terça-feira, 16 de julho de 2024

"No coração do suicídio há sempre um mistério": uma resenha do livro "O que não tem nome"

"Qual o tamanho da dor de quem se despede de si mesmo?". Pois esta é uma das muitas perguntas feitas pela escritora colombiana Piedad Bonnett no livro "O que não tem nome", recém-lançado pela Editora DBA. Neste livro autobiográfico brilhante e aterrador, lançado originalmente em 2013, a escritora relata e reflete sobre uma das situações mais trágicas que uma pessoa pode vivenciar: a morte de um filho. Mas no caso de Piedad a situação foi ainda mais dramática. Seu filho Daniel não morreu por acidente ou de causas naturais. Ele se suicidou - e não de qualquer maneira: ele se jogou do sexto andar do prédio em que morava em Nova York. E ele fez isso aos 28 anos de idade enquanto fazia um mestrado na Universidade de Columbia. E logo após cremarem o corpo do filho, Piedad afirma ter sido tomada por um "impulso investigativo" cuja motivação era compreender quem, afinal de contas, era Daniel e porque ele agiu como agiu. Como ela afirma em certo momento, de forma poética "no coração do suicídio, mesmo nos casos em que se deixa uma carta esclarecedora, há sempre um mistério, um buraco negro de incerteza em torno do qual perguntas se esvoaçam, feito borboletas enlouquecidas". De alguma forma, Piedad sabe que por mais que investigue jamais conseguirá juntar todas as peças do quebra-cabeça - como bem afirmou Javier Marias, citado por ela, "a verdade é sempre um emaranhado" - mas, ainda assim, ela se permite investigar. E para tanto conversa com médicos, amigos e namoradas de Daniel, além, é claro, de tentar reconstituir suas próprias memórias. E sua investigação a leva de volta às primeiras crises psicóticas vivenciadas pelo filho, que o levaram a receber o diagnóstico de Transtorno Esquizoafetivo, a ser internado e a passar por inúmeros tratamentos. Mas para além disso, ele lutava todo o tempo contra seu rigor e autocobrança excessivos, que o levaram a abandonar o sonho de ser artista. Nenhum desses fatores, contudo - juntos ou separadamente - parecem dar conta de explicar o terrível desfecho da vida de Daniel. E muito menos de responder à indagação feita por sua mãe: "como alguém que estava tão vivo poderia morrer?". Nenhuma resposta parece ser suficiente...

Trecho do livro: "Qual o tamanho da dor de quem se despede de si mesmo? Daniel amava seu corpo, cuidava dele, mimava-o, vestia-o com esmero. Será que sentiu dor ao saber que estava abandonando, que estava se abandonando para sempre? Mas Daniel também devia odiar aquele corpo que o traía, que o agredia, que o expunha ao medo, à confusão, ao delírio, e que de forma sorrateira o tornou diferente dos outros, diante de quem ele se viu obrigado a representar serenidade e lucidez. E muitas vezes deve ter odiado a vida, aquela que tanto amava, por ter escolhido justamente ele para sacrificar. Não teria mais que enfrentar responsabilidades extenuantes. Não teria mais que guardar um segredo, nem sorrir por obrigação, nem ter sucesso, apesar de se sentir distante ou com medo de tudo, cansado, confuso, abatido por saber que estava condenado para sempre. Não teria mais... Compreender a magnitude da liberdade que teria, talvez tenha lhe dado a paz momentânea e a força para se abandonar e abandonar o mundo. Dizem, assim como a dor física extrema pode nos fazer perder a consciência do espírito, a dor espiritual pode fazer com que esqueçamos o sofrimento do corpo. Quero pensar, como o médico, que Daniel não lutou conscientemente essas batalhas; quero pensar que Daniel não se jogou, mas voou em busca de sua única liberdade possível".

Cinquenta tons de apatia: uma resenha do filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou"

Ann é uma mulher novaiorquina de trinta e poucos anos, que exerce um trabalho entendiante e que tem frequentes encontros de submissão voluntária com alguns homens, que ela chama de "mestres" - ela é, em suma, masoquista e adepta da prática BDSM. Pois esta é a sinopse do interessante e estranho filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou", escrito, dirigido, editado e protagonizado pela Joanna Arnow - e que acabou de estrear em alguns cinemas. O filme é composto por uma sucessão de de cenas curtas de Ann sozinha em casa ou então com seus pais, com seus (poucos) amigos, com seus colegas de trabalho e, especialmente, com seus "mestres" - e as melhores e mais engraçadas cenas do filme, sem dúvida, são estas (não é sem sentido, portanto, que ele venha sendo definido como uma "comédia BDSM"). Algo que me chamou muita atenção na narrativa é o enorme tédio/apatia que a Ann manifesta quase todo o tempo com relação à quase tudo - o que me remeteu à brutal indiferença do protagonista do livro "O estrangeiro", do Albert Camus.  "Aquela sensação", enfim, é uma obra muito peculiar sobre uma millenial tentando encontrar o seu lugar em um mundo que Bauman definiria como líquido. Esse filme, aliás, é - todo ele - muito baumaniano! Se tiver a possibilidade - e a mente aberta a experiências cinematográficas diferentes - não deixe de assistir a esse filme, que o jornal New York Times caracterizou de forma irônica e precisa como "cinquenta tons de apatia".

E agora uma pequena crônica sobre a sessão de cinema: Logo antes do filme "Aquela sensação" começar, foi exibido o trailer do documentário "Orlando: minha biografia política", dirigido pelo Paul Preciado - que eu estou louco para assistir, já que considero Preciado um dos grandes pensadores dos nossos tempos. Mas o ponto é que após o trailer de Orlando ser exibido, uma senhora que estava sozinha em uma poltrona logo atrás de mim comentou em voz alta - ela não chegou propriamente a gritar, mas falou alto o suficiente para que os outros dois espectadores que estavam na sala pudessem ouvir, eu incluído: "Que porcaria!". O que a incomodou provavelmente foi a profusão de pessoas trans e não-binárias que aparecem no trailer de Orlando. Mas daí o filme que viemos assistir começou e eu não consegui deixar de pensar o que ela estaria achando de um filme que inclui algumas dezenas de cenas da protagonista completamente nua se submetendo a um "mestre" - em uma das cenas, por exemplo, ela coloca um biquíni e um nariz de porco e se masturba seguindo as ordem de um homem. A senhora permaneceu todo o tempo em silêncio, mas assim que o filme terminou ela não se conteve e gritou "Que porcaria! Que filme nojento!". Me veio a vontade, na hora, de gritar pra ela "Vai assistir Brasil Paralelo, p@rra!" mas eu lembrei que jamais agiria dessa maneira e me contive. E ela continuou manifestando sua indignação descendo as escadas do cinema: "Que porcaria! Que porcaria!" Eu imagino que ela não estava se referindo à cena da fantasia de porco...

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Masculinidades políticas: uma resenha do romance "O presidente pornô"

Como escrever uma sátira política em um tempo no qual se multiplicam figuras políticas grotescas como Bolsonaro e Donald Trump? Pois este foi o desafio enfrentado pela escritora Bruna Kalil Othero/BKO na escrita do seu romance de estreia, "O presidente pornô", publicado em 2023 pela Companhia das Letras. E, na minha visão, ela conseguiu atender e superar este desafio com habilidade. Neste livro satírico e sacana Bruna retrata, através de uma peça de teatro apresentada aos futuros imperadores do Plazil (sim, Plazil), a vida, a ascensão e a queda do grande político plazileiro Bráulio Bestianelli, figura burlesca inspirada obviamente em presidentes de direita caricaturais como Bolsonaro e Collor mas também em inúmeros outros políticos brasileiros. Em uma palestra da autora que eu assisti recentemente, ouvi ela dizer que Bestianelli seria uma espécie de monstro do Dr. Frankenstein, resultado da junção de muitos desses políticos que passaram pela presidência do Brasil - quase todos homens, cabe apontar, com honrosa exceção de uma. Nesta palestra, Bruna também relatou que a escrita deste livro teve relação com o seu grande interesse pelo tema das masculinidades - e ao ler "O presidente pornô" sob essa ótica, ele fica ainda mais interessante, pois percebemos como todas essas personalidades políticas, condensadas na figura de Bestianelli, compartilham dos mesmos traços e problemas da masculinidade hegemônica - que incluem a constante busca pela virilidade e a repulsa pela feminilidade (e também pela homossexualidade). Mas ao ler essas palavras não se engane: Bruna não trata dessas questões de forma didática ou acadêmica. Ela o faz com muito humor, sarcasmo e zombaria, misturando episódios bizarros da nossa história política com elementos da cultura popular (como as pornochanchadas, a banheira do Gugu e as enquetes do Porta dos Fundos). Trata-se, enfim, de um livro muito interessante, inusitado e provocativo, que certamente dividiu e continuará dividindo as opiniões. Como a própria autora afirmou em sua palestra, ninguém fica indiferente a um livro peculiar como esse: há quem ame e quem odeie. Eu amei e recomendo fortemente!

Trecho: "Coisas que todo homem deve saber, por Chupetão Bestianelli: 1. A honra de um homem reside na sua calça. 2.Um homem nunca deve dar ouvidos a uma mulher; a mulher sempre deve dar ao homem. 3.Todo homem tem duas cabeças, e a sabedoria masculina está em equilibrar dentro de sua voz de cada uma. 4.A essência da felicidade se baseia em ter o que comer. Um prato de comida, uma mulher. 5.Nunca se esqueça dos homens que vieram antes de ti".

terça-feira, 18 de junho de 2024

"20.000 espécies de abelhas" e a infância trans

No maravilhoso filme espanhol "20.000 espécies de abelhas", primeiro longa-metragem da cineasta Estibaliz Urresola Solaguren, acompanhamos o retorno de uma mãe com seus três filhos para sua cidade natal no País Basco. A história é centrada em uma das crianças, que chamarei aqui de Cocó, pois ela é assim denominada, inicialmente, pela irmã mais velha. Pois Cocó, que tem cerca de 9 anos, é entendida e vista como um menino por quase todas as pessoas, inclusive por sua família. No entanto, Cocó se identifica como uma menina e se interessa por brinquedos e roupas femininas. Cocó, entendemos logo, é uma menina trans. Mas a grande questão do filme é que esta personagem é apresentada e retratada em um momento de sua vida que poderíamos chamar, talvez equivocadamente, de pré-reflexivo: Cocó ainda não tem uma compreensão racional e profunda do que se passa consigo mesma. Ela ainda não sabe que é uma garota trans ou que existe alguma palavra que poderia definir o que se passa com ela; Cocó apenas sente uma terrível e constante sensação de desconexão e de incômodo com o mundo à sua volta, como se fosse um "peixe fora d'água". Quando é levada por sua mãe a um clube, por exemplo, Cocó, tal qual um animal encurralado, deseja fugir logo dali para não ter de ir à piscina e se mostrar para os outros (e para si mesma) de sunga, símbolo de uma masculinidade que ela sente não se encaixar- e diante da impossibilidade de vestir um biquíni ou um maiô, como gostaria, ela fica todo o tempo de roupão. Mas Cocó não expressa tal incômodo com palavras e sim com seu corpo e suas expressões faciais. É preciso exaltar, nesse sentido, a brilhante interpretação da atriz mirim Sofía Otero (que é cis e não trans), merecidamente premiada com o Urso de Prata de melhor atuação no Festival de Berlim em 2023. Mas o filme está repleto de ótimas performances - e eu destacaria ainda as atrizes que interpretam a mãe e a tia de Cocó, que imprimem grande intensidade e afeto em suas atuações. Eu teria muito mais a dizer sobre este filme, que discute com muita sensibilidade o tema das infâncias trans, mas por hora queria apenas recomendar fortemente esta linda obra, que acabou de ser incluída no catálogo da Reserva Imovision.

7 excelentes livros com narrativas de transtorno mental

Na esteira da postagem anterior, sobre o livro "Esquizofrenias reunidas", eu gostaria de indicar agora outros seis (na verdade, sete) excelentes livros, lançados no Brasil, que trazem relatos de indivíduos diagnosticados com determinados transtornos mentais. Certamente existem muitas outras obras, mas estas são aquelas que eu li e que considero muito boas. Na verdade, como algumas dessas obras eu li há muitos anos, algumas talvez há duas décadas, pode ser que se eu as relesse hoje eu não achasse mais grande coisa - ou tivesse muitas críticas à forma como foram escritas. Só o que posso dizer, portanto, é que elas deixaram impressões muito positivas na minha memória. Em primeiro lugar indico dois relatos sobre vivências psicóticas escritos de forma anônima pelo L.F. Barros: "Memórias do delírio: confissões de um esquizofrênico", lançado em 1992, e "Anjo carteiro: a correspondência da psicose", lançado em 1996. Estas duas obras, pelo que eu saiba, estão esgotadas na editora Imago, estando disponíveis apenas em sebos físicos ou virtuais. As duas obras seguintes, por sua vez, trazem relatos de indivíduos depressivos: enquanto o clássico do Andrew Solomon "O demônio do meio-dia", lançado originalmente em 2001, faz uma profunda investigação pessoal e histórica sobre a depressão, "O ar que me falta" lançado vinte anos depois, em 2021, traz uma sensível narrativa sobre a vida e os episódios depressivos vivenciados pelo Luiz Schwarcz, criador e dono da editora Companhia das Letras. Já os três últimos livros trazem relatos de pessoas que poderíamos incluir no grande espectro da ansiedade: no soberbo "Meus tempos de ansiedade", lançado em 2014, o jornalista Scott Stossel condensa um relato pessoal extremamente sincero e uma narrativa histórica bastante ampla e embasada sobre o tema da ansiedade - veja a resenha aqui; já no livro "Bem que eu queria ir", lançado em 2009, Allen Shawn expõe as suas inúmeras fobias e ainda analisa a psicologia do medo; e por fim, em "O homem que não conseguia parar", lançado em 2015, David Adam narra suas vivências com o TOC e tenta compreender os sentidos das obsessões e compulsões. Caso algum desses livros lhe interesse, boa leitura!

Psicose em primeira pessoa: uma resenha do livro "Esquizofrenias reunidas"

No livro "Esquizofrenias reunidas", recém-lançado pela editora Carambaia, a escritora Esmé Weijun Wang apresenta treze ensaios sobre questões diversas mas que tem como ponto de conexão os diagnósticos psiquiátricos que ela recebeu ao longo dos anos - em especial o de transtorno esquizoafetivo, que a colocou no espectro das "esquizofrenias", como ela se refere, quase sempre no plural. Filha de imigrantes taiwandeses e nascida nos Estados Unidos, Ermé foi inicialmente diagnosticada com o transtorno bipolar devido a alguns episódios maníacos e depressivos que manifestou ainda no ensino médio mas, após ingressar na faculdade ela passou a vivenciar também alguns delírios e alucinações, que acabaram levando uma de suas psiquiatras a "fechar" o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo, que seria uma espécie de ponte ou de meio-termo entre os diagnósticos de bipolaridade e de esquizofrenia. Ao longo dos ensaios a autora discute tanto esse complexo e incerto processo de diagnóstico - que no seu caso levou anos para ser "fechado" - quanto os próprios sentidos das classificações psiquiátricas e do DSM, comumente chamado de "bíblia" da psiquiatria (sobre isso, aliás, ela afirma: "essa bíblia, assim como a judaico-cristã, é uma que se deforma e se transforma tão rápido quanto nossa cultura"). Mas Ermé discute ainda inúmeras outras questões como a relação entre esquizofrenia e criatividade, a decisão entre ter ou não filhos haja vista a compreensão vigente de que existiriam componentes hereditários nas psicoses, a relação entre experiências psicóticas e religiosas, etc. Mas para além disso a autora ainda narra e descreve em dolorosos detalhes as diversas internações em hospitais psiquiátricos que vivenciou ao longo dos anos - vivências estas que lhe geraram uma visão extremamente negativa especialmente das internações involuntárias, às quais ela foi submetida duas vezes. Enfim, nesta breve resenha não tenho como explorar todos os temas e questões discutidos por Ermé neste livro riquíssimo; eu queria apenas indicá-lo para todos aqueles e aquelas que, como, eu se interessam por narrativas em primeira pessoa de indivíduos diagnosticados com determinados transtornos mentais.

Trecho do livro: "É difícil descrever o horror de estar internada involuntariamente. Em primeiro lugar, há a experiência aterrorizante de ser colocada à força num lugar pequeno do qual não lhe permitem sair. Também não lhe permitem saber quanto tempo ficará ali, porque ninguém sabe quanto tempo você ficará ali. Você está sem as coisas que ama: seu diário, a pulseira que sua avó lhe deu, suas meias favoritas. Seu ursinho de pelúcia. Não há computadores. Nos hospitais em que estive, os únicos telefones permitidos eram os fixos, que podiam ser utilizados em determinados momentos do dia por um determinado período, fazendo com que os pacientes disputassem uma posição ao lado dos telefones e infernizassem os que estavam demorando demais. Vez ou outra permitem que alguém traga algo importante para você durante as horas de visita, embora isso só ocorra depois de uma enfermeira inspecionar os artigos; na maior parte das vezes as suas posses não são admitidas na enfermaria porque incluem uma ponta afiada ou uma espiral de metal ou um pedaço de tecido perigoso. Não lhe permitem escolher o que come e, dentre as escolhas limitadas que existem, você é forçado escolher apenas entre coisas nojentas. Eles lhe dizem quando dormir e quando acordar. Se passa tempo demais no quarto, isso indica que está sendo antissocial; se fica sentada nas áreas de convívio mas não interage com os outros pacientes, provavelmente é ou está depressiva ou excessivamente introvertida ou quem sabe até mesmo catatônica. As pessoas podem ser um mistério umas para as outras, mas pessoas com uma doença mental são particularmente opacas por causa do cérebro defeituoso. Não se pode confiar em nós para nada, incluindo nossa própria experiência".

"A menina silenciosa" e os sentidos do afeto

No filme irlandês "A menina silenciosa" (The quiet girl) - que em 2023 concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional (e perdeu para o alemão "Nada de novo no front") - acompanhamos Cáit, uma garota de 9 anos, que é levada para morar temporariamente com um casal mais velho e sem filhos. Cáit, que cresceu em um ambiente problemático e caótico - e provavelmente foi abusada sexualmente pelo pai (o que é sugerido mas nunca mostrado) - encontra neste lar temporário um espaço de acolhimento, afeto e cuidado que ela nunca vivenciara anteriormente. "A menina silenciosa" me lembrou, em vários sentidos, a maravilhosa série "Anne with an E", da Netflix, na medida em que ambas as produções retratam, com muita sensibilidade, a vida de uma garota rejeitada pela família biológica que é acolhida por um casal mais velho. Uma diferença significativa, contudo, é que enquanto Anne é de fato adotada pelo casal, Cáit é apenas abrigada temporariamente. Além disso, Anne é uma garota alegre e falante, ao passo que Cáit é melancólica, introspectiva e, como o título aponta, silenciosa. O que achei mais interessante no filme é como ele vai construindo lentamente a relação entre os personagens centrais - isto é, entre o casal e a menina. A narrativa não se apressa em fazer a história avançar - o que importa, de fato, é a maneira como os personagens vão interagindo, se conhecendo e se conectando, aos poucos, dia após dia. O filme retrata muito bem como um ambiente acolhedor, empático e afetuoso pode fazer uma grande diferença na vida de pessoas que sofreram variados tipos de privações, abusos e violências - as psicoterapias, quase sempre, almejam justamente criar um ambiente assim. Enfim, trata-se de um filme muito sensível e emocionante sobre uma garota encantadora. "A menina silenciosa" foi incluído hoje na plataforma de streaming Reserva Imovision.

O enigma de Alicia: uma resenha do romance "A paciente silenciosa"

A paciente silenciosa", primeiro romance do escritor Alex Michaelides, conta a história de Alicia, uma artista que levava uma vida aparentemente boa com o marido... até que certo dia ela o mata com vários tiros na cara. Ela é presa, internada em um hospital psiquiátrico e, desde o incidente, se mantém completamente calada. Passado algum tempo, um psicoterapeuta chamado Theo, que é o narrador da história, busca (e consegue) ser admitido neste hospital, tamanho o seu interesse por essa história e pelo enigma de porque ela teria matado o marido. E ele começa a atendê-la, deparando-se, desde o início, com uma dificuldade significativa, que é o fato dela não falar absolutamente nada e pouco se expressar corporalmente. Como seria possível fazer uma terapia com uma paciente silenciosa e nada disposta a cooperar? Em função disso, Theo inicia, por conta própria, uma investigação, buscando conversar com pessoas que conheceram e conviveram com Alicia - e também a analisar os quadros produzidos por ela. E pronto, não falarei mais sobre a história, já que o mais interessante é ir acompanhando passo a passo essa investigação feita pelo terapeuta-detetive. Eu gostaria apenas de pontuar que eu já sabia que teria uma reviravolta no final - que é óbvio que eu não vou revelar aqui. E à medida que eu ia lendo o livro eu fui tentando imaginar alguns cenários e desdobramentos possíveis. Mas tenho que confessar que o final me pegou de surpresa! É claro que tem um tanto de forçação de barra nesta reviravolta final mas ok, se o objetivo era surpreender o leitor eu fui surpreendido. De uma forma geral, não achei o livro uma obra-prima - é apenas um bom suspense - mas ele me prendeu como há tempos um romance não me prendia. E ainda me surpreendeu no final. Como entretenimento descompromissado "A paciente silenciosa" é uma ótima pedida! 

PS: em breve este livro dará origem a um filme ou série, já que o direito de adaptação foi adquirido por Hollywood. E muito provavelmente resultará em mais um suspense medíocre, como tantos que são lançados a cada momento. O livro até tem alguns pontos interessantes, mas acho muito difícil ele resultar em uma boa obra cinematográfica. Espero estar errado.

"O reino animal" e a animalidade humana

A superprodução francesa "O reino animal" (Le règne animal), escrita e dirigida pelo cineasta Thomas Cailley, retrata um mundo no qual inúmeras pessoas, de maneira aparentemente aleatória, começam a se transformar em animais - e eu digo "começam a se transformar" porque esta transformação, de gente em bicho, não ocorre abruptamente mas sim de forma lenta e dolorosa. E no meio desta "epidemia" acompanhamos um pai e um filho se adaptando a uma nova cidade algum tempo depois que esposa/mãe deles manifestou tal transformação e acabou sendo internada. Na minha visão, o filme é uma fantástica metáfora para a forma como lidamos ao longo da história com as pessoas entendidas como anormais - entendimento este que, cabe apontar, se alterou imensamente com o passar das décadas e séculos. Muitas vezes tais pessoas foram (e continuam sendo) aprisionadas, humilhadas, violentadas e mesmo mortas - e tudo isso em nome de um suposto risco/perigo que elas representam. No filme a principal medida adotada pelas autoridades quando a pessoa manifesta qualquer sintoma de "animalidade" é a prisão, isto é, a internação. No entanto, algumas pessoas começam a defender a necessidade de uma coexistência, isto é, de uma convivência mais próxima entre humanos e "bestas" e até mesmo a criação de um "reino animal", onde tais seres híbridos poderiam viver livremente, ainda que afastados dos seres humanos "puros". O filme explora tais discussões de uma forma muito sensível e tocante - e com excelentes efeitos especiais, que conseguem tornar as bizarras criaturas extremamente verossímeis. "O reino animal" foi lançado em 2023 na França mas ainda não tem data de lançamento no Brasil e não está disponível em nenhuma plataforma de streaming. Não me pergunte, portanto, onde eu assisti...

Uma resenha crítica do livro "Psicologia: uma brevíssima introdução"

Escrever um livro curto de introdução à psicologia é um desafio e tanto, haja vista a complexidade do campo e as inúmeras disputas e controvérsias internas. Em geral os autores falham miseravelmente nesta empreitada, seja por simplificarem ou ignorarem certas discussões, seja por não conseguirem conciliar um olhar histórico com debates e achados mais recentes do campo. Foi, portanto, com este receio, que eu iniciei a leitura do livro "Psicologia: uma brevíssima introdução", recém-lançado no Brasil pela Editora UNESP. Eu já havia lido outros livros da coleção "a very short introduction", originalmente publicados pela Oxford University Press - como "Inteligência Artificial: uma brevíssima introdução" e "Foucault: uma brevíssima introdução" - e gostei muito de todas essas edições. Mas este não foi o caso desta nova introdução sobre o campo da psicologia, escrita pelas psicólogas e professoras na Universidade de Oxford Gillian Butler e Freda McManus. Antes de falar dos problemas, contudo, acho importante salientar um ponto forte da obra: a organização dos capítulos. No total são dez capítulos sendo o primeiro uma introdução geral ao campo, o último uma conclusão e os demais dedicados a temas fundamentais da psicologia: percepção (c2), aprendizagem e memória (C3), pensamento, raciocínio e comunicação (C4), motivação e emoção (c5), psicologia do desenvolvimento (c6), diferenças individuais (c7), psicologia "anormal" (c8) e psicologia social (c9). Por outro lado, se o livro acertou em sua estruturação, ele errou feio no texto - excessivamente confuso, simplista e, eu arriscaria dizer, mal escrito. Parte desses problemas se deve, sem dúvida, à tradução, que deixou a leitura ainda mais cansativa e confusa - abaixo, nas observações, eu aponto para três erros crassos de tradução. Enfim, se a proposta era introduzir o campo da psicologia para leigos, eu até acho que o livro cumpriu seu propósito. No entanto, o estilo de escrita e a tradução não contribuíram em nada pra que obra se tornasse de fato relevante e imprescindível.

Observações: Trago aqui três exemplos de problemas de tradução - e eu consultei na internet a versão original. Na página 61 a frase do escritor Cormac MacCarthy "the past is always an argument between countersclaimants" foi traduzida de forma ininteligível para "o passado é sempre uma discussão entre reconvencionais" - o que não faz nenhum sentido para o leitor, especialmente para o leitor leigo, público-alvo do livro. Certamente há outras traduções melhores para a expressão countersclaimants. Já na página 73 o livro menciona as pesquisas sobre "preparação" sendo que, na verdade, as pesquisas mencionadas são sobre o efeito "priming", que não poderia jamais ser traduzido por "preparação" e sim por "pré-ativação". Faltou, neste caso, uma revisão técnica que apontasse para a tradução mais aceita na comunidade científica brasileira ou então que mantivesse o termo original, pelo menos entre parênteses. Finalmente, na página 188, a expressão "health anxiety (hyperchondriasis)" foi traduzida como "ansiedade (hipocondria), o que dá a entender que ansiedade seria sinônimo de hipocondria, sendo que no original é usada a ideia de uma ansiedade relacionada à saúde que, esta sim, seria sinônimo de hipocondria. Enfim, aponto aqui apenas para três erros crassos, dentre muitos outros, que atrapalham terrivelmente a leitura e confundem o leitor.

"Orion and the Dark" e os sentidos do medo

Orion é um garoto de onze anos extremamente medroso e ansioso. Ele tem medo de coisas variadas como do mar, das abelhas, dos cachorros, de palhaços assassinos, do garoto que faz bullying com ele na escola e até das ondas dos celulares. Mas acima de tudo, Orion morre de medo da escuridão da noite e sempre pede aos seus pais que deixem a porta aberta para a luz entrar. Acontece que em determinada noite seus pais apagam todas as luzes e ele entra em pânico no meio da escuridão. E é justamente nesse momento que o Escuro (Dark) aparece para ele e o leva em uma viagem pelo mundo da escuridão, onde ele é apresentado às outras entidades da noite (o sono, o sonho, o silêncio, a insônia e os barulhos aleatórios). Pois esta é a história da linda animação "Orion e o escuro", nova produção da DreamWorks que acabou de estrear na Netflix. O filme é dirigido pelo cineasta e animador Sean Charmatz, mas o que de fato me chamou a atenção - e me fez querer assistir ao filme - foi o fato de o roteiro, adaptado de um livro infantil homônimo, ter sido escrito pelo brilhante Charlie Kaufman, roteirista de "Quero ser John Malkovich", "Adaptação", "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" e diretor/roteirista de "Sinédoque, Nova York", "Anomalisa" e "Estou pensando em acabar com tudo" - todos filmes maravilhosos, alguns verdadeiras obras-primas contemporâneas (caso de Quero ser John Malkovich e Brilho eterno). E de fato Orion e o Escuro me surpreendeu muito positivamente. É uma animação linda visualmente, criativa e muito sensível e empática com os medos e ansiedades das crianças - e também (porque não?) dos adultos, já que o medo nos acompanha, de diferentes formas, por toda a vida. Eu gostei especialmente da forma como o filme retrata e demonstra, através de uma bela fábula, a importância da escuridão (em um sentido físico e psicológico) e também do medo. A grande mensagem do filme, na minha visão, é que o medo faz parte da vida e que devemos compreendê-lo e aceitá-lo em alguma medida, mas também enfrentá-lo sempre que necessário. Afinal, como disse Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem - e coragem não é não ter medo mas seguir adiante mesmo com medo.

Em prol de uma suicidologia crítica: uma resenha do livro "(Re)pensando o suicídio"

No último Setembro Amarelo, eu indiquei lá no Instagram o livro "(Re)pensando o suicídio: subjetividades, interseccionalidade e saberes pluriepistêmicos", organizado pelos psicólogos Luana Lima e Paulo Navasconti e lançado em 2022 pela EdUFBA. E posteriormente eu tive a grata surpresa de descobrir que este livro venceu o 9° Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU) na categoria Ciências Humanas. Aproveito esta excelente notícia para parabenizar os organizadores e autores por esta vitória e também para indicar aos/às colegas psi esta importante obra, que traz um olhar amplo, crítico e contra-hegemônico sobre o complexíssimo fenômeno do suicídio. Como os organizadores pontuam na apresentação do livro, o olhar hegemônico é baseado em "avaliações determinista, individualistas e psicopatologizantes" que tendem a ver o suicídio como consequência do adoecimento psíquico individual. Na contramão desta ótica, o livro busca contemplar uma dimensão relacional e política raramente enfatizada pela suicidologia tradicional. Como afirmam os organizadores, "assentimos que, para avançar no campo de estudo em suicídio, é preciso superar a estratégia hegemônica da medicalização e dar conta de uma complexidade invisibilizada que envolve, entre outras coisas, pontos cegos de saúde pública, o epistemicídio, os processos de colonialidade, vidas e corpos dissidentes marcados pelo racismo, cisheteronormatividade, capacitismo, desigualdade social, etc". A ideia, em suma, é construir uma suicidologia crítica assentada em um olhar interseccional sobre o fenômeno. Como também apontam na apresentação, "partimos da aposta que o sofrimento é político e, assim sendo, é preciso recusar qualquer resposta universalista e contextualizá-lo, de modo privilegiado, pela vida da perspectiva interseccional. Abordar o suicídio pelo olhar interseccional é ampliar as ferramentas de compreensão e considerar as opressões, discriminações, relações de poder, bem como possíveis fatores e elementos que constituem a realidade de determinados grupos sociais". Trata-se, enfim, de um livro altamente recomendável para todos aqueles e aquelas interessados nessa temática fundamental.

"Incompatível com a vida" e o luto gestacional

Logo no início do fantástico documentário "Incompatível com a vida", a diretora Eliza Capai conta que ao longo de sua carreira como documentarista ela sempre quis compreender e retratar realidades bem diferentes da sua - por exemplo, no documentário "Tão longe é aqui" ela foi até a África conversar com algumas mulheres sobre suas vidas; já em "Espero tua (re)volta" Capai acompanhou as ocupações de escolas realizadas por estudantes do ensino médio em 2015. Mas este seu objetivo de retratar outras realidades se alterou quando ela engravidou em 2020 e com 14 semanas de gestação recebeu a terrível notícia de uma malformação que tornaria seu bebê "incompatível com a vida" - esse foi precisamente o termo técnico utilizado pelo médico durante o exame de ultrassom. Ainda abalada com a notícia de que o seu primeiro filho morreria na gestação ou logo após o parto, ela decidiu manter a câmera voltada para si - já que desde o início da gravidez ela passou a registrar o seu dia-a-dia - e retratou todo este doloroso processo de luto. E após realizar a interrupção da gravidez em Portugal (onde o aborto é legalizado desde 2007) ela procurou outras mulheres que passaram por situações semelhantes à sua. E a partir das conversas com essas mulheres (e seus maridos, em alguns casos) - realizadas com muita sensibilidade e empatia - a diretora criou um retrato tocante tanto do luto ocasionado pela perda gestacional quanto daquele sofrimento relacionado às dificuldades legais e médicas encontradas por aquelas que optaram pela interrupção da gestação - a diretora defende e ressalta, nesse sentido, a necessidade de um atendimento humanizado pelos profissionais de saúde assim como de um aborto seguro, nos casos de "incompatibilidade com a vida" e em outros casos. O documentário - que foi o grande vencedor do festival "É tudo verdade" em 2023 - é pesado de assistir (por lidar com temas difíceis como a morte e o luto) mas, ao mesmo tempo, é muito bonito, sensível e emocionante. "Incompatível com a vida" está atualmente disponível na Mubi.

Você já ouviu falar em otimismo cruel?

Meu primeiro contato com o conceito de otimismo cruel ocorreu durante a leitura do livro "Foco roubado", do Johann Hari, cuja resenha eu publiquei neste post. É claro que a ideia de um otimismo cruel faz parte daquilo que eu discuto há tempos, mas eu nunca tinha ouvido falar especificamente dessa expressão, que condensa perfeitamente um problema amplamente disseminado na prática e no discurso psicológicos - e na área da saúde de uma forma geral. Mas o que é o otimismo cruel? Segundo Hari "é quando se pega um problema realmente grande, com causas profundas em nossa cultura - como a obesidade, ou a depressão, ou o vício - e oferece às pessoas, em linguagem positiva, uma solução individual simplista. Soa otimista, porque você está dizendo a elas que o problema pode ser resolvido, e rapidamente - mas na realidade é cruel, porque a solução que oferece é tão limitada, e é tão cega às suas causas mais profundas, que a maioria das pessoas falha". Um exemplo analisado pelo autor é o do estresse, que muitas vezes é atribuído a uma falha pessoal no controle das emoções - o que pode ser sintetizado por um trecho de um livro de autoajuda segundo o qual "o estresse não é algo que nos seja imposto. É algo que impomos a nós mesmos". Hari aponta, contudo, que um grande estudo norte-americano identificou as principais causas de estresse nos EUA, que incluem a falta de um plano de saúde, a constante ameaça por demissões, a falta de autonomia nas tomadas de decisões, longas jornadas de trabalho, etc. Dizer, nesse sentido, que a solução para o estresse é que as pessoas pratiquem meditação não passa, portanto, de mais uma forma de otimismo cruel. Um dos entrevistados de Hari deu um exemplo pungente de uma empresa que oferecia aulas de meditação para os funcionários ao mesmo tempo em que cortava seus planos de saúde. Afirma Hari: "é fácil ver o aspecto de crueldade disto. Você diz a alguém que há uma solução para o seu problema e então o mergulha em um pesadelo. Não vamos dar insulina aos funcionários, mas daremos aulas sobre como mudar sua forma de pensar. É a versão século 21 de Maria Antonieta, 'então que comam brioches'. Então que tenham atenção plena". Hari salienta ainda que embora o otimismo cruel pareça positivo e otimista ele costuma ter um efeito terrível: "quando aquela solução de pouco alcance falha, como acontece na maioria das vezes, o indivíduo não culpará o sistema - colocará a culpa em si mesmo. Achará que foi ele que estragou tudo e que simplesmente não é bom o suficiente para ter sucesso". Além disso, o otimismo cruel parte do pressuposto fatalista de que não somos capazes de mudar significativamente os sistemas que estão coletivamente nos prejudicando e que, portanto, só o que podemos fazer é alterar nossos "eus" isoladamente. O autor aponta, nesse sentido, que uma alternativa ao otimismo cruel não é o pessimismo, ou seja, a ideia de que não se é capaz de mudar nada, e sim o otimismo autêntico. Segundo Hari " é com ele que você honestamente reconhece as barreiras que lhe impedem de alcançar sua meta e estabelece um plano a ser levado adiante junto a outras pessoas a fim de desmantelar essas barreiras, uma a uma". Talvez seja possível dizer que uma alternativa ao otimismo cruel seja a esperança, não no sentido de esperar passiva e solitariamente por uma melhora, mas no sentido de construir ativa e coletivamente as condições para as mudanças que precisam ser feitas.

OBS: Uma curiosidade sobre a imagem que ilustra essa postagem é que ela foi produzida por uma inteligência artificial (o criador de imagens do Bing) a partir da expressão "cruel optimism".

Atenção! Uma resenha do livro "Foco roubado"

Queixas de falta de atenção se multiplicam nos consultórios psicológicos e médicos. Onde eu atendo, então, em uma universidade pública, tais queixas são especialmente comuns e cotidianas. E por conta dessa demanda contínua, eu estou sempre lendo e tentando me manter informado sobre o tema da atenção/ concentração. Ao longo dos anos eu li muitos e muitos livros sobre esta questão, mas eu jamais tinha lido uma obra tão abrangente e interessante como "Foco roubado: os ladrões de atenção da vida moderna", recém-lançada pela editora Vestígio. Nesta obra, originalmente intitulada "Stolen focus: why you can't pay attention", o jornalista britânico Johann Hari faz uma profunda investigação sobre as razões pelas quais a atenção se tornou um problema (e também uma enorme fonte de lucro) na atualidade. Como o título do livro dá a entender, na visão do autor a atenção vem sendo roubada pelas grandes corporações, especialmente pelas grandes empresas de tecnologia, mas também por poderosas e arraigadas forças sociais que atrapalham o nosso sono, pioram nossa alimentação e nos fazem respirar e ingerir todos os dias inúmeras e danosas toxinas. E segundo Hari se as causas desse problema são amplas e sociais, as soluções não passam por mudanças individuais de hábitos - como pregam os livros de auto-ajuda, sempre focados na responsabilidade pessoal - mas acima de tudo por mudanças coletivas. Como afirma o autor na introdução, "problemas sistêmicos exigem soluções sistêmicas. Precisamos assumir nossa responsabilidade por esse problema mas, ao mesmo tempo, precisamos também assumir nossa responsabilidade coletiva para lidar com esse fatores mais profundos". E as soluções apresentadas pelo autor, após longa investigação, passam por mudanças amplas no controle estatal das grandes empresas de tecnologia, nos regimes de trabalho e até mesmo na forma de educar as crianças. Os desafios são enormes e complexos, no entanto, eles precisam e podem ser enfrentados. Afinal, como afirma o autor, citando James Baldwin, "nem tudo que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado sem ser enfrentado".

Trecho do livro: "Se continuarmos sendo uma sociedade de pessoas severamente privadas de sono e com sobrecarga de trabalho; que mudam de tarefa a cada três minutos; que são rastreadas e monitoradas pelos sites de mídias sociais projetados para descobrir vulnerabilidades e manipulá-las para nos fazer rolar, rolar e rolar uma tela; pessoas que ficam tão estressadas que se tornam hipervigilantes; com dietas que fazem nossa energia ter picos e depois uma grande baixa; que respiram todos os dias uma sopa química de toxinas que inflamam o cérebro - então sim, vamos continuar sendo uma sociedade com graves problemas de atenção. Mas há uma alternativa. Precisamos organizar e lutar - para tomar de assalto as forças que estão incendiando nossa atenção e substituí-las por forças voltadas à nossa cura (...) Por muito tempo, nós achamos que nossa atenção era algo que podíamos contar sempre, como um cacto que crescia mesmo nas mais áridas condições de clima. Agora a gente sabe que ela está mais para uma orquídea e requer grandes cuidados para não murchar. Com essa imagem em mente, tenho agora uma noção de como seria um movimento que reivindicasse recuperar nossa atenção. Eu começaria com três metas ambiciosas e ousadas. Primeira: banir o capitalismo de vigilância, porque pessoas que são hackeadas e engajadas à força não são capazes de focar. Segunda: introduzir uma semana de quatro dias, porque pessoas cronicamente exaustas não conseguem prestar atenção. Terceira: reconstruir a infância permitindo que crianças brinquem livremente - nos seus bairros e escola - porque crianças aprisionadas em casa não são capazes de desenvolver uma aptidão saudável de prestar atenção. Se alcançarmos essas três metas, a capacidade de prestar atenção das pessoas melhorará dramaticamente ao longo do tempo. Então teríamos um núcleo sólido de foco, e poderíamos usá-lo para levar a luta adiante e com maior profundidade".

"Jogo justo" e o machismo no mundo corporativo

Emily e Luke são analistas e colegas de trabalho em um fundo de investimentos e vivem um romance em segredo, já que a política da empresa não permite o relacionamento entre funcionários. Logo no início do filme eles se tornam noivos, também em segredo, e, além de apaixonados, ambos se encontram satisfeitos com seus caminhos profissionais. Isto até Emily ser promovida pelo CEO da empresa ao cargo de gestora - e não Luke, que inicialmente estava cotado para o cargo, segundo rumores que circulavam entre os funcionários. Com isso, de um momento para o outro, Emily se torna chefe de Luke, o que acaba por alterar a dinâmica e o relacionamento entre eles. Pois este é o ponto de partida do excelente filme "Jogo justo" (Fair play), lançado em 2023 pela Netflix, que trata, como tema central, do tema do machismo no mercado financeiro. Este machismo fica evidente no comportamento agressivo de Luke - que simplesmente não consegue aceitar a escolha de Emily para o cargo (que seria, em sua visão, naturalmente dele) - mas também nas atitudes do CEO e dos funcionários da empresa, quase todos homens. É possível observar, aliás, como o mercado financeiro é baseado em uma cultura masculinista extremamente opressiva com as mulheres - algo que filmes como O lobo de Wall Street ou A grande aposta, já haviam sinalizado anteriormente. Mas se estes filmes não focavam suas narrativas especificamente no tema do machismo no ambiente corporativo, Jogo justo traz luz para esse problema de uma forma muito incisiva e interessante - demonstrando que o jogo não é nada justo para as mulheres. O filme foi descrito por algumas pessoas como um thriller erótico mas eu discordo totalmente dessa caracterização, já que a produção não traz quase nada de erotismo (com exceção, talvez, das primeiras cenas). Mas certamente o filme pode ser caracterizado como um thriller, já que nos prende do início ao fim com sua trama repleta de suspense. Se quiser assista lá na Netflix.

As demências para além do olhar biomédico

Em função da minha pesquisa de doutorado, eu li muitos textos e livros sobre o tema da demência e, em especial, da doença de Alzheimer, que é o tipo mais comum de demência. E grande parte desses materiais trazia uma visão estritamente ou majoritariamente biomédica das demências, o que acabava por reduzir a complexidade deste fenômeno. Considero, muito bem vinda, nesse sentido, a tradução e publicação no Brasil, pela Editora Best-Seller, do livro "O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência", da escritora britânica Wendy Mitchell. O grande diferencial deste livro é que ele foi escrito por uma pessoa com demência e traz, portanto, uma narrativa em primeira pessoa sobre tal condição. Além disso, a autora reúne uma série de recomendações práticas para familiares e cuidadores que podem melhorar significativamente a vida das pessoas diagnosticadas com demência - recomendações essas que eu jamais encontrei em nenhuma outra obra, e que, no meu entender, só ampliam a pertinência e relevância desta publicação. E eu aproveito a postagem para indicar ainda o livro "Afetos colaterais: a busca pela poesia na despedida da minha mãe", lançado também em 2023 pela Editora Planeta. Nesta bela e poética obra, a escritora Bettina Bopp trata com muita sensibilidade de sua relação com a mãe, diagnosticada com uma doença degenerativa (Parkinson) e que acabou desenvolvendo, ao longo do tempo, um quadro demencial. Não apenas por conta da doença, mas também dos efeitos colaterais das medicações, fortíssimas, sua mãe falava e fazia coisas aparentemente sem sentido, que Bettina ressignifica sob a ótica da poesia e não da patologia. Como a autora afirma em determinado momento do livro, "minha mãe parecia ter uma lente de aumento para as sutilezas diárias da vida. Não parecia delírio, alucinação ou doença. Não era demência. Era poesia". As duas obras trazem, portanto, olhares diversos, necessários e potentes sobre os quadros demenciais, para muito além do hegemônico e quase onipresente olhar biomédico.

Leia também as resenhas dos livros "Para sempre Alice" e "O túnel".

Destrancados: um experimento de psicologia social

Eu não sou muito chegado a realitys mas fiquei bem curioso com esse novo reality show da Netflix chamado "Destrancados: um experimento na prisão" - e por isso decidi assistí-lo. Mas do que se trata esse tal "experimento"? Em uma prisão norte-americana, na qual os presos ficavam trancados em suas celas 23 horas por dia - devido ao excesso de internos e à falta de agentes -, um delegado, que está como diretor do presídio, propõe uma alteração significativa em uma determinada ala deste presídio: destrancar as celas e tirar todos os agentes de dentro desta ala por 40 dias. Os presos continuariam presos, lógico, e seriam constantemente vigiados por câmeras de segurança, mas teriam bem mais liberdade de circulação e interação. A questão é que para esse experimento dar certo, e esta liberdade não resultar em uma pancadaria sem fim - como os agentes imaginam inicialmente que irá acontecer -, os presos precisam criar mecanismos de autocontrole e autogestão. A ideia do delegado com este experimento é tratar os presos como adultos responsáveis e não como crianças que precisam de um controle permanente - e ele realmente acredita que o experimento pode dar certo e promete que caso isso ocorra essa modificação poderá ser estendida para as demais alas do presidio - e quem sabe até para outros presídios... Mas será que esse experimento deu certo? Será que os presos conseguiram lidar com essa ampliação da liberdade sem que isso resultasse em um aumento dos conflitos e da violência? Assista lá para descobrir... Eu já assisti todos os sete episódios da primeira temporada (imagino que outras virão) e gostei demais tanto da ideia do programa quanto da forma como o experimento foi conduzido - e também da maneira como a série retratou e deu voz aos indivíduos presos. Trata-se de um verdadeiro e fascinante experimento de psicologia social...

sábado, 4 de maio de 2024

Consequências imprevisíveis: uma resenha do romance "Mate-me quando quiser"

"Mate-me quando quiser", primeiro romance da escritora brasileira Anita Deak, tem início com uma carta escrita por uma mulher - que é chamada durante toda a narrativa apenas de "a Mulher": "Caro Soares, Fico satisfeita de que já tenha recebido todo o dinheiro. Em anexo, estão a sua passagem para Barcelona e a minha fotografia. Abaixo, o endereço do hotel onde ficarei hospedada. Mate-me quando quiser, ou melhor, no dia que lhe convier dentro dos próximos quatro meses. A única coisa que peço é discrição. Você sabe quem eu sou, mas não quero saber quem você é". Pois este é o ponto de partida desse interessantíssimo thriller ambientado na cidade de Barcelona. Mas o que eu achei mais interessante não é nem propriamente essa ideia de retratar uma mulher que encomenda a própria morte para um matador de aluguel - numa espécie de terceirização do suicídio - mas sim como a história se desenrola a partir desta inusitada premissa. Achei fascinante como a narrativa construída pela autora segue por caminhos inesperados até sua conclusão, igualmente surpreendente. O que parecia inicialmente uma história sobre uma mulher desiludida com a vida, acaba se tornando uma narrativa sobre como nossos atos podem gerar (e com frequência geram) consequências imprevisíveis nas nossas próprias vidas e nas vidas das outras pessoas. Ao tomar a decisão de morrer e se mudar para Barcelona, levando no seu encalço um matador de aluguel, a Mulher acaba desencadeando uma série de efeitos e consequências imprevisíveis na vida dela própria, do matador Soares e também dos outros personagens, chamados pelo narrador apenas de "o Homem", "a Loira" e "a Morena". Eu até poderia tecer algumas críticas a algumas escolhas narrativas da autora - como por exemplo, à equivocada e antiética atuação da Mulher como psicanalista do Homem - mas, de uma forma geral, considero que tais escolhas não comprometem a história, que é muito bem contada e conduzida, do início até o final. Enfim, recomendo fortemente "Mate-me quando quiser", lançado em 2014 pela editora Gutenberg.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Homenagem ao professor Saulo de Freitas Araújo

Eu fiquei simplesmente devastado com a notícia do falecimento do grande professor Saulo de Freitas Araújo no dia de ontem, 2 de maio de 2024. Saulo era professor e pesquisador do departamento de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde eu me formei em 2007, e ele sempre foi pra mim uma enorme referência acadêmica e intelectual - e também para muitas outras pessoas que se interessam pelos campos da história e da filosofia da psicologia. Mas ele foi também uma referência de gentileza e cuidado com seus alunos. Foi por conta de suas aulas, encantadoras - e também do seu fenomenal livro "Psicologia e Neurociência" - que eu me aproximei das discussões sobre o campo neuro, discussões estas que eu me aprofundei tanto no mestrado quanto no doutorado e que me mantenho imerso até hoje. No meu primeiro livro, "O cérebro vai à escola", fruto da minha dissertação, eu fiz questão de incluir um sincero agradecimento a ele, por ter "jogado a sementinha" de toda essa discussão lá na graduação. E felizmente eu tive a oportunidade, tempos atrás, de entregar meu livro pra ele e agradecê-lo presencialmente - e ele, como sempre, foi muito receptivo e gentil. Enfim, a psicologia brasileira perdeu hoje um dos grandes pesquisadores da área da história da psicologia e um dos maiores especialistas mundiais na obra do fundador da psicologia, Wilhelm Wundt - e foi por conta de sua pesquisa de doutorado sobre Wundt, publicada depois como livro, e de outros estudos por ele realizados ao longo dos anos, que ele recebeu em 2013 (tendo sido o primeiro sul-americano a receber) o importante prêmio Early Career Award, concedido pela divisão de História da Psicologia da Associação Americana de Psicologia (APA). Mas o departamento de psicologia da UFJF também perdeu hoje um grande professor, colega e amigo. E eu perdi uma das minhas principais referências acadêmicas, intelectuais e de vida. Vá em paz, querido Saulo. E muito obrigado por tudo!

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Mundo invertido: um relato sobre a peça "King Kong Fran"

(Alerta de spoiler! Eu não sei se spoiler vale para peças de teatro, mas fica aí o alerta). No final do mês passado eu assisti, no Rio de Janeiro, à elogiada peça "King Kong Fran", protagonizada pela personagem-título Fran, criação da atriz e palhaça Rafaela Azevedo. E eu compreendi completamente todos os elogios que a peça vem recebendo - e os endosso 100%. Mas contextualizando: no mesmo dia, mais cedo, eu assisti no cinema o filme de terror "Fale comigo", que eu estava muito afim de ver. No fim das contas até gostei da obra embora a considere mais dramática do que aterrorizante... Até porque aterrorizante mesmo foi o que eu vivi à noite, assistindo à peça King Kong Fran - assim como, imagino, todos os homens da platéia. Pois bem, na peça Rafaela interpreta uma mulher-gorila de um circo que conversa e interage com a plateia. E eu, tímido que sou, simplesmente tenho pavor de peças interativas. A ideia de ser chamado ao palco me apavora em um nível primitivo do meu ser.. E logo no início da peça Fran chama ao palco três homens da platéia, todos das primeiras fileiras (eu estava mais atrás, ufa). E no palco ela faz com eles uma série de "brincadeirinhas" beeeeeem constrangedoras, que me deixaram ao mesmo tempo com muita vergonha alheia e... completamente em pânico! Desde o momento em que ela chamou os homens ao palco, eu senti meu estômago revirar e o suor escorrer tamanho o medo de ser chamado (na verdade convocado, já que Fran não abre muita margem pra negociação) e passar aquela vergonha que os três caras passaram no palco. E meu primeiro instinto foi querer sair logo dali - mas eu pensava também que se eu me levantasse no meio da peça para ir embora eu me tornaria um alvo lógico da fúria de Fran. E por isso optei por permanecer... Mas o terror não havia terminado: logo adiante ela escolhe um desses caras e as humilhações e embaraços só aumentam e se tornam aterradores. Em certo momento eu me dei conta de que se esse cara fosse alguém da platéia ele poderia simplesmente processar a produção, tamanha a humilhação que ele passa. Daí eu saquei: ele é um ator! Isso me acalmou um pouco, mas o incômodo ainda assim permaneceu até o final da peça. E eu me dei conta também de que esta é a grande sacada da peça: colocar os homens numa situação de desconforto e medo similar à que as mulheres vivenciam grande parte do tempo. Durante a peça, Fran cria um mundo invertido no qual as mulheres estão em um lugar protegido e seguras e os homens estão vulneráveis e são constantemente assediados e humilhados. E está é a genialidade da peça e da personagem Fran: gerar nos homens da platéia uma sensação visceral de medo e não apenas um entendimento racional das opressões vividas pelas mulheres. A ideia é fazê-los sentir na pele como as mulheres muitas vezes se sentem em diversos espaços e momentos da vida. Pois bem, eu saí do teatro suado e cansado - sabe quando a adrenalina baixa e você fica meio inerte? - e ao mesmo tempo feliz por ter saído daquele espaço aterrorizante e opressor. Foi um aprendizado e uma vivência que espero levar pra vida. E adoraria que muitas pessoas, especialmente homens, pudessem viver essa experiência - pois King King Fran não é apenas uma peça como tantas outras, é uma experiência! Se puder, assista! A peça, felizmente, ainda está circulando pelo país...

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Podemos diagnosticar o sofrimento sem conhecer a história de uma pessoa?

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Can we diagnose suffering without knowing a person’s history?, publicado no site AEON no dia 30 de Agosto de 2022 pelo psicanalista lacaniano inglês Christos Tombras, autor de Discourse Ontology: Body and the Construction of a World, from Heidegger through Lacan (2019).

O poder do diagnóstico está se tornando mais significativo. Em 2022, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a 'bíblia' dos profissionais de saúde mental, apareceu pela primeira vez na lista de mais vendidos do The Wall Street Journal. Foi também o livro de psiquiatria mais vendido na Amazon. Cinco edições foram publicadas desde 1952, e a mais recente, a DSM-5-TR (2022), talvez seja a mais popular de todas. Por quê? É a promessa de que a ciência pode avaliar e compreender o sofrimento humano? É a crença de que essa compreensão pode nos ajudar a encontrar um tratamento específico, adequado e eficaz para nossos problemas?

Estas são promessas tentadoras, mas enganosas. O sofrimento humano não é definido por categorias abstratas. Não existe independentemente dos humanos que estão sofrendo. Por mais útil que seja o DSM, qualquer projeto que busque listar e categorizar problemas psicológicos em termos de algum desvio de uma definição do que é "normal", corre o risco de esquecer que os transtornos não surgem do nada. Eles têm sua própria história. Eles também fazem parte de nossas histórias. Além disso, eles não permanecem constantes; eles mudam assim como nós mudamos.

Desde o momento em que foi concebido em meados do século XX, o DSM foi saudado por muitos como um projeto científico libertador e revolucionário. Nem todos concordaram. Este e outros instrumentos diagnósticos também têm sido criticados por serem difusores da medicina corporativa, produtos de sistemas de saúde burocráticos, corroídos por falsas categorias, e por esquecerem que o sofrimento psíquico está ligado à sociedade que o produziu. No entanto, dentro desse debate, as histórias pessoais daqueles que realmente vivenciam o sofrimento muitas vezes são esquecidas.

A experiência humana é distribuída, não específica e flui no tempo. A organização estilo checklist dos transtornos, que povoam os manuais de diagnóstico e testes – incluindo questionários online, aplicativos de saúde mental e “inventários” de personalidade – tendem a esquecer que as pessoas têm alguma consciência de si mesmas como agentes em uma linha do tempo que vem de algum lugar (o passado) e segue em direção a algum lugar (o futuro). Essa característica distintamente humana de nossa experiência, sua historicidade, esteve no centro do trabalho de filósofos como Martin Heidegger e psicanalistas como Jacques Lacan. A 'historicidade', na filosofia, refere-se menos a uma questão sobre as especificidades factuais da linha do tempo de alguém (o que aconteceu, quando e onde) do que ao fato de que estamos constantemente criando e recriando auto-narrativas. É assim que tentamos dar sentido às nossas vidas à medida que nos movemos ao longo da miríade de caminhos que conectam nosso passado ao nosso futuro. Esses caminhos sinuosos e confusos, cheios de becos sem saída e conexões falsas, muitas vezes contribuem para o nosso sofrimento.

É tentador acreditar que podemos nos ver refletidos objetivamente nos critérios diagnósticos e listas de verificação de 'bíblias' como o DSM, mas nossas histórias e ansiedades individuais escapam ao diagnóstico fácil porque não existem independentemente de nossa história ou de nossas tentativas de articulá-las, entendê-las e encaixá-las nas identidades que estamos constantemente tentando formar.

Sou psicanalista e trabalho em Londres. As pessoas que vêm me ver, principalmente aquelas que me procuram por conta própria, estão buscando ajuda com essas articulações, com a produção de sentido e de identidade. Robert (nome fictício) veio me ver pela primeira vez quando tinha 30 anos. Ele veio porque estava preocupado com seu trabalho em uma galeria de arte, onde se sentia um intruso, não tendo nada em comum com seus colegas. Assim como sua experiência em empregos anteriores, ele tinha um medo profundo e debilitante de que colegas e chefes estivessem sempre lhe observando, esperando que ele cometesse um erro decisivo. Esse medo o faria congelar. Ele não conseguia pensar. Ele queria desaparecer.

"Eu desapareço", ele me diz. 'Olho no espelho e não estou mais lá.'

"O que você quer dizer com desaparecer?" Eu pergunto.

Ele parece incerto. "Não sei de que outra forma descrever. Quando estou nesse estado de preocupação e medo, o rosto que vejo no espelho se desintegra. Não é mais a minha cara. Torna-se uma variedade de elementos. Um olho aqui, outro olho, um nariz, uma orelha... não consigo me reconhecer. Não consigo ver um rosto. Está vazio. Eu não existo mais. Eu congelo".

"O que isso significa?" pergunto novamente.

"Eu vejo elementos desconectados. Eu fico lá, inutilmente", ele olha para mim, "por longos períodos de tempo". Ele faz uma pausa. "Por horas", ele admite, baixando o olhar.

Então, aí está. Robert finalmente consegue me dar um vislumbre de seu sofrimento. Neste momento, eu poderia tentar transformar seus sintomas em um diagnóstico. Sofrimento significativo? Sim. Prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas? Sim. Preocupação com a aparência física? Sim. Comportamento repetitivo, como verificação no espelho? Sim. Indicações de um transtorno alimentar? Não. Diagnóstico? 'Transtorno Dismórfico Corporal', codificado F45.22 no DSM-5-TR. O quadro clínico pintado pelo DSM parece ter sido escrito para Robert.

O DSM foi, desde o início, organizado de acordo com resultados produzidos por ferramentas estatísticas. Como projeto científico, sugere que podemos e devemos falar apenas sobre coisas que podem ser observadas e avaliadas com clareza. Essa mesma ideia aparece em uma série de instrumentos psicológicos que buscam fornecer relatos objetivos das experiências humanas. Entre eles estão a Classificação Internacional de Doenças (CID), atualmente em sua 11ª revisão, e os Critérios de Pesquisa por Domínios (Research Domain Criteria - RDoC) do Instituto Nacional de Saúde Mental.

Como são feitos esses instrumentos? Como avaliar a doença mental, o sofrimento humano e a angústia de forma objetiva? A chave é quantificar o que você vê com a ajuda de ferramentas simples e imparciais, como entrevistas estruturadas ou questionários. Essas ferramentas podem revelar aspectos de como grandes grupos de pessoas pensam e sentem sobre o mundo e sobre si mesmos. Por meio desses dados, surgem padrões e categorias. Quase todas as categorias e critérios em nossos manuais de diagnóstico foram definidos por essas ferramentas, que fazem perguntas como:

Em uma escala de 0 (muito ruim) a 9 (muito bom), como você avaliaria seu humor geral nesta semana? E a semana passada?

Usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente) indique seu grau de concordância com a seguinte afirmação: 'Não consigo mais encontrar alegria em nada.'

Os princípios e intenções subjacentes a esses tipos de perguntas e as ferramentas de que elas provêm são nobres. As coisas, no entanto, não são tão simples. Ao representar nossa experiência de algo como tristeza com dados objetivos, estamos sendo infiéis ao fenômeno real de estar triste? Nossa tristeza tem uma história e um significado dentro de nossa própria história. Ela começou em algum momento, mudou, continua mudando. Nossa tristeza não pode ser representada fielmente 'usando uma escala de 0 (discordo totalmente) a 9 (concordo totalmente)' ou usando qualquer medida numérica em qualquer tipo de escala. Ao tirar uma fotografia de um 'transtorno' – ou seja, ao remover qualquer referência ao seu contexto e história – estamos forçando-o a se formatar a conceitos e ferramentas que são impróprios para este fim. Em nome da objetividade científica, transformamos violentamente noções multifacetadas e complicadas em conjuntos de dados a-históricos.

É tudo sobre a história (it's all about history).

Peço a Robert que me conte mais. Quando isso começou?

Robert não sabe dizer exatamente. Ele sente que sempre teve dificuldade em desenhar rostos – até mesmo em ver rostos. Quando  se olha no espelho, ele me diz, é como se seu próprio rosto fosse despido de significado.

"Despido", eu repito.

"Sim", diz ele. "E não apenas o rosto. O mesmo acontece com os corpos. É como se eles também fossem desprovidos de significado. Acabo desenhando como Lucian Freud ou Francis Bacon".

'Isso é um problema?' Eu pergunto, tentando aliviar a tensão.

'Eu não pretendia fazer desta forma', diz ele.

Convido-o a falar mais sobre o corpo humano. "Os nus são despidos das roupas", eu ofereço.

"De fato", diz ele, fazendo uma pausa.

Isso traz uma lembrança.

"Estou um pouco envergonhado", admite Robert.

Ele se lembra de algo que aconteceu quando tinha cerca de 13 anos.

Entrando na adolescência, fascinado e dominado por sua sexualidade, Robert começou a fazer pequenos desenhos eróticos, envolvendo vagamente ele e sua irmã, que tinha cerca de 15 anos. Um dia, sua mãe encontrou os desenhos. Chocada, ela decidiu que a melhor maneira de lidar com isso era convocar uma reunião de família. Ele assistiu horrorizado enquanto ela fazia circular os desenhos, falava longamente sobre eles e o humilhava publicamente. Ela o fez pedir perdão à irmã, e depois o fez destruir os desenhos cerimoniosamente na frente de todos, incluindo seu pai, que não disse nada, mas continuou assentindo com a cabeça. Quando tudo isso acabou, ele foi mandado de volta para seu quarto. Lá ele chorou amargamente por horas e depois redesenhou desafiadoramente tudo de memória. Ele os escondeu cuidadosamente em algum lugar e insiste que não olhou para eles desde então. Para ele, tais desenhos não existem mais.

As dificuldades de Robert com rostos e corpos tem uma história. Por trás de sua incapacidade de discernir o significado dos rostos há um evento traumático do passado.

Pela lógica do DSM, o sofrimento de Robert é definido pela forma precisa que ele assume no momento específico em que uma avaliação é feita. Neste momento, ele pode ser classificado como F45.22 ou algo do tipo. Um diagnóstico do DSM, como este, é uma única fotografia do sofrimento de alguém. Tal fotografia tem precisão, mas a história dessa imagem é deixada de fora: a humilhação e a rejeição de Robert por sua família; a dor que sentiu; sua culpa pelo despertar de sua sexualidade; o medo de que o que ele mais ama – desenhar com seu lápis – o leve a se perder e a ser esquecido.

Robert não teve permissão para processar tudo isso de uma maneira que o ajudasse a compreender seu significado. Seu sofrimento tem uma origem, e há caminhos que levam dessa origem à sua queixa atual. O 'transtorno' de Robert, as horas que ele passa na frente do espelho e a dificuldade de discernir e reconhecer seu rosto, podem ser conhecidos e descritos com precisão pelo DSM com um código apropriado. Mas esse transtorno tem um passado que se perde para o usuário de um manual de diagnóstico.

Em um momento em que o DSM se tornou um best-seller, é importante considerar que uma "fotografia" diagnóstica, por mais útil que às vezes seja, representa um instante desconexo na vida de uma pessoa. O paradigma da "fotografia" diagnóstica por meio da quantificação revela seus limites quando consideramos a historicidade de nossas experiências vividas e reconhecemos que estas não podem ser representadas por conjuntos de dados a-históricos.

O sofrimento psicológico é fundamentalmente inquantificável. Desenvolve-se através de uma miríade de caminhos sinuosos. Desloca-se, muda, transforma. Ele nos convida a compreender o significado em nossa história, mesmo que esse significado ameace escapar, nos sobrecarregar e nos confundir – e mesmo quando nossos próprios rostos desaparecem no espelho.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

A mente entre o esquecimento e o apagamento: uma resenha do livro "Para sempre Alice"

No maravilhosamente triste romance "Para sempre Alice", lançado originalmente em 2007, a neurocientista Lisa Genova conta a história de Alice Howland, uma conceituada professora de linguística da Universidade de Harvard que é diagnosticada aos 50 anos com a Doença de Alzheimer de instalação precoce. No livro acompanhamos mês a mês, ao longo de dois anos, o relativamente rápido declínio cognitivo de Alice desde os primeiros esquecimentos, que ela atribui inicialmente ao estresse e à menopausa, até o apagamento quase total de sua mente num estágio avançado da doença. E é com tristeza que seguimos Alice e sua família (que inclui seu marido John e seus filhos, já adultos, Anna, Tom e Lydia) neste doloroso processo que se inicia com o diagnóstico clínico estabelecido por um neurologista e que se estende por uma série crescente de episódios de perda de memória - no início Alice se esquece de alguns nomes e compromissos mas, após alguns meses, passa a se esquecer também de memórias aparentemente consolidadas em sua mente, como o nome dos filhos e, mais adiante, o fato de que eles são seus filhos. Lisa Genova, que é Ph.D em neurociência justamente pela Universidade de Harvard, onde trabalham Alice e John no livro, criou essa comovente história ficcional a partir de uma série de casos reais, o que traz fidedignidade à narrativa desenvolvida por ela neste e também em outros livros como "Nunca mais Rachel", "A outra metade de Sarah", "A família O'Brien" e "Com amor, Anthony", todos baseados em casos reais de pacientes com variadas doenças e condições neuropsiquiátricas. Cabe apontar que Para sempre Alice inspirou um maravilhoso filme homônimo, lançado em 2014 e protagonizado pela atriz Juliane Moore (vencedora do Oscar por esse papel), que eu já indiquei e analisei anteriormente em alguns posts desse blog como O que os filmes e séries nos ensinam sobre a memória e o esquecimento? e 6 filmes sobre perda de memória. Recomendo imensamente tanto o filme quanto o belíssimo livro que o inspirou. Ambos são inesquecíveis!

Trecho do livro: "Apesar da erosão crescente da memória, seu cérebro ainda lhe prestava bons serviços, de inúmeras maneiras. Nesse exato momento, por exemplo, ela estava tomando seu sorvete sem derramar nada na casquinha nem na mão, usando uma técnica de lamber-e-girar que dominava desde menina e que, provavelmente, estava armazenada em algum lugar próximo das informações sobre “como andar de bicicleta” e “como amarrar o sapato (...) Em algum momento, porém, ela esqueceria como tomar sorvete de casquinha, como amarrar os sapatos e como andar. Em algum momento, seus neurônios do prazer seriam corrompidos por um ataque de amiloides aderentes e ela já não seria capaz de desfrutar das coisas que amava. Em algum momento, simplesmente não haveria sentido. Desejou estar com câncer. Trocaria o mal de Alzheimer pelo câncer sem pestanejar. Envergonhou-se de desejar isso, o que decerto era uma barganha inútil, mas, ainda assim, permitiu-se fantasiar. No câncer ela teria algo a combater. Havia a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia. Haveria uma possibilidade de que ela vencesse. Sua família e a comunidade de Harvard se uniriam a sua batalha e a considerariam nobre. E, ainda que no fim ela fosse derrotada, poderia olhá-los nos olhos, consciente, e se despedir antes de ir embora. A doença de Alzheimer era um monstro de um tipo completamente diferente. Não havia armas capazes de matá-lo. Tomar Aricept e Namenda era como apontar um par de pistolas de água contra um incêndio devastador. John continuava a investigar os medicamentos em processo de ensaio clínico, mas Alice duvidava que algum deles ficasse pronto e fosse capaz de fazer alguma diferença para ela; caso contrário, seu marido já teria telefonado para o dr. Davis, insistindo num modo de fazer com que ela o tomasse. Nesse exato momento, todos os portadores do mal de Alzheimer enfrentavam o mesmo desfecho, tivessem eles oitenta e dois ou cinquenta anos, fossem eles residentes do Centro Assistencial Solar Mount Auburn ou professores titulares de psicologia na Universidade Harvard. O incêndio devastador consumia a todos. Ninguém saía vivo" (Para sempre Alice, página 115)