ajudar os clientes a modificar pensamentos distorcidos ou inúteis para que possam ver as situações de uma maneira menos tendenciosa e mais útil.

Não é exagero dizer que, se você for se consultar com um terapeuta de TCC que está praticando de acordo com os princípios centrais da abordagem, há uma forte probabilidade de que seus problemas psicológicos sejam conceituados como problemas de pensamento. Também é provável que seu terapeuta veja a solução para seus problemas como uma questão de ajudá-lo a desenvolver hábitos de pensamento que lhe permitam interpretar os eventos de sua vida com mais precisão.

Essa ideia de problemas mentais como problemas de pensamento é baseada no insight altamente plausível dos estóicos: devemos aprender a ver a realidade. A maioria dos pacientes que tenho atendido em minha prática – e certamente a maioria dos seres humanos – pode se beneficiar cultivando um pensamento mais claro. De fato não é útil interpretar falsamente as situações em nossas vidas como altamente ameaçadoras ou catastróficas quando elas não são. Podemos encontrar a felicidade se pararmos de prestar atenção apenas aos aspectos negativos das situações e entendermos a vida como uma combinação de bem e mal. Essa mudança de pensamento acontece até certo ponto mesmo na maioria das demais abordagens, à medida que os pacientes se envolvem em diálogo com um ouvinte neutro. Mas tentar explicar o sofrimento psicológico de uma pessoa como sendo inteiramente resultante de como ela pensa nem sempre é útil. As pessoas são complexas, e essa visão redutora dos problemas mentais não atende às necessidades de todos.

Antes do surgimento da TCC, havia outro importante tratamento psicoterapêutico: a psicanálise. As terapias psicanalíticas são o que muitas pessoas ainda pensam quando evocam a ideia da terapia pela fala; e, ainda hoje, essa família de terapias continua sendo uma das principais alternativas à TCC. A psicanálise clássica normalmente ocorre várias vezes por semana, geralmente com o paciente deitado em um divã. A terapia psicodinâmica é uma forma menos intensiva de terapia derivada da psicanálise. Ao contrário da TCC, que geralmente oferece apenas algumas sessões semanais, as terapias psicanalíticas ou psicodinâmicas podem durar de vários meses ou anos. Infelizmente, os programas de saúde mental com financiamento público não costumam incorporar esses tratamentos, o que significa que aqueles que desejam buscar a psicanálise devem ter um compromisso financeiro maior do que aqueles que buscam a TCC. Para muitas pessoas, isso pode tornar o custo do tratamento proibitivo. (Os institutos de treinamento psicanalítico são muitas vezes os melhores lugares para procurar tratamento com uma taxa reduzida).

As diferenças entre a TCC e a psicanálise são impressionantes. Enquanto a estrutura das sessões de TCC é dirigida pelo terapeuta – que passará a tarefa para casa no final da sessão – a estrutura de uma sessão psicanalítica é deixada em aberto pelo terapeuta. O paciente é encorajado a ganhar conforto ao longo do tempo falando o que vier à mente. E enquanto a TCC enfatiza o uso de um conjunto de ferramentas para formar novos hábitos de pensamento e comportamento, a psicanálise envolve um processo contínuo, colaborativo e transformador envolvendo terapeuta e paciente. Durante esse processo, o terapeuta observa as maneiras pelas quais o paciente pode, no aqui-e-agora da própria terapia, experimentar inconscientemente repetições de situações do passado. Essas repetições, conhecidas como 'transferência', podem indicar conflitos psicológicos centrais da infância ou adolescência – muitas vezes momentos em que as necessidades não foram atendidas durante o processo de crescimento. Mas talvez a principal diferença entre a TCC e a psicanálise seja que a terapia psicanalítica não vê todos os problemas psicológicos como problemas de pensamento. Não há a expectativa de que esses problemas possam ser resolvidos apenas ajudando o paciente a pensar com mais cuidado e precisão.

Isso não significa que a TCC não seja eficaz – basta olhar para o artigo ‘Why Cognitive Behavioral Therapy is the Current Gold Standard of Psychotherapy’ ['Por que a terapia cognitivo-comportamental é o padrão ouro atual da psicoterapia'] (2018) publicado na revista Frontiers in Psychiatry. É correto dizer que a TCC é uma terapia baseada em evidências e que é eficaz. Mas também é verdade que muitas pessoas não são ajudadas pela TCC. Por exemplo, um estudo publicado em 2018 na Clinical Psychology Review examinou 100 estudos sobre a TCC utilizada no tratamento de transtornos de ansiedade em adultos. O objetivo era entender a verdadeira taxa de remissão da TCC. Pode-se dizer que a remissão ocorre quando o paciente não atende mais aos critérios para um diagnóstico de transtorno de ansiedade, ou pelo menos quando os sintomas do paciente melhoraram significativamente. O estudo descobriu que a taxa média geral de remissão foi de 51%. Isso significa que a TCC falhou em trazer remissão a cerca de metade dos pacientes – cerca de metade não foi beneficiada a longo prazo.

Outro estudo, publicado em 2017 na revista Behavior Research and Therapy, analisou se a remissão dos sintomas depressivos e ansiosos após o tratamento com a TCC era duradoura ou passageira. Este estudo concentrou-se na TCC de baixa intensidade (low-intensity CBT), que envolve a autoajuda guiada apoiada por materiais de aprendizagem (um método econômico de TCC, que está se tornando mais difundido). O estudo descobriu que cerca de metade dos pacientes cujos sintomas entraram em remissão sofreu uma deterioração clinicamente significativa dentro de 12 meses após a conclusão do tratamento. Para muitos pacientes que sofrem de depressão e ansiedade, o tratamento com TCC não é uma cura duradoura.

Mas a TCC continua a dominar. Buscando aumentar o acesso aos cuidados de saúde mental, muitos serviços financiados publicamente agora se concentram em fornecer TCC às custas de outras terapias. Médicos e administradores de saúde pública em todo o mundo estão compreensivelmente entusiasmados com a promessa de um tratamento que pode ser realizado com tanta eficiência. E muitos pacientes acharão a TCC atraente desde a primeira sessão, reconhecendo-a como uma explicação plausível para seus problemas. Mas para pacientes como Valerie, a abordagem é muito estruturada e educativa para promover o tipo de amadurecimento e desenvolvimento que eles desejam. Seria de partir o coração se esses pacientes se sentissem fracassados ​​apenas porque suas preocupações não se encaixam no modelo da TCC. Nem todos os problemas psicológicos são problemas de pensamento, e nem todos os problemas requerem correção por meio de reestruturação cognitiva. Caso seja dada a oportunidade, pessoas como Valerie podem aprender a lidar com seus eus submersos, esquecidos ou ignorados por terapias que se concentram em ferramentas cognitivas para visualizar a realidade com mais precisão. Essas pessoas podem aprender, em vez disso, a empatizarem com seus eus anteriores de maneiras sutis. Elas podem começar a se encontrar.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Viagens com a ciência psicodélica brasileira: uma resenha do livro "Psiconautas"

No livro Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira, lançado em 2021 pela editora Fósforo, o renomado jornalista científico Marcelo Leite apresenta o chamado "renascimento psicodélico" na ciência brasileira e internacional e ainda traz interessantes relatos em primeira pessoa da experiência do autor com tais substâncias. Como apontei anteriormente na resenha que fiz da minissérie documental Como mudar sua mente, baseada em um livro homônimo do também jornalista Michael Pollan, as pesquisas sobre o potencial terapêutico das substâncias psicodélicas começaram nos anos 1950/60, tiveram um longo período de recesso após a proibição de tais substâncias nas décadas de 1970/80, e, mais recentemente experimentaram uma retomada - não apenas nos Estados Unidos mas também em outros países, como é o caso do Brasil. Pois é justamente o foco na realidade brasileira que torna Psiconautas uma obra relevante, haja vista que o contexto internacional já foi ampla e brilhantemente retratado no livro de Pollan. O que Marcelo faz com muita competência é apresentar os psiconautas brasileiros - que incluem os pesquisadores Dráulio de Araújo, Luis Fernando Tófoli, Steven "Bitty" Rehen e Sidarta Ribeiro (que faz o prefácio do livro) - e as pesquisas desenvolvidas por eles, inclusive com substâncias tradicionalmente utilizadas no país, como a Ayahuasca. O livro é dividido em seis capítulos, cinco deles dedicados a substâncias específicas: Ayahuasca, MDMA (ou Michael Douglas para os íntimos), LSD, Ibogaína e Psilocibina. No último capítulo o autor sintetiza algumas discussões sobre as aplicações terapêuticas dos psicodélicos, discorrendo, por exemplo, sobre a questão das "bad trips" e sobre a importância do "set" e "setting" para a qualidade das "viagens". Minha visão sobre as tais terapias psicodélicas permanece após ler esse livro: eu acho que são válidas e podem ser úteis e benéficas para muitas pessoas com variadas formas de sofrimento e também por aquelas que querem "simplesmente" viajar? Com certeza. Mas são panaceias ou pílulas mágicas que resolverão todos os problemas humanos e sociais? De forma alguma! Ainda assim recomendo fortemente a leitura desta ótima e embasada obra de divulgação científica.

Trecho do livro: "Em termos muito gerais, as recomendações [terapêuticas] tendem a girar em torno de cuidados com os dois componentes básicos da viagem psicodélica, o set e o setting, termos consagrados para designar respectivamente a condição mental do psiconauta e o ambiente em que ela ou ele empreenderá sua jornada. São conceitos oriundos de décadas de práticas psicoterapêuticas com apoio de psicodélicos que antecederam a reação proibicionista dos anos 1970-80. No primeiro caso, set, se encaixam critérios de exclusão, como tendências psicóticas, até conselhos práticos como não consumir as substâncias em tempos de muita ansiedade, em tratamento com medicações psiquiátricas ou sem clareza quanto ao objetivo da viagem. No segundo, setting, se incluem a importância de viajar num ambiente tranquilo e seguro, de preferência junto à natureza, na companhia de pessoas de confiança que possam dar assistência ao viajante desorientado ou angustiado, e assim por diante".

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Viagens terapêuticas: uma resenha da minissérie documental "Como mudar sua mente"

Estreou essa semana na Netflix a minissérie documental "Como mudar sua mente", baseada em um livro homônimo do jornalista norte-americano Michael Pollan. Para quem não o conhece, Pollan é autor de inúmeros (e excelentes) livros sobre alimentação como "O dilema do onívoro", "Regras da comida" e também "Cozinhar", obra que deu origem à belíssima minissérie documental "Cooked", também produzida pela Netflix e apresentada por Pollan. Mais recentemente, contudo, o autor decidiu deixar momentaneamente o tema da alimentação - mas sem se distanciar do tópico mais geral do uso de plantas - para investigar a história das pesquisas com substâncias psicodélicas. E o resultado foi o livro "Como mudar sua mente", publicado em 2018 pela editora Intrínseca e que serviu de base para a minissérie recém-lançada. Composta por 4 episódios com cerca de 50 minutos, cada um dedicado a uma substância (LSD, Psilocibina, MDMA e Mescalina), esta minissérie retrata com brilhantismo o início das pesquisas com psicodélicos nas décadas de 1950 e 1960, a quase completa paralisia de tais pesquisas após a deflagração da "guerra às drogas" pelo governo Nixon (que tornou tais substâncias ilegais, inclusive no contexto científico) e, finalmente, a retomada recente destes estudos por um conjunto de pesquisadores atualmente chamados de "psiconautas" - expressão que não por acaso foi escolhida como título de um livro sobre esse tema lançado em 2021 pelo jornalista brasileiro Marcelo Leite. Mas a minissérie não se limita a recontar tal história e tenta também retratar, através de belíssimas animações, as transformadoras "viagens" de algumas pessoas com o uso de psicodélicos - inclusive aquelas vivenciadas pelo próprio Pollan. Mas eu não posso me furtar de fazer algumas críticas à série. Em primeiro lugar, as substâncias psicodélicas são frequentemente retratadas como "pílulas mágicas" e panaceias para todos os problemas humanos, especialmente para os chamados transtornos mentais. E isto, por sua vez, reforça uma racionalidade medicalizante, hegemônica na psiquiatria contemporânea, que reduz o sujeito a um "eu neuroquímico" que pode ser curado de suas aflições e tormentos através do uso de determinadas substâncias. E eu também não tenho como discordar da crítica feita pelo neurocientista Carl Hart no livro "Drogas para adultos" de que os psiconautas, em geral homens e brancos, comumente ignoram as terríveis consequências da tal "guerra às drogas" para as pessoas negras, suas principais vítimas. É como se eles se colocassem vigorosamente a favor da legalização das substâncias psicodélicas mas não das outras drogas - vistas, assim como seus usuários, como inferiores. Carl Hart aponta, nesse sentido, para a irritação que sente com a ginástica mental feita por alguns usuários de psicodélicos para se distanciarem de usuários de outras drogas - como crack ou heroína, por exemplo. De toda forma, apesar desses problemas, considero o tipo de pesquisa retratado na série muito importante, na medida em que pode ampliar o cuidado em saúde mental, no presente e no futuro. Se as drogas psicodélicas não são uma panaceia para os problemas humanos ainda assim elas podem ser benéficas e transformadoras para muitas pessoas.  

segunda-feira, 27 de junho de 2022

3 livros críticos à "cultura da felicidade"

Na esteira da resenha que fiz do romance "Ser feliz", do Will Fergunson, gostaria de indicar hoje três excelentes livros de não-ficção críticos à "cultura" (alguns diria ditadura) da felicidade e do pensamento positivo: 1) Happycracia: fabricando cidadãos felizes (ed. Ubu, 2022): escrito pelo psicólogo espanhol Edgar Cabanas em parceria com a socióloga franco-marroquina Eva Illouz e publicado originalmente em 2018, este livro traz uma análise crítica brilhante da ascensão e dos discursos (supostamente neutros mas, de fato, altamente afinados com a racionalidade neoliberal) da psicologia positiva. É, sem dúvida, o melhor livro que li nos últimos anos e um dos melhores que eu já li em minha vida - eu colocaria ele, fácil, no meu Top10 de livros de não-ficção, tamanha sua amplitude e relevância para esta discussão fundamental dos nossos tempos. 2) Positividade tóxica: como resistir à sociedade do otimismo compulsivo (ed. BestSeller, 2022): escrito pelo professor de psicologia dinamarquês Svend Brinkmann e publicado originalmente em 2014, este livro é uma espécie de anti-livro de auto-ajuda ou, mais precisamente, um livro de auto-ajuda invertido, na medida em que se utiliza de parte da linguagem básica do gênero para disseminar uma mensagem oposta - veja, por exemplo, os títulos de alguns capítulos: Pare de olhar para o próprio umbigo, Concentre-se nos aspectos negativos da vida, Demita seu coach, etc. Trata-se de um livro fascinante, que eu recomendo especialmente para psicólogos clínicos. 3) Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América (ed. Record, 2013): escrito pela brilhante pensadora norte-americana Barbara Ehrenreich (autora de obras clássicas como Miséria à Americana e Desemprego de colarinho-branco) e publicado originalmente em 2009, este livro volta seu foco para a ascensão da cultura do pensamento positivo nos Estados Unidos. Trata-se de uma obra extremamente potente e impactante que influenciou toda a discussão posterior sobre o assunto - os autores de Happycracia, por exemplo, veem na obra de Ehrenreich uma base fundamental para a análise que fizeram. Se você se interessa por essa discussão não deixe de ler cada um destes livros incríveis!

domingo, 26 de junho de 2022

O clube dos iguais: uma resenha do livro "O pacto da branquitude", de Cida Bento

Se você é psicólogo ou psicóloga (e especialmente se você é branco ou branca) recomendo muito fortemente a leitura deste livro fundamental da colega de profissão Cida Bento. É um livro curto, barato e muito, mas muito importante. No centro da discussão está o conceito, desenvolvido pela própria autora, de "pacto narcísico da branquitude", que diz respeito à uma série de alianças e acordos não verbalizados que acabam por atender aos interesses e manter os privilégios das pessoas brancas, inviabilizando e excluindo pessoas não-brancas, especialmente, no Brasil, pessoas negras (mas também indígenas). Como afirma a autora, "é evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o 'diferente' ameaçasse o 'normal', o 'universal'. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele". Não sei se a comparação é válida mas é como se a branquitude fosse um clube que só permitisse a entrada de pessoas brancas e excluísse o acesso a pessoas "diferentes", isto é, pessoas não-brancas. A grande questão é que este comportamento clubista, que está no cerne do tal pacto da branquitude, está de fato espalhado por organizações públicas e privadas, constituindo um importante aspecto do racismo institucional prevalente em nosso país. Com sua longa experiência na área de psicologia organizacional, Cida Bento mostra como este pacto está fortemente presente nos processos de recrutamento e seleção de pessoal (que tendem a desfavorecer candidatos negros) e em muitos outros processos organizacionais e sociais, perpetuando-se justamente pelas vantagens obtidas pelos "signatários" voluntários ou involuntários deste pacto. Enfim, trata-se de um pequeno grande livro que eu espero que no futuro seja amplamente lido e estudado nas faculdades de psicologia brasileiras.

Trecho do livro: "Em um ambiente em que todas as pessoas são brancas, elas se identificam umas com as outras e se veem como iguais, membros de um mesmo grupo. Essa presença exclusiva de brancos, aliás, faz parte da maioria das organizações públicas, privadas e da sociedade civil. Quando isto é rompido pela presença de uma pessoa negra, o grupo se sente ameaçado pelo 'diferente', que por ser na instituição ou no departamento a única pessoa negra, num país majoritariamente negro, expõe os pés de barro do 'sistema meritocrático'".

O livro de auto-ajuda definitivo: uma resenha do romance "Ser feliz", de Will Fergunson

 

No incrível romance "Ser feliz", publicado originalmente em 2002 pelo escritor canadense Will Fergunson, acompanhamos o estressado editor Edwin a partir do momento em que este encontra, em meio à pilha de manuscritos que recebe todos os dias, um livro de auto-ajuda intitulado O que aprendi na montanha, redigido por um escritor desconhecido chamado Tupak Soiree (será uma referência ao Deepak Chopra?). Edwin não dá muita fé mas devido à falta de opções, a editora acaba publicando o livro sem alterações, com uma pequena tiragem. Mas acontece que este não era um livro de auto-ajuda qualquer mas "o" livro de auto-ajuda, isto é, o único livro de auto-ajuda que realmente funcionou ao longo da história. Afinal, como afirma Edwin em certo momento, "a razão de termos tantos livros de auto-ajuda é que eles não funcionam! Se alguém escrevesse um que realmente funcionasse eu perderia meu emprego, droga!". Pois Edwin jamais poderia imaginar que o livro de Soiree seria justamente este livro. E o que acontece a partir de sua publicação é uma crescente (e preocupante) epidemia de felicidade. Cada pessoa que lê o livro - e ele se torna rapidamente um sucesso editorial - desenvolve uma plena satisfação com a vida que acaba por transformar radicalmente o mundo. As primeiras indústrias a falir são a de cigarro e de bebidas mas logo vão à bancarrota também as indústrias de fast food, de moda, de exercícios físicos, de cosméticos e assim por diante. Como afirma Edwin, "toda a nossa economia foi construída sobre as fraquezas humanas, sobre maus hábitos e inseguranças". Com cada vez mais pessoas ficando satisfeitas, não apenas a economia mas toda a sociedade se altera drasticamente. E com o objetivo de reverter essa situação, Edwin - que editou o livro mas não foi enfeitiçado por ele - sai à caça do autor da obra maldita, responsável por essa insuportável onda planetária de felicidade. Não revelarei mais nada do livro mas gostaria de recomendá-lo com entusiasmo. "Happiness" (seu título original) é uma hilária sátira do mundo editorial e também uma crítica sagaz às falsas promessas vendidas por livros e autores de auto-ajuda. 

Trecho do livro: "A falha central em toda a filosofia de Tupak Soiree é esta: ele não entende a verdadeira natureza da alegria. Alegria não é um estado de ser, May. É uma atividade. Alegria é verbo, não é substantivo. Não existe independentemente de nossas ações. A alegria é para ser fugaz e transitória, porque nunca se destinou a ser permanente. Mono-no-awaré, May. “A tristeza de todas as coisas.” A tristeza que permeia tudo, até a própria alegria. Sem ela, a alegria não pode existir. Alegria é o que nós fazemos. Alegria é dançar sem roupa embaixo da chuva. A  alegria  é  pagã,  absurda,  matizada  de  sensualidade  e  tristeza.  Não  é  serenidade. Serenidade é o lugar para onde vamos quando morremos. Estou de partida. Estou indo para o sul, rumo ao deserto, para um confronto final. Vou salvar a todos nós da felicidade. Vou recolocar no devido lugar a alegria, a dor e os prazeres culposos da vida".

sábado, 25 de junho de 2022

Palestra: "Ansiedade: entender para controlar"

Eu já tratei do tema da ansiedade algumas vezes neste blog, como por exemplo, no post O livro definitivo da ansiedade e, mais amplamente, no post Precisamos falar sobre... ansiedade. Pois no dia 06 de Maio de 2022 eu voltei a tratar deste tema em uma palestra que eu dei para os calouros da Universidade Federal de Viçosa, instituição onde eu trabalho como psicólogo desde 2008 - que, coincidentemente foi o mesmo ano em que eu criei este blog. Caso tenha interesse em assistir essa palestra, segue o video, disponível no canal da UFV no Youtube.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Convite para colaboração em pesquisa de doutorado

Queridos e queridas colegas, meu nome é Felipe Stephan Lisboa, sou psicólogo e atualmente faço o doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde desenvolvo um trabalho sobre o campo do treinamento cerebral no Brasil. E como forma a dar continuidade à minha pesquisa de doutorado, já aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IMS-UERJ, preciso contar com a colaboração de cada um e de cada uma de vocês. Mas de que forma? Bom, eu preciso entrevistar um conjunto de pessoas, maiores de 18 anos, que fazem atividades de treinamento ou ginástica cerebral nas seguintes empresas ou plataformas virtuais brasileiras do ramo: Supera, Super Cérebro, Ginástica do Cérebro, Supera Online, Neuroforma, Afinando o Cérebro e Mente Turbinada. Meu objetivo, nesta etapa da pesquisa, é compreender as experiências, os motivos e os sentidos do treinamento cerebral para as pessoas que recorrem a tais atividades. Assim, caso você seja cliente de alguma destas empresas ou conheça alguém que seja, por favor me envie uma mensagem para o email lisboa.felipe@posgraduacao.uerj.br (assim mesmo com c e não ç). No caso da indicação de pessoas eu próprio entrarei em contato com elas e as convidarei à participar da pesquisa - e cabe apontar que os dados obtidos por meio das entrevistas serão confidenciais e anônimos. Peço também que, se puderem, me ajudem a divulgar este convite dentre os seus conhecidos e familiares. Enfim, conto com a colaboração de todos(as) vocês...

terça-feira, 19 de abril de 2022

Carl Hart em busca da felicidade: uma resenha do livro "Drogas para adultos"

Alguns anos após narrar sua trajetória de vida e tecer excelentes (e críticas) reflexões sobre a política de guerra às drogas no livro "Um preço muito alto", de 2014, Carl Hart volta essa temática no controverso "Drogas para adultos", lançado em 2021 nos Estados Unidos e, ao final deste mesmo ano no Brasil, pela editora Zahar. Para quem não o conhece Carl Hart é um neurocientista norte-americano, professor dos departamentos de psicologia e psiquiatria na conceituada Universidade Columbia, em Nova Iorque, e autor de uma já considerável obra sobre o tema do uso de drogas, que inclui os dois livros mencionados. Mas para além de suas credenciais acadêmicas é preciso ressaltar a honestidade e a coragem do neurocientista em expor sua história e visão sobre este tema espinhoso, algo que fica bastante claro em seu novo livro. Em "Drogas para adultos" o neurocientista retoma algumas das questões já tratadas em "Um preço muito alto", mas vai além, especialmente ao expor e discutir com franqueza seu próprio uso recreativo de drogas assim como o uso por "adultos responsáveis" de uma forma geral. O livro, aliás, tem início com uma sentença bombástica: "Sou um usuário não apologista de drogas. Usar drogas faz parte da minha busca pela felicidade, e elas funcionam. Sou uma pessoa mais feliz e melhor por causa delas". Na visão de Hart o uso de drogas (de todas as drogas) é um direito individual inalienável que os governos deveriam proteger - e não combater. E isto porque as drogas, para o autor, compõem o rol de atividades que os seres humanos recorrem (e tem o direito de recorrer) para se sentirem bem e buscarem a felicidade. Além disso, segundo ele, as drogas não causariam tantos prejuízos quanto como comumente se advoga: para a grande maioria dos casos o uso de drogas causaria pouco ou nenhum dano, sendo o uso responsável até mesmo benéfico para a saúde e o funcionamento humanos. O autor defende, nesse sentido, a importância dos usuários recreativos saírem do armário e admitirem publicamente o uso, de forma que gradualmente vá se quebrando a visão comumente disseminada do usuário de drogas como alguém desleixado e irresponsável. E Hart dá o exemplo e admite ser, ele próprio, usuário recreativo de inúmeras drogas, em especial de heroína, sua droga favorita. Por este breve resumo dá pra se ter uma ideia do caráter controverso deste livro, que se coloca na contramão de grande parte do discurso "comum" sobre drogas.

De minha parte, considero a obra importante e mesmo necessária, especialmente por descortinar os equívocos e hipocrisias envolvidos nas discussões e políticas sobre drogas. No entanto, embora eu não seja um especialista no assunto, entendo que o autor não dá a devida atenção a alguns tópicos - por exemplo, à questão da dependência. Embora os dados indicados por Hart apontem que a maioria dos usuários de drogas não se torna dependente, um percentual significativo destes (entre 10 e 30%) se tornará. Neste sentido, a diferenciação implícita estabelecida por ele entre usuários responsáveis e usuários "irresponsáveis" (que seriam os dependentes), se torna estranha para mim. Como diferenciar um do outro e, especialmente, como evitar que o usuário responsável se torne dependente? Não me parece que Hart tenha conseguido responder ou lidar com tais questões à contento. Mas é claro que concordo fortemente com ele que a saída para lidar seja com o uso recreativo seja com a dependência não é, definitivamente, a criminalização - que além de não diminuir o uso, o abuso e a dependência de drogas ainda contribui para a expansão da violência e da população carcerária, majoritariamente pobre e negra. Da mesma forma concordo 100% com a defesa da legalização de todas as drogas, na medida em que tal política provavelmente resolveria o gravíssimo problema do uso de drogas de má qualidade (isto é, drogas misturadas com outras substâncias), que geram uma série de problemas de saúde e mortes. E eu concordo ainda que as drogas podem gerar tanto efeitos negativos quanto positivos, a depender, é claro, de uma série de fatores como a dosagem, a via de administração e o "set e setting", conceitos que dizem respeito às características individuais e ao ambiente físico e social onde o uso ocorre - fatores esses que são muito mais determinantes para os efeitos subsequentes do que as substâncias em si. As drogas, no meu entendimento, não devem ser vistas nem como anjos e nem como demônios, mas apenas como algo que as pessoas usam e continuarão usando para variados fins. Como Carl Hart não vejo muito sentido em lutar contra esse impulso humano demasiado humano - como a "guerra às drogas" tem feito tragicamente há muitas décadas. Uma abordagem realista e pragmática, como a defendida pelo autor, me parece muito mais sensata e necessária...

Trecho do livro: "Minha jornada me mudou profundamente. Redescobri a Declaração de Independência e os nobres ideais que ela expressa. Ela garante a cada um de nós "certos direitos inalienáveis", entre eles os da "vida, liberdade e busca da felicidade", contanto que não violemos os direitos dos outros. Dito de maneira simples, tenho o direito de usar substâncias em minha busca pela felicidade. Usar ou não uma droga é uma decisão minha, não do governo. Além disso, meu consumo responsável de drogas não deveria ser submetido a punições por parte das autoridades. Essas ideias estão no centro de nossas noções de autonomia e liberdade pessoal. A abordagem punitivista atual para lidar com usuários de drogas recreativas é totalmente antiamericana".

Como complemento a esta resenha recomendo a leitura deste breve ensaio do Carl Hart: Conceber a dependência química como uma doença cerebral promove injustiça social

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Separada/mente: uma resenha da série "Ruptura"

E já que tem tanta gente falando da série Ruptura, falarei dela também, pois trata-se de uma das produções mais interessantes e criativas que vi nos últimos anos. Criada por Dan Erickson e com vários episódios dirigidos pelo Ben Stiller, Ruptura (originalmente intitulada Severance, que significa separação em português) imagina um bizarro cenário distopico no qual uma megaempresa chamada Lumon cria e implanta em alguns de seus funcionarios um dispositivo cerebral capaz de separar as memórias do período no trabalho das memórias do periodo fora do trabalho. Sabe aquela velha questão de como conciliar ou equilibrar trabalho e "vida pessoal"? Pois este dispositivo supostamente resolve este problema ao literalmente dividir o indivíduo em dois: o sujeito do trabalho (chamado na série de "interno") e o sujeito da "vida pessoal" (chamado de "externo"). Embora habitem o mesmo corpo tais sujeitos possuem consciências e memórias completamente separadas - daí a ideia de "ruptura". Quando o "externo" desce no elevador para se dirigir ao seu local de trabalho o dispositivo desliga as memórias de sua "vida pessoal" e ele passa a se lembrar apenas de experiências vivenciadas no escritório. E da mesma forma, quando o "interno" sobe no elevador ao final do experiente, as memórias de tudo o que viveu durante o dia simplesmente desaparecem e ele sai da empresa como se nunca tivesse estado lá - e, portanto, sem qualquer mal-estar relacionado ao trabalho. Trata-se, sem dúvida, de uma premissa interessantíssima que é desenvolvida e explorada de forma brilhante ao longo dos nove episódios desta primeira temporada. E ao contrário de grande parte das séries, que na minha visão não precisavam de mais do que uma temporada para desenvolver bem a narrativa sem precisar encher linguiça, Ruptura cria um universo tão repleto de possibilidades e mistérios que apenas uma temporada não teria como ser suficiente. Felizmente a segunda temporada já foi confirmada! A série está disponível oficialmente na plataforma AppleTV+ e também, é claro, em plataformas "alternativas" como a Superflix. Recomendo fortemente esta produção intrigante e assustadora que é muito Black Mirror!

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Por que estamos tão cansados? Uma resenha do livro "Não aguento mais não aguentar mais"

Para muito além das afirmações genéricas do filósofo Byung-Chul Han na obra Sociedade do cansaço, a jornalista Anne Helen Peterson explica e analisa em detalhes, neste livro sensacional, os motivos pelos quais estamos tão cansados - especialmente, mas não exclusivamente, os chamados Millenials ou geração Y, que nasceram entre 1981 e 1995 (meu caso) e que a autora toma como foco de sua análise. Na visão de Peterson, os motivos para tal cansaço são múltiplos e incluem desde a demolição do Estado de Bem-estar social e a precarização/terceirização/uberização do trabalho até a onipresença das mídias digitais. Em cada um dos capítulos a autora analisa um amplo processo social iniciado ou intensificado pelas gerações dos nossos pais que construiu as bases do mundo que herdamos e que temos contribuído para piorar. E embora ela enfoque a situação dos Estados Unidos, grande parte de sua análise acaba sendo válida também para a realidade brasileira. A grande sacada da autora, e que a diferencia dos infinitos livros de autoajuda lançados todos os dias, é que tanto as explicações que ela apresenta quanto as possíveis soluções não são individuais, mas coletivas. Não se trata, portanto, de pensar como eu, individualmente, posso lidar com o cansaço que me acomete dia após dia, mas como podemos lidar com isso coletivamente, de forma que os trabalhadores em geral não sejam tão explorados e não se sintam, por conta disso, tão cansados. Como Peterson afirma na conclusão do livro, "podemos reconhecer que não é suficiente tentar melhorar as coisas para nós mesmos. Temos que melhorar as coisas para todos. E é por isso que mudanças significativas e verdadeiras precisam vir do setor público" Interessante perceber, nessa direção, que a autora se utiliza da expressão burnout não como um diagnóstico médico - que como todo diagnóstico se foca no indivíduo - mas como um elemento da cultura. É a forma como estruturamos nossa sociedade, em seus variados aspectos, que gera todo esse cansaço, sentido de forma mais ou menos intensa por cada um de nós. Enfim, recomendo fortemente este livro maravilhoso e necessário!

Trecho do livro: "Não temos que valorizar a nós mesmos e os outros pela quantidade de trabalho que fazemos. Não temos que nos ressentir dos nossos pais ou avós por terem vidas mais fáceis que as nossas. Não temos que nos submeter à ideia de que o racismo e o machismo estarão presentes sempre. Podemos chegar à espetacular e radical conclusão de que temos valor, cada um de nós, simplesmente por existirmos. Podemos nos sentir muito menos solitários, muito menos exaustos, muito mais vivos. Mas é necessário bastante esforço pra compreender que a forma de alcançar isso tudo não é, na verdade, trabalhando mais".

segunda-feira, 28 de março de 2022

Quando a realidade supera a ficção: sobre "O caso do policial canibal" e "Finders keepers"

Eu já indiquei lá no meu perfil no Instagram mas queria deixar registrado também aqui no blog a sugestão de dois documentários norte-americanos bizarríssimos, que provam que a realidade frequentemente supera a mais louca ficção: 1) "O caso do policial canibal" (2015): disponível na HBO Max, este documentário conta a história de um policial que foi preso por compartilhar anonimamente em um site algumas fantasias sobre canibalismo. Você leu corretamente: o sujeito foi preso por fantasiar coisas bizarras na internet. Ele nunca comeu ninguém (neste sentido mais literal, claro), ele apenas imaginou e compartilhou com algumas pessoas suas fantasias canibais - e foi preso e condenado por isso. Agora imagina só se as pessoas começassem a ser presas por conta de suas fantasias e intenções e não somente por suas ações? Muito provavelmente não existiriam vagas suficientes nas prisões para tantos criminosos. 2) "Finders keepers" (2015): disponível na Prime Vídeo, este documentário - cujo título poderia ser traduzido como "Achado não é roubado" - conta a história de um sujeito que comprou uma churrasqueira usada e encontrou dentro dela um pé humano mumificado. Daí o "dono" do pé - isto é, o homem que perdeu o pé em um acidente e que decidiu mumificá-lo (e que depois perdeu seu pé pela segunda vez esquecendo-o no interior da churrasqueira vendida) - entrou em contato com esse sujeito demandando seu pé de volta. Mas o sujeito não quis devolver e o caso virou uma batalha judicial pela posse de um pé decepado. Uma história bizarra com personagens mais bizarros ainda.

Saiba mais sobre "o caso do policial canibal" nesta excelente reportagem da BBC.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Palestra: "Uma (breve) história do cérebro plástico"

Ontem à noite eu tive a honra de participar da XI Semana Nacional do Cérebro da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), evento organizado pela equipe do Laboratório de Psicofisiologia da instituição. Nesta palestra, intitulada "Uma (breve) história do cérebro plástico", eu discorri sobre um dos tópicos que venho desenvolvendo no doutorado, que é uma tentativa de (re)construir a história da ideia e do conceito de neuroplasticidade, fundamental para o campo neurocientífico contemporâneo. Caso este assunto te interesse, assista à palestra na íntegra no video abaixo, disponível no canal do Núcleo de Transmissão da UFOP (Nutrans). E aproveito a ocasião para agradecer ao querido Aisllan Diego de Assis, docente do Departamento de Medicina de Família, Saúde Mental e Coletiva da UFOP (e antigo colega de mestrado lá no Instituto de Medicina Social da UERJ), pelo convite. Foi uma honra falar sobre este tema que considero tão interessante - e que está tão fresco em minha mente - para um evento tão importante como esse!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Uma resenha do livro "A fábrica de cretinos digitais"

Confesso que tive um enorme preconceito inicial com o livro "A fábrica dos cretinos digitais", e até comentei isso nas redes sociais, mas como o tema me interessa academicamente, eu decidi lê-lo mesmo com toda essa desconfiança. E eu me surpreendi muito positivamente - aliás, recomendo-o com entusiasmo, especialmente para pais de crianças e adolescentes. E o motivo é que para além do título e do subtítulo um tanto sensacionalistas e catastrofistas, este ótimo livro, escrito pelo neurocientista francês Michel Desmurget e lançado  no Brasil em 2021, traz uma série impressionante de dados e de boas reflexões sobre o impacto negativo dos dispositivos digitais no desempenho escolar, no desenvolvimento cognitivo e na saúde física e mental das pessoas, especialmente das crianças e adolescentes. Mas o autor vai além e reflete de forma igualmente bem embasada sobre o fracasso das políticas de digitalização do sistema escolar em todo o mundo, que não apenas não foram efetivas como foram, em grande medida, prejudiciais. O livro foi originalmente publicado em 2019 - antes, portanto, da pandemia - mas todo este longo período de isolamento só comprovou muitas das teses do autor. Por sinal, uma das principais queixas que tenho recebido nos últimos anos, enquanto um psicólogo de uma universidade, diz respeito à dificuldade manifestada pelos estudantes de prestar atenção nas aulas online e de se concentrar no estudo individual mediado pelo computador ou pelo celular - e inúmeras pesquisas tem demonstrado tais dificuldades, relacionadas à terrível capacidade das telas de estimular a dispersão. A pandemia deixou igualmente clara a diferença qualitativa fundamental entre as aulas presenciais e virtuais assim como a falta que fazem os encontros presenciais, olho no olho. Este livro de  Desmurget trata, no fim, da necessidade e da importância das interações "reais" entre as pessoas (isto é, das interações não mediadas ou interrompidas por telas), especialmente nas etapas iniciais do desenvolvimento humano, mas também na vida adulta. Como afirma o autor, "o cérebro humano se revela, pouco importa a idade, bem menos sensível a uma representação em vídeo do que a uma presença humana efetiva. É por essa razão, especialmente, que a potência pedagógica de um ser de carne e osso ultrapassa de modo tão irrevogável a da máquina". Enfim, ao contrário do que eu imaginava inicialmente, não se trata de uma obra tecnofóbica que pretende demonizar as novas e onipresentes tecnologias de comunicação, mas sim de uma embasada e detalhada análise dos inegáveis impactos negativos de tais tecnologias na vida e na saúde de cada um de nós e da população em geral.

Trecho do livro: "Todos esses dados sugerem expressivamente que um excesso de estímulos sensoriais durante a infância e adolescência age negativamente sobre o desenvolvimento cerebral. Excesso de imagens, sons e solicitações diversas parecem criar condições favoráveis ao surgimento de déficits de concentração, transtornos de aprendizagem, sintomas de hiperatividade e vícios. É sem dúvida tentador comparar esses achados com observações epidemiológicas que mostram um aumento nos diagnósticos de TDAH (e de prescrição de medicamentos associados) ao longo das duas últimas décadas. É também tentador lembrar que o consumo de telas recreativas está, além de seus efeitos anteriormente documentados sobre a concentração, associado de modo significativo ao risco de TDAH na criança e no adolescente".