quinta-feira, 27 de agosto de 2009

27 de Agosto - Dia do Psicólogo

Nós somos somente psicólogos. Dubya (apelido de George W. Bush) era o psico(pata)

Para "celebrar" esta importante data, reproduzo abaixo uma notícia aterradora, traduzida do jornal The New York Times e publicada pelo site do Estadão ontem. A história descrita serve para refletirmos um pouco a respeito dos perigos da utilização mal-intencionada e mercantilista dos conhecimentos psi:

Psicólogos americanos lucraram com tortura

WASHINGTON - Jim Mitchell e Bruce Jessen eram militares da reserva e psicólogos atrás de oportunidades de negócio. Eles encontraram um ótimo cliente na CIA. Assim, em 2002, se tornaram os arquitetos do principal programa de interrogatório da história do contraterrorismo americano. Mitchell e Jessen nunca haviam conduzido um interrogatório de verdade, somente sessões simuladas no treinamento militar que supervisionavam. Também não possuíam nenhuma formação acadêmica relevante. Suas dissertações de doutorado versavam sobre hipertensão arterial e terapia familiar. Não tinham tampouco nenhuma habilidade com línguas e nenhuma especialização na Al-Qaeda. Tinham, contudo, credenciais em psicologia e um conhecimento íntimo de um regime de tratamento brutal usado décadas antes por comunistas chineses. Para um governo ansioso para endurecer com os que haviam matado 3 mil americanos, isto bastou. Assim, "Doc Mitchell" e "Doc Jessen", como eles eram conhecidos na Força Aérea dos EUA, ajudaram a conduzir o país por um debate doloroso sobre tortura que, sete anos depois, ainda não chegou ao fim. Na última segunda-feira, 23, o secretário de Justiça, Eric Holder, decidiu abrir uma investigação criminal sobre tortura, em que o papel dos dois, provavelmente, ficará sob intenso escrutínio. Atualmente, os escritórios da Mitchell Jessen and Associates, a lucrativa empresa que eles operavam de um bonito edifício centenário no centro de Spokane, Estado de Washington, estão vazios e seus contratos com a CIA foram bruscamente encerrados no primeiro semestre deste ano. Com um possível inquérito criminal à espreita, Mitchell e Jessen contrataram um conhecido advogado de defesa, Henry F. Schuelke III.


Início promissor


Em dezembro de 2001, as teorias de Mitchell estavam atraindo a atenção do alto escalão de Washington. Funcionários da CIA pediram que ele avaliasse um manual da Al-Qaeda, capturado na Grã-Bretanha, sobre como os terroristas poderiam resistir aos interrogatórios. Mitchell e Jessen foram contratados e escreveram a primeira proposta de adaptar as técnicas brutais do inimigo - tapas, privação do sono, arremessos contra a parede e simulação de afogamento - em um programa de interrogatório dos EUA. Em março de 2002, quando a CIA capturou Abu Zubaydah, número 3 da Al-Qaeda, o plano de interrogatório Mitchell-Jessen estava pronto. Em uma prisão secreta da CIA na Tailândia, dois agentes do FBI usaram métodos convencionas de construção de confiança para extrair informações vitais de Zubaydah. Em seguida, chegou a equipe de Mitchell. Com o apoio do quartel-general da CIA, ele ordenou que Zubaydah se despisse e o expôs ao frio e à música em alto volume para impedi-lo de dormir. Com o passar das semanas, Mitchell começou a dirigir o interrogatório e, ocasionalmente, falava diretamente com Zubaydah. Em julho de 2002, Jessen se reuniu ao sócio na Tailândia. Em agosto, os psicólogos aumentaram a pressão. Por duas semanas, Zubaydah foi confinado em uma caixa, atirado contra a parede e submetido 83 vezes à simulação de afogamento. O tratamento brutal só parou depois que Mitchell e Jessen decidiram que Zubaydah não tinha mais nenhuma informação a dar. O caso Zubaydah deu motivos para questionar o plano Mitchell-Jessen: o prisioneiro havia fornecido suas informações mais valiosas sem coerção. Mas a CIA não fez mudanças e os métodos seriam usados com outros 27 prisioneiros, incluindo Khalid Sheik Mohamed, que foi submetido 183 vezes à simulação de afogamento. Os planos empresariais de Mitchell e Jessen progrediram. Eles recebiam entre US$ 1 mil e US$ 2 mil por dia cada e tinham uma mesa permanentes no Centro de Contraterrorismo e, agora, podiam colocar no currículo suas experiências em interrogatórios de membros do alto escalão da Al-Qaeda. Até que a bonança acabou. O governo rompeu os contratos com Mitchell e Jessen. Em poucos dias, o escritório ficou vazio, os telefones foram cortados e ninguém em Spokane sabe para onde eles foram.

Não Freud!


Saiu ontem no site do jornal Extra: Acabou a geladeira! MC Tati, que fotografou nua para ser estrela da edição nacional da "Playboy" de março e nunca teve suas fotos publicadas, vai ganhar apenas a capa da edição especial "Paixão nacional" de outubro. E como não é boba nem nada, para aquecer as vendas da revista que chega às bancas dia 30 de setembro, a loura não perdeu tempo. Psicóloga que largou os pacientes para se dedicar ao funk, Tati resolveu fazer uma homenagem à sua antiga profissão num ensaio sensual com objetos que usava na época que atuava como psicóloga: taileurs, óculos, e uma coleção de livros de Freud. "Não acredito que minhas fotos criem problemas no Conselho de Psicologia, não. Os psicólogos são pessoas de mente aberta e o ensaio ficou bonito, fiz com carinho. Tenho curiosidade de saber o que meus ex-pacientes vão achar", disse a gata, de 28 anos. As fotos foram feitas na semana passada, em uma locação em Niterói. "Sei que a psicóloga mexe com o imaginário dos homens", fala Tati, que completa: "Poderia ser uma psicóloga que se tornou atriz, cantora de MPB, etc. Nada disso chocaria as pessoas. Infelizmente ser funkeira ainda choca".

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O segredo de Rorschach




Saiu ontem, no portal Terra, uma reportagem interessantíssima, traduzida do importante jornal americano The New York Times e reproduzida abaixo na íntegra:

Médico é investigado por publicar teste na Wikipédia
O médico que ajudou a Wikipédia a publicar os 10 borrões que compõem o teste de Rorschach [ver figura abaixo] está sob investigação de seu conselho médico regional depois que este recebeu queixas quanto à falta de profissionalismo que essa atitude supostamente revela. Em carta publicada na quarta-feira pelo grupo, o College of Physicians and Surgeons of Saskatchewan, o médico em questão, James Heilman, que trabalha em um pronto-socorro em Moose Jaw, Canadá, foi notificado de que dois psicólogos apresentaram queixas contra ele. Um dos queixosos, Andrea Kowaz, do College of Psychologists of British Columbia, se queixou de que ao divulgar as imagens na Wikipédia, Heilman havia violado o sigilo do teste e que, caso ele fosse psicólogo, o comportamento que exibiu seria "considerado como delito grave de conduta". A segunda queixa, apresentada por Laurene Wilson, psicóloga do Royal University Hospital de Saskatoon, ecoava a preocupação quanto ao sigilo do teste e acrescentava que Heilman havia "demonstrado desrespeito aos seus colegas profissionais de psicologia, e os havia exposto a desconsideração pública". Wilson diz ter lido entrevistas nas quais Heilman se "refere a psicólogos como praticantes de técnicas semelhantes às de um espetáculo de ilusionismo". Tendo em vista essas queixas, um funcionário da organização médica de Saskatchewan escreveu que "temos a responsabilidade de investigar a questão". Heilman, 29, que está trabalhando temporariamente em Penticton, Colúmbia Britânica, declarou em entrevista que via as queixas como tentativa de puni-lo por tentar desmistificar a psicologia como profissão. O teste de Rorschach, uma série de borrões de tinta criados por um psiquiatra suíço nos anos 20, têm por objetivo oferecer percepções sobre a maneira pela qual participantes pensam, a depender da forma pela qual descrevam imagens obscuras. Muitos psicólogos dizem temer que os borrões não se provem tão efetivos caso tenham sido vistos com antecedência, ou que os pacientes preparem respostas com antecedência. "Trata-se de táticas de intimidação", disse Heilman. "Eles estão tentando fechar as portas ao discurso científico. Não querem que ninguém mais a não ser psicólogos se envolva em uma discussão daquilo que fazem". Ele acrescentou que estava preparando uma resposta. "Presumo que as queixas sejam uma frivolidade", afirmou, "mas sempre que alguém apresenta uma queixa a uma organização profissional, é preciso levá-la a sério". Bryan Salte, que é diretor administrativo associado da organização médica de Saskatchewan, declarou em entrevista que tipicamente as investigações desse tipo são concluídas em menos de 60 dias. Caso a organização decida não tomar quaisquer punitivas sobre o caso, ela não se pronuncia publicamente a respeito, informou. Bruce Smith, psicólogo e presidente da Sociedade Internacional de Métodos Rorschach e Projetivos, que vem defendendo nos fóruns da Wikipédia a remoção da web das imagens do teste, escreveu: "Porque a questão foi discutida de maneira tão extensa na Wikipédia, é duvidoso que se possa atribuir responsabilidade primária por isso a uma única pessoa". "Ao mesmo tempo", ele acrescentou, "precisamos ter em mente que as ações têm consequências e que tentar se esconder por trás de um grupo e de princípios vagos como a 'liberdade de informação' não deveria permitir que uma pessoa escape a essas consequências". Esse argumento não atraiu muita atenção na Wikipédia. Desde que a questão passou a ser discutida de maneira mais ampla, as imagens ganharam destaque no verbete (antes apareciam no pé da página), e passaram a incluir ainda mais detalhes sobre as respostas que pesquisas determinaram como mais típicas para cada uma delas. "Fui eu que transferi as imagens para uma posição de mais destaque", diz Heilman. "Não pretendo recuar".



Quem acompanha este blog (ver aqui e aqui) sabe que tenho inúmeras críticas (ou serão resistências?) aos testes projetivos, em especial sua utilização em processos seletivos, o que sou totalmente contra. Então não é de estranhar que eu concorde com o médico James Heilman quando ele questiona o método Rorschach e aqueles que o aplicam e necessitam do segredo dos borrões (que há muito já vazou!) para que o "resultado" seja "fidedigno". Discordo dele quando ele coloca todos os psicólogos no mesmo saco, sendo que, ainda mais nos Estados Unidos, uma minoria dos psicólogos são psicanalistas mas, infelizmente, não posso discordar dele quando afirma que os psicólogos são "praticantes de técnicas semelhantes a um espetáculo de ilusionismo". Mas como você pode concordar com isso? É um insulto à categoria em que você próprio está incluido? Pois é... O fato é que li outro dia um artigo interessantíssimo, intitulado "Efeito Placebo, efeito nocebo e psicoterapia: correlações entre seus fundamentos" (clique aqui para ter acesso), em que os autores afirmam que, "se placebo é definido como algo que age sobre os mecanismos psicológicos do organismo, ao invés de mecanismos físicos, então se pode estender o conceito de placebo para o processo psicoterápico, que também, conceitualmente, age a nível da psiquê. Assim, todas as psicoterapias seriam consideradas placebos por definição". E continuam:


"A partir dos conceitos de placebo e psicoterapia, ao comparar ambos, possivelmente infere-se que as psicoterapias são inócuas, conclusão comprovadamente equivocada (Williams, 2004). Tal afirmação sugere que o entendimento geral de eficácia de um tratamento, baseia-se no fato de se considerar inerência como mais importante que o método utilizado. Uma psicoterapia é simplesmente um procedimento psicológico que não tem um poder inerente para produzir um efeito, mas se este procedimento funciona, devido aos procedimentos utilizados, então psicoterapia pode ser considerada placebo, sendo, entretanto, um tratamento ativo. Um tratamento ativo pode ser devido tanto ao seu poder inerente quanto ao efeito placebo".


Resumindo: o trabalho psicoterapêutico, mesmo que (e exatamente por isso) equivalente ao efeito placebo, funciona. E, se efetivamente for (e provavelmente é) uma forma de ilusão, certamente é uma ilusão positiva, que contribui para a melhora de vida de milhares de pessoas. Afinal, quem consegue viver só de realidade?

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Relacionamento (mais que) terapêutico


Saiu semana passada no portal G1:

Psicólogo australiano tem registro suspenso por fazer sexo com esposa


O psicólogo Mike Marriott, de 58 anos, de Burnie, na Tasmânia (Austrália), teve o registro suspenso por seis meses após ser considerado culpado de falta profissional por ter mantido relações sexuais com sua esposa, segundo reportagem do jornal "The Advocate". Marriott se casou com uma ex-paciente em 2001, mas o casal se separou em 2004. Em junho de 2007, aex-mulher Christine Raeburn apresentou uma queixa contra o psicólogo, porque ele não respeitou o código de conduta profissional. Segundo o código, os profissionais da área não podem manter relações sexuais com ex-pacientes no prazo de dois anos após o fim do relacionamento profissional. Eles se casaram em março de 2001, mas a última consulta tinha sido realizada em junho de 1999. Em uma audiência, segundo o jornal "Mercury", Marriott confessou ser culpado de má conduta profissional. O advogado Bill Ayliffe disse que seu cliente não poderia negar que tinha violado o código porque ele claramente fez sexo com a ex-esposa antes do período de dois anos. No entanto o advogado de Marriott entrou com um recurso contra a decisão do conselho de proibi-lo de exercer a profissão por seis meses. Bill Ayliffe destacou que o conselho deveria ter retirado as acusações contra seu cliente, já que o código só entrou em vigor em 2003.

No Brasil, o Código de Ética Profissional do Psicólogo não é tão específico quanto o australiano no que diz respeito ao envolvimento afetivo-sexual do(a) profissional com um(a) cliente/paciente. Nem estipula nenhum prazo após o fim da relação profissional, quando estariam livres para se relacionar não-profissionalmente. O VII Princípio Fundamental do Código de Ética afirma que "o psicólogo considerará as relações de poder no contexto que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste código". Como os psicanalistas já discutem há bastante tempo, certamente há uma desigualdade de poder, pelo menos inicial, em um envolvimento afetivo de um(a) terapeuta com um(a) paciente. Mais adiante, o Código afirma que é responsabilidade do psicólogo "e) estabelecer acordos de prestação de serviços que respeitem os direitos do usuário ou beneficiário dos serviços de psicologia". E repeitar o usuário deve significar não dar em cima dele, porém isto não está escrito em nenhum lugar. O único momento em que o Código de Ética é minimamente claro com relação à esta questão é quando afirma que é vedado ao psicólogo: "j) estabelecer com a pessoa atendida, familiar ou terceiro, que tenha vínculo com o atendido, relação que possa interferir negativamente nos objetivos do serviço prestado". E é só...

OBS: a imagem acima é de uma cena do interessante filme Jornada da Alma, que, segundo o site Adoro Cinema, conta a história real de Sabina, "uma jovem russa de 19 anos que sofre de histeria, [e que] recebe tratamento em um hospital psiquiátrico de Zurique, na Suíça. Seu médico, o jovem Carl Gustav Jung, aproveita o caso para aplicar pela primeira vez as teorias do mestre Sigmund Freud. A cura de Sabina vem acompanhada de um relacionamento amoroso com Jung" (saiba mais sobre este caso aqui). É o único filme que me lembro que aborda, como tema central, o envolvimento afetivo de um terapeuta com uma paciente. Apesar de estar no imaginário coletivo, este tipo de relacionamento não é muito retratado no cinema. Pelo menos não que eu saiba...

Calligaris versus Justino


Reproduzo abaixo um texto brilhante do psicanalista Contardo Calligaris, publicado ontem (dia 20 de Agosto) no jornal Folha de São Paulo, sobre o "Caso Rozângela Justino".

Discordar do nosso próprio desejo 

Em 31 de julho, o Conselho Federal de Psicologia repreendeu a psicóloga Rozângela Alves Justino por ela oferecer uma terapia para mudar a orientação sexual de pacientes homossexuais. Não quero discutir a "possibilidade" desse tipo de "cura" (afinal, reprimir o desejo dos outros e o nosso próprio é uma atividade humana tradicional), mas me interessa dizer por que concordo com a decisão do Conselho.

A revista "Veja" de 12 de agosto publicou uma entrevista com Alves Justino, na qual ela explica sua posição. No fim, a psicóloga manifesta seu temor do complô de um "poder nazista de controle mundial", que estaria querendo "criar uma nova raça e eliminar pessoas", graças a políticas abortistas, propagação de doenças sexualmente transmissíveis etc.
 
Para ser psicoterapeuta, não é obrigatório (talvez nem seja aconselhável) gozar de perfeita sanidade mental. É possível, por exemplo, que um esquizofrênico, mesmo muito dissociado, seja um excelente psicoterapeuta (há casos ilustres). Mas uma coisa é certa: para ser terapeuta, ser inspirado por um conjunto organizado de ideias persecutórias é uma franca contraindicação.
 
Na verdade, pouco importa que as ideias em questão sejam ou não persecutórias e delirantes: de um terapeuta, espera-se que ele deixe suas opiniões e crenças (morais, religiosas, políticas) no vestiário de seu consultório, a cada manhã. Quando, por qualquer razão, isso resultar difícil ao terapeuta, e ele sentir a vontade irresistível de converter o paciente a suas ideias, o terapeuta deve desistir e encaminhar o caso para um colega. Por quê?
 
Alves Justino, com sua aversão por homossexualidade, sadomasoquismo e outras fantasias sexuais, ilustra a regra que acabo de expor. Explico.
 
A psicóloga defende sua prática afirmando que a psiquiatria e a psicologia admitem a existência de uma patologia, dita "homossexualidade ego-distônica", que significa o seguinte: o paciente não concorda com sua própria homossexualidade, e essa discordância é, para ele, uma fonte de sofrimento que poderíamos aliviar - por exemplo, conclui Alves Justino, reprimindo a homossexualidade.
 
De fato, atualmente, psiquiatria e psicologia reconhecem a existência, como patologia, da "orientação sexual ego-distônica"; nesse quadro, alguém sofre por discordar de sua orientação sexual no sentido mais amplo: fantasias, escolha do sexo do parceiro, hábitos masturbatórios etc. Existe, em suma, um sofrimento que consiste em discordar das formas de nosso próprio desejo sexual, seja ele qual for (alguém pode sofrer até por discordar de sua "normalidade"). Pois bem, nesses casos, o que é esperado de um terapeuta?

Imaginemos um nutricionista que receba uma paciente que se queixa de seu excesso de peso, enquanto ela apresenta uma magreza inquietante: ela tem asco da forma de seu próprio corpo, que ela percebe como enorme e que ela não aceita como seu. O nutricionista não tentará nem emagrecer nem engordar sua paciente, pois o problema dela não é o peso corporal, mas o fato de que ela discorda de si mesma a ponto de não conseguir enxergar seu corpo como ele é.

No caso da orientação sexual ego-distônica, vale o mesmo princípio: o problema do paciente não é seu desejo sexual específico, mas o fato de que ele não consegue concordar com seu próprio desejo, seja ele qual for. As razões possíveis dessa discordância são múltiplas. Por exemplo, posso discordar de meu desejo sexual porque ele torna minha vida impossível numa sociedade que o reprime (moral ou judicialmente) e cujas regras interiorizei. Ou posso discordar de meu desejo porque ele não corresponde a expectativas de meus pais que se tornaram minhas próprias. E por aí vai.

Nesses casos, o terapeuta que tentar resolver o problema confiando em sua visão do mundo e propondo-se "endireitar" o desejo de quem o consulta, de fato, só agudizará o conflito (consciente ou inconsciente) do qual o paciente sofre. Ora, é esse conflito que o terapeuta deve entender e, se não resolver, amenizar, ou seja, negociar em novos termos, menos custosos para o paciente. Em outras palavras, diante da ego-distonia, o terapeuta não pode tomar partido nem pelo desejo sexual do paciente, nem pelas instâncias que discordam dele.

Ou melhor, ele pode, sim, só que, se agir assim, ele deixa de ser terapeuta e vira militante, padre ou pastor.

domingo, 9 de agosto de 2009

Fé cega, faca amolada


Sei que estou sendo repetitivo, mas os desdobramentos do "Caso Rozângela Justino" são controversos demais para simplesmente serem ignorados, ainda mais quando adquirem visibilidade nacional. É o caso agora, com Rozângela preenchendo as páginas amarelas da revista Veja desta semana com uma entrevista absurda. É tanta ignorância e "fé cega, faca amolada" (como diria Milton Nascimento) que eu nem tenho palavras. Leiam na íntegra abaixo a entrevista de Rozângela para a Veja, uma revista que erra tanto no que diz respeito à política mas que, neste caso, acertou. As perguntas da jornalista Juliana Linhares são sensacionais: extremamente sagazes e questionadoras com relação à postura da "psicóloga". Todo este caso deixa claro que, como o excepcional filme de 1992, fé demais não cheira bem. Chega a feder!


"Homossexuais podem mudar"


Aceitar as diferenças e entender as variações da sexualidade são traços comuns das sociedades contemporâneas civilizadas. A psicóloga Rozângela Alves Justino, 50, faz exatamente o contrário. Formada em 1981 pelo Centro Universitário Celso Lisboa, do Rio de Janeiro, com especialização em psicologia clínica e escolar, ela considera a homossexualidade um transtorno para o qual oferece terapia de cura. Na semana passada, foi censurada publicamente pelo Conselho Federal de Psicologia (formado, segundo ela, por muitos homossexuais "deliberando em causa própria") e impedida de aceitar pacientes em busca do "tratamento". Solteira, dedicada à profissão e fiel da Igreja Batista, Rozângela diz que ouviu um chamado divino num disco de Chico Buarque e compara a militância homossexual ao nazismo. Só se deixa fotografar disfarçada, por se sentir ameaçada, e faz uma defesa veemente de suas opiniões.
A senhora acha que os homossexuais sofrem de algum distúrbio psicológico? O Conselho Federal de Psicologia não quer que eu fale sobre isso. Estou amordaçada, não posso me pronunciar. O que posso dizer é que eu acho o mesmo que a Organização Mundial de Saúde. Ela fala que existe a orientação sexual egodistônica, que é aquela em que a preferência sexual da pessoa não está em sintonia com o eu dela. Essa pessoa queria que fosse diferente, e a OMS diz que ela pode procurar tratamento para alterar sua preferência. A OMS diz que a homossexualidade pode ser um transtorno, e eu acredito nisso. [Não podia falar mas falou, né?]
O que é não estar em sintonia com o seu eu, no caso dos homossexuais? É não estar satisfeito, sentir-se sofrido com o estado homossexual. Normalmente, as pessoas que me procuram para alterar a orientação sexual homossexual são aquelas que estão insatisfeitas. Muitas, depois de uma relação homossexual, sentem-se mal consigo mesmas. Elas podem até sentir alguma forma de prazer no ato sexual, mas depois ficam incomodadas. Aí vão procurar tratamento. Além disso, transtornos sexuais nunca vêm de forma isolada. Muitas pessoas que têm sofrimento sexual também têm um transtorno obsessivo-compulsivo ou um transtorno de preferência sexual, como o sadomasoquismo, em que sentem prazer com uma dor que o outro provoca nelas e que elas provocam no outro. A própria pedofilia, o exibicionismo, o voyeurismo podem vir atrelados ao homossexualismo. E têm tratamento. Quando utilizamos as técnicas [Quais?] para minimizar esses problemas, a questão homossexual fica mínima, acaba regredindo.

Há estudos que mostram que ser gay não é escolha, é uma questão constitutiva da sexualidade. A senhora acha mesmo possível mudar essa condição? Cada um faz a mudança que deseja na sua vida. Não sou eu a responsável pela mudança. Conheço pessoas que deixaram as práticas homossexuais. E isso lhes trouxe conforto. Conheço gente que também perdeu a atração homossexual. Essa atração foi se minimizando ao longo dos anos. Essas pessoas deixaram de sentir o desejo por intermédio da psicoterapia e por outros meios também. A motivação é o principal fator para mudar o que quiser na vida.
A senhora é heterossexual? Sou.

Pela sua lógica, seria razoável dizer que, se a senhora quisesse virar homossexual, poderia fazê-lo. Eu não tenho essa vivência. O que eu observei ao longo destes vinte anos de trabalho foram pessoas que estavam motivadas a deixar a homossexualidade e deixaram. Eu conheço gente que mudou a orientação sem nem precisar de psicólogo. Elas procuraram grupos de ajuda e amigos e conseguiram deixar o comportamento indesejado. Mas, sem dúvida, quem conta com um profissional da área de psicologia tem um conforto maior. Eu sempre digo que é um mimo você ter um psicólogo para ajudá-lo a fazer essa revisão de vida. As pessoas se sentem muito aliviadas. [Rozângela foge totalmente da sagaz pergunta da jornalista. Certamente ela prefere não expor claramente o que pensa sobre o assunto, dizendo a verdade: que considera homossexualidade algo errado, um pecado, uma abominação e que seu “tratamento” é de via única, ou seja, só da homo para a heterossexualidade, nunca o contrário, pois isto seria errado]
Esse alívio não seria maior se a senhora as ajudasse a aceitar sua condição sexual? Esse discurso está por aí, mas não faz parte do grupo de pessoas que eu atendo. Normalmente, elas vêm com um pedido de mudança de vida. [O que Rozângela não percebe é que ela acaba criando a própria demanda. É um mecanismo cruel: ao pregar que ser homossexual é errado, ruim e pecaminoso ela - não sozinha, obviamente - acaba gerando no sujeito homossexual o sentimento de desadaptação e desajustamento que o faz querer procurar tratamento. É como se um infectologista espalhasse gripe suína para depois tratar os infectados. Ou como o médico da figura abaixo]


Se um homem entrar no seu consultório e disser que sabe que é gay, sente desejo por outros homens, só precisa de ajuda para assumir perante a família e os amigos, a senhora vai ajudá-lo? Ele não vai me procurar. Eu escolho os pacientes que vou atender de acordo com minhas possibilidades. Então, um caso como esse, eu encaminharia a outros colegas. [Certamente é a melhor atitude que ela poderia tomar...]

Não é cruel achar que os gays têm alguma coisa errada? O que eu acho cruel é ser uma profissional que quer ajudar e ser amordaçada, não poder acolher as pessoas que vêm com uma queixa e com um desejo de mudança. Isso é crueldade. Eu estou me sentindo discriminada. [Tadinha!] Há diversos abaixo-assinados de muitas pessoas que acham que eu preciso continuar a atender quem voluntariamente deseja deixar a atração pelo mesmo sexo.

Por que a senhora acha que o Conselho Federal de Psicologia está errado e a senhora está certa? Há no conselho muitos homossexuais, e eles estão deliberando em causa própria. O conselho não é do agrado de todos os profissionais. Amanhã ele muda. Eu mesma posso me candidatar e ser presidente do Conselho de Psicologia. Além disso, esse conselho fez aliança com um movimento politicamente organizado que busca a heterodestruição e a desconstrução social através do movimento feminista e do movimento pró-homossexualista, formados por pessoas que trabalham contra as normas e os valores sociais.

Gays existem desde que o mundo é mundo. Aparecem em todas as civilizações. Isso não indica que é um comportamento inerente a uma parcela da humanidade e não deve ser objeto de preconceito? Olha, eu também estou sendo discriminada. Estou sofrendo preconceito. Será que não precisaria haver mais aceitação da minha pessoa? Há discriminação contra todos. Em 2002, fiz uma pesquisa para verificar as violências que as pessoas costumam sofrer, e o segundo maior número de respostas foi para discriminação e preconceito. As pessoas são discriminadas porque têm cabelo pixaim, porque são negras, porque são gordas. Você nunca foi discriminada?

Não como os gays são. Não? Nunca ninguém a chamou de nariguda? De dentuça? De magrela? [Coitada da jornalista!] O que quero dizer é que as pessoas que estão homossexuais sofrem discriminação como todas as outras. Eu tenho trabalhado pelos que estão homossexuais. Estar homossexual é um estado. As pessoas são mulheres, são homens, e algumas estão homossexuais.

Isso não é discriminação contra os que são homossexuais e gostam de ser assim? Isso é o que você está dizendo, não é o que a ciência diz. [Rozângela não deve ter lido o estudo da APA, que apresentei no post anterior. Além disso, quem é ela para afirmar o que a ciência diz ou deixa de dizer. Ela não é uma cientista, mas uma missionária cristã] Não há tratados científicos que digam que eles existem. Eu não rotulo as pessoas, não chamo ninguém de neurótico, de esquizofrênico. Digo que estão esquizofrênicos, que estão depressivos. A homossexualidade é algo que pode passar. Há um livro do autor Claudemiro Soares que mostra que muitas pessoas famosas acreditam que é possível mudar a sexualidade. [Se eles acreditam então deve ser verdade, né?] Entre eles Marta Suplicy, Luiz Mott e até Michel Foucault, todos historicamente ligados à militância gay [O que alguns destes autores afirmam é que a sexualidade humana é muito mais variada do que a distinção entre homo e heterossexuais pode dar a entender. Entre um e o outro modo de viver a sexualidade haveria muitas possibilidades. A diferença destes autores para Rozângela é que eles são pensadores progressivos e liberais, não conservadores católicos. Portanto utilizar seus pensamentos para justificar ações de tratamento de homossexuais a partir de uma ótica cristã é de uma estupidez sem tamanho. Fazendo isso ela atira no próprio pé...]

Quantas pessoas a senhora já ajudou a mudar de orientação sexual? Nunca me preocupei com isso. Psicólogo não está preocupado com números [Quem é ela para falar em nome dos psicólogos? Eu me preocupo com números... dentre outras coisas, óbvio!]. Eu vou fazer isso a partir de agora. Vou procurar a academia novamente. Vou fazer mestrado e doutorado. Até hoje, eu só me preocupei em acolher pessoas.

O que a senhora faria se tivesse um filho gay? Eu não teria um filho homossexual. Eu teria um filho. Eu iria escutá-lo e tentaria entender o que aconteceu com ele. Os pais devem orientar os filhos segundo seus conceitos. É um direito dos pais. Olha, eu quero dizer que geralmente as pessoas que vivenciam a homossexualidade gostam muito de mim. E também quero dizer que não sou só eu que defendo essa tese. Apenas estou sendo protagonista neste momento da história.

A senhora se considera uma visionária? Não. Eu sou uma pessoa comum, talvez a mais simplesinha. Não tenho nenhum desejo de ficar famosa. Nunca almejei ir para a mídia, ser artista, ser fotografada.

A senhora já declarou que a maior parte dos homossexuais é assim porque foi abusada na infância. Em que a senhora se baseou? É fato que a maioria dos meus pacientes que vivenciam a homossexualidade foi abusada, sim. Enquanto nós conversamos aqui, milhares de crianças são abusadas sexualmente. Os estudos mostram que os abusos, especialmente entre os meninos, são muito comuns. Aquelas brincadeiras entre meninos também podem ser consideradas abusos. O que vemos é que o sadomasoquismo começa aí, porque o menino acaba se acostumando àquelas dores. O homossexualismo também.

A senhora é evangélica. Sua religião não entra em atrito com sua profissão? Não. Sou evangélica desde 1983. Nos anos 70, aconteceu algo muito estranho na minha vida. Eu comprei um disco do Chico Buarque. De um lado estavam as músicas normais dele. Do outro, em vez de tocar Carolina, vinha um chamamento. Eram todas canções evangélicas. Falavam da criação de Deus e do chamamento da ovelha perdida. Fui tentar trocar o LP e, na loja, vi que todos os discos estavam certinhos, menos o meu. Fiquei pensando se Deus estava falando comigo. [Novamente Rozângela não responde a pergunta da jornalista. Paulo Maluf fez escola...]

O espírito cristão não requer que os discriminados sejam tratados com maior compreensão ainda? Se eu não amasse as pessoas que estão homossexuais, jamais trabalharia com elas. Até mesmo os ativistas do movimento pró-homossexualismo reconhecem o meu amor por eles. Sempre os tratei muito bem. Sempre os cumprimentei. Na verdade, eles me admiram.

Por que a senhora se disfarça para ser fotografada? Um dos motivos é que eu não quero entrar no meu prédio e ter o porteiro e os vizinhos achando que eu tenho algum problema ligado à sexualidade. Além disso, quero ser discreta para proteger a privacidade dos meus pacientes. Por fim, há ativistas que têm muita raiva de mim. Eu recebo vários xingamentos; eles me chamam de velha, feia, demente, idiota. Trabalho num clima de medo, clandestinamente, porque sou muito ameaçada. Aliás, estou fazendo esta entrevista e nem sei se você não está a serviço dos ativistas pró-homossexualimo. Eu estou correndo risco. [Coitada, virou paranóica!]

Que poder exatamente a senhora atribui a esses ativistas pró-homossexualismo? O ativismo pró-homossexualismo está diretamente ligado ao nazismo. Escrevi um artigo em que mostro que os dois movimentos têm coisas em comum. Todos os movimentos de desconstrução social estudaram o nazismo profundamente, porque compartilham um ideal de domínio político e econômico mundial. As políticas públicas pró-homossexualismo querem, por exemplo, criar uma nova raça e eliminar pessoas. Por que hoje um ovo de tartaruga vale mais do que um embrião humano? Por que se fala tanto em leis para assassinar crianças dentro do ventre da mãe? Porque existe uma política de controle de população que tem por objetivo eliminar uma parte significativa da nação brasileira. Quanto mais práticas de liberação sexual, mais doenças sexualmente transmissíveis e mais gente morrendo. Essas políticas públicas todas acabam contribuindo para o extermínio da população. Essas pessoas que estão homossexuais estão ligadas a todo um poder nazista de controle mundial. [Isso é tão absurdo que nem vale a pena comentar. A mulher pirou de vez...]

Não há certo exagero em comparar a militância homossexual ao nazismo? Bom, se você acha que isso pode me prejudicar, então tire da entrevista. Mas é a realidade. [Aqui a Veja sacaneou Rozângela ao publicar esta fala... legal!]


UpDate 13/08/09: Jean Wyllis, ex-BBB, professor universitário e militante do movimento gay, escreveu esta semana uma carta aberta dirigida à Rozângela Justino, questionando suas declarações na revista Veja. Apesar de ex-BBB, Jean escreveu um texto brilhante, destruindo muitos dos argumentos estúpidos apresentados pela "psicóloga". Para ler a carta clique aqui.

UpDate 13/08/09: A própria Rozângela comentou em seu blog a respeito da publicação de sua entrevista na Veja e sobre o comportamento da mídia em geral na cobertura do seu caso. Para ler tal comentário clique aqui.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Terapia de conversão... não dá não!

Saiu ontem no site do CFP:
 
Associação Norte-Americana de Psicologia declara: "É impossível mudar a orientação sexual por terapia"

Nesta quarta-feira, 5 de agosto de 2009, um comitê especial da Associação Norte-Americana de Psicologia (APA) apresentou relatório informando que ‘não há qualquer evidência que apóie a afirmação de alguns profissionais, de que a orientação sexual pode ser alterada por terapia’. O parecer foi de que ‘os profissionais de saúde mental não devem dizer aos pacientes que é possível mudar sua orientação sexual; em vez disso, devem explorar caminhos e possibilidades na vida que permitam acessar a realidade da sua orientação sexual’.

O documento foi apresentado publicamente em um encontro em Toronto e também online, no site da Associação. [Clique aqui para ter acesso ao documento]

Apesar de a maioria dos cientistas acreditar que a predisposição para a orientação sexual pode ter causas genéticas, muitos terapeutas vinham afirmando serem capazes de alterar a orientação de pessoas homossexuais, tornando-as heterossexuais. Por causa da controvérsia a respeito do tema, a APA formou um comitê especial em 2007 para revisar os documentos existentes a respeito nos arquivos da organização e também atualizar o relatório de 1997 sobre o assunto. Após dois anos de trabalho, foi publicado o relatório de 138 páginas.

O grupo de trabalho revisou 83 artigos científicos em inglês, publicados entre 1960 e 2007. A maior parte dos experimentos registrados tinha sido feita antes de 1978 e somente algumas experiências tinham ocorrido nos últimos 10 anos. Segundo a psicóloga Judith Glassgold, da Universidade de Rutgers, que presidiu o comitê, "infelizmente, muitas das pesquisas continham falhas sérias de procedimento. Poucos estudos podiam ser considerados metodologicamente corretos e nenhum deles avaliou sistematicamente danos potenciais aos sujeitos, causados pelo esforço da conversão". Os danos em potencial incluem depressão e tentativas de suicídio.

Os estudos mais antigos e cientificamente rigorosos na área já apontavam ser improvável que a orientação sexual pudesse ser modificada por esforços nesse sentido. No máximo, alguns estudos sugeriram que alguns indivíduos podiam aprender a ignorar ou não agir conforme sua atração homossexual. Porém, mesmo esses estudos não indicaram precisamente em quem o método podia ter efeitos, por quanto tempo ele duraria e quais seriam seus efeitos de longo prazo na saúde mental.

Aposto que mesmo com todas as provas do mundo contrárias à terapia de "conversão" , Rozângela Justino e seus fíeis seguidores continuarão acreditando na eficácia de sua abordagem. O motivo é simples: trata-se de fé, não de ciência. O mesmo vale para o movimento criacionista...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sobre Seleção de Pessoal




Na Superinteressante deste mês (Edição 268 – Agosto/2009) foi publicada uma reportagem polêmica, intitulada “Manual secreto do RH: Quais são, e como funcionam, os testes psicológicos usados nas entrevistas de emprego”. Logo no início da reportagem, o jornalista Bruno Garattoni afirma que “hoje, 89 das 100 maiores empresas do mundo usam algum tipo de teste de personalidade para selecionar seus funcionários. Os métodos vão dos mais bobinhos, como a grafologia, aos mais sofisticados, como os testes projetivos. Não há qualquer comprovação científica de que eles funcionem”.

A partir daí a reportagem traça um breve histórico da seleção de pessoal, desde a publicação em 1913, por Hugo Munsterberg, do livro “Psicologia e eficiência industrial” (em que, segundo a revista, ele propunha “vários métodos para medir as ‘funções mentais’ dos trabalhadores (...) para saber se o candidato é esperto e atento, por exemplo”) até os dias atuais, onde os testes psicológicos são cada vez mais utilizados pelas empresas em suas seleções. De acordo com a reportagem, o teste mais comum (nos Estados Unidos? No Brasil?) é o Myers-Briggs:

“Inventado na década de 80, [o teste] consiste em dezenas de perguntas de múltipla escolha, que tenta enquadrar a pessoas em 16 tipos de personalidade (...) Dependendo do tipo em que você se encaixa, terá maior ou menor afinidade com certa empresa ou profissão. Personalidade ENFP (‘extroversão, intuição, sentimento e percepção’), por exemplo, sobressaem empresas do setor alimentício. Absurso? Provavelmente é absurdo ou apenas incorreto – pois Myers-Briggs tem margem de erro altíssima. Em 53% dos casos, o teste dá resultado diferente se for aplicado uma segunda vez. Até o período do dia em que é feito, de manhã ou de tarde, já é suficiente para mudar o tipo de personalidade do candidato”.

Sobre o famoso e ainda bastante utilizado Rorschach a revista afirma o seguinte:

“Em busca de resultados mais precisos, os especialistas em RH começaram a apelar para instrumentos mais complexos – e pegar emprestadas algumas ferramentas da psicologia [a Superinteressante sempre comete o erro de confundir psicologia com psicanálise, como se a segunda abarcasse a primeira e toda psicologia fosse psicanálise]. Como o teste Rorschach, inventado na década de 20 pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. Ele é formado por 10 borrões de tinta, cujo significado a pessoa deve interpretar. Os desenhos são propositalmente ambíguos para que a pessoa, sem saber projete neles os elementos da sua personalidade. Por isso, o Rorschach (e suas variações mais simples, como o teste Zulliger), é chamado de teste projetivo. E ele promete ir fundo. ‘Os instrumentos projetivos usam o inconsciente como referência”, explica a psicóloga Maria Cristibaa Pellini, especialista no Rorschach. O psicólogo avalia as respostas dadas pelo candidato e atribui pontos a cada uma delas. Mais de 100 variáveis são combinadas para chegar ao resultado final. É uma análise extremamente complexa e subjetiva. E aí está o grande problema. Uma análise feita pela Universidade do Texas revelou que 50% dos índices usados no Rorschach não são constantes, ou seja, dão resultados diferentes com psicólogos diferentes – o que distorce totalmente o resultado final. Para evitar que os candidatos dêem respostas premeditadas, tanto o Rorschach quanto o Zullinger são mantidos em segredo. Em tese, só psicólogos pode ter acesso a seus desenhos (como o que reproduzimos nesta reportagem) [ou seja, a Superinteressante está confessando um “crime”: num infográfico na página 78 ela exibe alguns borrões e explica o que algumas respostas a eles significam, exatamente o que o “segredo” pretendia evitar...]

E a revista finaliza:

“Ainda não existe um método que seja totalmente científico, e totalmente infalível, para julgar candidatos a um emprego. É uma pena. Mas, se na sua próxima o RH adotar critérios que pareçam estapafúrdios, pelo menos você já sabe o que fazer. Diga o que eles querem ouvir”. [Essa doeu!]

Aparte alguns erros e gigantescas omissões (em especial da fonte dos dados citados), além do oportunismo e da superficialidade da reportagem (3 páginas apenas com muitos infográficos tolos), o jornalista acertou. Os psicólogos não têm um conhecimento efetivamente científico ou minimamente sólido para saírem por aí selecionando pessoas (e, por favor, não espalhem isso, pois a maioria das pessoas ainda acha que somos cientistas da mente e que sabemos mais sobre elas do que elas mesmas... precisamos manter as aparências e a aura de mistério em torno da nossa profissão, não? Senão quem confiará em nós e em nossas “super-técnicas ultra-científicas”?). E eu falo isso enquanto um psicólogo que já participou de algumas seleções (enquanto estudante na empresa junior e, posteriormente, enquanto profissional), mas que atualmente não trabalha mais com isso, por razões ideológicas – vez por outra sou chamado para participar seleções e sempre recuso (tem coisas que o dinheiro nunca vai poder comprar: minha consciência é uma delas). Não acho justo nem ético, com o conhecimento cambaleante acumulado pela psicologia (e raquiticamente difundido por nossas faculdades), dizer quem entra e quem não entra em determinada empresa, ou pior, quem vai trabalhar e quem vai continuar desempregado. Sinceramente, os psicólogos (e eu me incluo nesta) podem achar que sabem alguma coisa – afinal, quem vive sem uma dose de auto-engano? – mas não sabem nada. Ok, podem a até saber alguma coisa, mas utilizar esse conhecimento ralo para selecionar pessoas é no mínimo anti-ético – e no máximo cruel.

Obviamente muitos não vão concordar comigo (principalmente aqueles que têm como ganha-pão a seleção de pessoal) e eu posso estar totalmente equivocado, mas é o que penso hoje. Certamente as seleções de pessoal vão continuar existindo e os psicólogos vão continuar participando delas (e, também, como se diz do traficante de drogas, se ele não fizer o trabalho sujo alguém vai fazer no seu lugar), mas eu quero continuar acreditando numa psicologia que vá além do ajustamento de pessoas. Que vá além da busca do “homem certo no lugar certo”. Uma psicologia que, de alguma forma, liberte! Não sei se isto é possível e talvez todos sejamos ajustadores (no sentido empregado por Hilton Japiassu de “mudar o indivíduo para não mudar a ordem social”), mas se alguma área na psicologia está diretamente ligada a isso, certamente é a Psicologia Organizacional. Nela ficam claros todos os grandes erros e exageros da psicologia enquanto atividade prática de ajustamento e alienação...

Junte tudo isso com técnicas projetivas, de inspiração psicanalítica, e temos um gigantesco problema. Na minha opinião, um dos grandes erros da psicologia e dos psicólogos de hoje e de ontem é o que chamo de interpretose, isto é, o excesso de interpretação do mundo e das pessoas. Como bem aponta a revista, interpretação é sempre um processo subjetivo e nada científico. Não que a psicologia seja ou queira ser ciência (muito menos a psicanálise), mas acreditar que a interpretação de um teste como o Roschach é um processo objetivo e julgar uma pessoa com base nisso me parece muito complicado. Na clínica pode até trazer benefícios (ou não trazer malefícios), mas numa seleção de pessoal o buraco é mais embaixo. O que está em jogo é a subsistência de pessoas, muitas vezes desesperadas por um emprego. Esquecer disso é esquecer de algo fundamental.

Exatamente por isto é que, já há bastante tempo e cada vez mais, o teste psicológico é utilizado como mais um instrumento dentro de um amplo processo que envolve entrevistas, dinâmicas de grupo, provas de conhecimento e até os chamados processos trainee (dentre muitos outros), de forma que, se avaliar e selecionar pessoas é realmente necessário ao capitalismo, que isso seja feito da forma mais completa e honesta possível. O problema é que, de qualquer forma, o processo de seleção de pessoal está sempre sujeito a interpretações subjetivas comprometedoras e – o que é pior - muitos profissionais não se dão conta disso. Acham que estão sendo cientistas-objetivos-imparciais quando, de fato, não estão... não percebem, como diz Ana Bock, que o que fazem não é psicologia, mas pura ideologia...

OBS: De acordo com pesquisa realizada em 2004 (e publicada em 2005) com 15 profissionais que trabalhavam com seleção de pessoal, as técnicas mais utilizadas por eles foram as seguintes:



Já os testes psicológicos mais utilizados foram os seguintes:


CFP decide por censura pública

Dia 31 de Julho, sexta-feira, foi realizado o julgamento pelo CFP da "psicóloga" Rozângela Alves Justino - saiba mais sobre o caso aqui e aqui. Abaixo o comunicado do CFP:

Conselho Federal decide por censura pública a psicóloga 

A Plenária Ética do Conselho Federal de Psicologia decidiu, por unanimidade, manter a pena de censura pública à psicóloga Rozângela Alves Justino, que havia sido definida pelo Conselho Regional de Psicologia da 5ª. Região (CRP 05), com sede no Rio de Janeiro. A decisão foi tomada em julgamento realizado no início da tarde desta sexta-feira, 31 de julho, na sede do Conselho, em Brasília. 

“A sociedade será notificada de que a psicóloga recebe censura pública por oferecer tratamento e indicar que a orientação sexual de caráter homoafetivo seria um distúrbio, uma doença”, afirmou o presidente do CFP, Humberto Verona, durante entrevista coletiva realizada após o julgamento (Ouça aqui a fala na íntegra). 

A pena será aplicada pelo CRP 05. De acordo com o Artigo 69, Parágrafo 2º do Código de Processamento Disciplinar dos Psicólogos, “A censura pública, a suspensão e a cassação do exercício profissional serão publicadas em Diário Oficial, jornais ou boletins do Conselho Regional e afixados na sua sede onde estiver inscrito o psicólogo processado e nas suas Seções”. 

Antes do julgamento, o Conselho recebeu decisão da 15ª Vara Federal sobre Mandado de Segurança Individual impetrado pela defesa da psicóloga, questionando, entre outros temas, a constitucionalidade da Resolução 001/1999, que embasa a decisão. A Juíza Federal Substituta indeferiu a liminar pleiteada, defendendo a legitimidade de o Conselho editar normativa infraconstitucional, em consonância com suas atribuições de regulação profissional. (Veja a decisão)
A Resolução CFP N.º 01/99 regulamenta que os psicólogos deverão contribuir com seu conhecimento para o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Neste sentido proíbe os psicólogos de qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas e proíbe os psicólogos de adotarem ações coercitivas tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. 

A Resolução impede os psicólogos de colaborarem com eventos ou serviços que proponham tratamentos e cura das homossexualidades, seguindo as normas da Organização Mundial de Saúde e impede que os psicólogos participem e se pronunciem em meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito social existente em relação aos homossexuais como portadores de desordem psíquica. A Resolução não impede os psicólogos de atenderem pessoas que queiram reduzir seu sofrimento psíquico causado por sua orientação sexual, seja ela homo ou heterossexual. A proibição é claramente colocada na adoção de ações coercitivas tendentes à cura e na expressão de concepções que consideram a homossexualidade doença, distúrbio ou perversão. 

Os psicólogos não podem, por regra ética, recusar atendimento a quem lhes procure em busca de ajuda. Por isso é equivocada qualquer afirmação de que os psicólogos estão proibidos de atenderem homossexuais que busquem seus serviços, incluindo a demanda de atendimentos que possam ter como objeto o desejo do cliente de mudança de orientação sexual, seja ela hetero ou homossexual. No entanto, os psicólogos não podem prometer cura, pois não podem considerar seu cliente doente, ou apresentando distúrbio ou perversão. 

Por fim, cabe salientar que a ética dos psicólogos é laica e portanto o exercício da profissão não pode ser confundido com crenças religiosas que os psicólogos por ventura professem. 

De acordo com o Estadão “a decisão do órgão não agradou a ativistas do movimento homossexual no País. O coordenador do grupo de conscientização Arco-Íris, Júlio Moreira, avaliou como 'insignificante' a punição aplicada a Rozângela Alves Justino. 'A psicóloga vem há anos produzindo essa proposta de cura, baseada em fundamentos religiosos e nada científicos', argumentou. Segundo o secretário regional da Associação Brasileiras de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Léo Mendes, a entidade já estuda entrar com ação na Justiça contra a psicóloga”. 

Certamente foi uma pena leve (visto que ela vêm sendo censurada publicamente já há um bom tempo), mas o fato é que se Rozângela voltar a "tratar" gays poderá, aí sim, perder seu registro profissional. O problema é que não me parece que ela está disposta a parar com sua evangelização, afinal ela própria se intitula "psicóloga missionária" e sua missão não parece ter acabado... Estamos de olho!

OBS: Se Rozângela está enormemente equivocada sob diversos aspectos (muitos já discutidos neste blog), o movimento gay também erra ao promover (ou a não inibir) o linchamento da "psicóloga", ao ponto desta ter de se disfarçar para não apanhar na rua. Estes militantes - minoria, espero - se esquecem que o que está em jogo é o que ela faz, não o que ela é enquanto pessoa. Não tenho nada contra a pessoa Rozângela, até porque não a conheço. Sou contra a atuação dela enquanto psicóloga. E foi em função de sua atuação que ela foi processada e condenada à censura pública. Se a pena é justa ou injusta é o caso de aceitar ou recorrer, mas o fato é que estimular o linchamento, inclusive físico, de Rozângela é uma enorme contradição para um movimento que busca a tolerância e a aceitação da sociedade. A história já mostrou em inúmeros momentos que combater intolerância com intolerância não leva a nada, podendo, inclusive, piorar as coisas. Esse erro não pode ser cometido novamente...