segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O poder de um rótulo

Inicio este post com um breve relato pessoal: pelo menos uma ou duas vezes por mês, eu tenho uma mistura intensa de dor de cabeça com náusea. Há alguns anos atrás, acreditando ser algum problema no processo digestivo, relacionado talvez à mudanças na minha alimentação - decorrente, por sua vez, de uma mudança de cidade - procurei um gastroenterologista (gastrologista é coisa do passado!). Relatei  os meus sintomas e ele me solicitou diversos exames - afinal, o que seriam dos médicos hoje em dia sem os exames? Não parece haver nada mais antiquado do que tocar e ouvir o paciente. Bom, e lá fui eu: fiz endoscopia, ultrassom, exames de sangue e até mesmo biópsia do meu estômago (terá sido mesmo necessário?). De certa forma, fui revirado do avesso, tendo todo o meu trato digestivo transformado em imagens ou números. Resultado? Tudo normal. Não tinha nada, nadinha, nadica de nada! Ou pelo menos é o que o médico me disse após olhar os exames. Mas como assim não tenho nada? Alguma coisa eu tenho, seja esta coisa psicológica ou somática (ou ainda psicossomática), pois continuava passando mal. De qualquer forma, o médico me receitou dois remédios para eu tomar quando passasse mal - afinal, sair de um médico sem uma receita é como nem ter ido, não é mesmo? E o mais incrível foi descobrir que existe remédio até para quem não tem nada! Pois bem, saí da consulta com uma receita e um "nada" estampado na testa. Talvez por ser psicólogo, ele não me encaminhou para um. Mas poderia, afinal psicólogo não é o especialista no "nada"? "Você não tem nada! Procure um psicólogo!", não é assim que funciona para muitos médicos? Eu iria sem pestanejar - como já fui várias vezes -, afinal psicólogos estão sujeitos aos mesmos problemas que qualquer um, mas por diversos motivos, não considerei uma opção viável naquele momento.

Após alguns dias da consulta, voltei a passar mal. Comentei então com uma amiga o que estava sentido e ela sugeriu que talvez eu sofresse de enxaqueca. Ela sofre e tem os mesmos sintomas. Minha primeira teoria era de que o estômago (ou o fígado ou qualquer coisa na barriga) estaria afetando a cabeça, mas agora tudo fazia sentido: é a dor de cabeça que gera náusea e não o contrário. Eureca! Lembrei também que na minha família muitos sofrem de enxaqueca e que, realmente, a dor de cabeça começava antes da náusea. Sabe quando tudo se encaixa? Pois bem, procurei um neurologista e ele confirmou:  eu tenho enxaqueca! Inacreditavelmente, saí da consulta mais tranquilo por saber que o que eu tinha não era simplesmente "nada". O que eu sinto tem um nome!!! Eis o poder de um rótulo...

Toda esta história me leva ao artigo The game name: toward a sociology of diagnosis ("O jogo do nome: em direção a uma sociologia do diagnóstico" - disponível aqui), escrito pelo sociólogo Phil Brown em 1990. Para o autor, os diagnósticos médicos - especialmente os psiquiátricos - são poderosos instrumentos de controle social. Para demonstrar esta visão, ele apresenta e analisa alguns diagnósticos antigos que deixam isto evidente. Por exemplo, no final do século XVIII, Benjamin Rush, considerado um dos fundadores da Psiquiatria norte-americana, criou uma categoria diagnóstica chamada Anarquia, que designava uma "forma de insanidade" na qual pessoas insatisfeitas com  estrutura política vigente almejavam uma sociedade mais justa e democrática. Ou seja, todos aqueles que reivindicavam mudanças sociais foram considerados por Rush insanos e, logo, doentes. Com a criação deste diagnóstico, afirma Brown, Rush transformou sua postura política em sintomas de uma doença mental. O autor cita também o exemplo das mulheres que, durante a Inquisição foram diagnosticadas como bruxas - e este diagnóstico era, à época, tão evidente, claro e preciso quanto, atualmente, é o Transtorno Bipolar ou o TDAH. Outro exemplo importante citado por Brown, é a Drapedomania, patologia "identificada" por Samuel Cartwright em 1843, que gerava nos escravos uma compulsão irresistível por fugir e se libertar de seus senhores. Segundo a interpretação de Brown, a função deste diagnóstico era prover o suporte para uma ordem social baseada na escravidão. Todos estes exemplos evidenciam, para o autor, a função da psiquiatria (e da medicina em geral) como instrumento de legitimação do controle social. Sob o olhar atual tais diagnósticos soam estranhos e até mesmo cruéis e desumanos. No entanto, na época em que foram criados, faziam parte de uma visão de mundo bastante comum. O que nos garante que não estamos cometendo os mesmos erros agora e que, no futuro, ao olharem para nosso tempo, enxerguem nossos diagnósticos e tratamentos como cruéis?

Ao mesmo tempo, esta visão negativa dos diagnósticos deixa escapar, na minha opinião e de outros autores, que os rótulos não são maléficos em si mesmos. Um diagnóstico, de certa forma, pode ajudar a pessoa a organizar uma experiencia de sofrimento e, ao mesmo tempo, criar uma perspectiva de futuro, pois o diagnóstico gera o prognóstico, ou seja, o tratamento. Além disso, ao se nomear a experiência dolorosa, o sofrimento é situado em uma certa leitura de mundo, sendo legitimado e validado socialmente. Com o diagnóstico, a pessoa ganha o direito de ficar doente (e isto tem importantes implicações sociais e mesmo jurídicas). E com isso, o sofrimento, muitas vezes, se reduz, tendo em vista que o peso da responsabilidade sobre a própria dor se dilui. Alguns diriam que isto é ruim: "Você é responsável por tudo que cativas", alguém poderia dizer. Mas já não somos responsáveis por tantas coisas? Será que temos de ser responsáveis também por nossas doenças e por nossas perturbações? Susan Sontag, em seu clássico livro Doença como metáfora, criticava justamente as explicações para as doenças que jogam toda a responsabilidade nos ombros do enfermo. "Fulano está com câncer, mas também, não colocava as emoções pra fora, era muito contido", "Ciclano teve um ataque cardíaco. Também, sendo tão estressado como ele é...". Além de ter de lidar com o peso da doença a pessoa ainda acaba tendo que lidar com o peso da responsabilidade de ter ficado doente. E este é um peso muito grande, por vezes difícil de lidar. 

Por tudo isso, cabe a reflexão: ao mesmo tempo que os diagnósticos são "ruins" por estigmatizarem a pessoa e por retirarem dela toda ou grande parte da responsabilidade sobre sua doença ou suas condutas, eles também são "bons", justamente por retirarem ou minimizarem tal responsabilidade e também por darem o "nome aos bois", organizando e dando sentido à dolorosa experiência subjetiva da pessoa. Como em quase tudo na vida, os diagnósticos não são bons ou ruins; eles são bons e ruins. Demonizar a medicina, a psiquiatria e os manuais de classificação (DSM, CID), pode até fazer algum sentido, mas a realidade, sempre, é muito mais complexa. Os rótulos, certamente, podem gerar consequências negativas - no caso das questões psicológicas/psiquiátricas isto pode acontecer, por exemplo, quando o sujeito compreende que suas "perturbações" nada tem a ver com a forma como ele vê e encara e a vida, sendo resultado somente de um desequilibrio químico em seu cérebro. Mas as consequências também podem ser positivas - quando o sujeito, por exemplo, modifica ou acrescenta hábitos e atitudes saudáveis em sua vida após receber um diagnóstico. Na verdade, as consequências parecem depender menos do rótulo em si e mais da forma como a pessoa "rotulada" encara o diagnóstico - e, especialmente, o que ela faz com essa informação. Ela pode simplesmente culpar sua genética ou seu cérebro, desresponsabilizando-se completamente, ou então ela pode passar agir diferententemente. No meu caso, receber o diagnóstico de enxaqueca fez com que eu ficasse mais atento ao meu sono, à minha alimentação e ao stress da vida cotidiana. Com isso, ao invés de me diminuir, o diagnóstico me fortaleceu, tornando-me mais consciente de minhas fraquezas. Não digo que isto acontece sempre, mas certamente é algo que não pode ser desconsiderado.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O que significa dizer que algo "faz bem para o cérebro"?

Pesquisando no Google a expressão "faz bem para o cérebro" é possível encontrar as seguintes coisas que "fariam bem" a este importante órgão do corpo humano: caminhar na natureza, ler e escrever no papel, nostalgia, mau humor, chocolate, soja, pilotar moto, ovo, dar boas risadas, leite, azeite, chá de hibisco, video de gatos, dormir de lado, estudar música, malhar, jogar video game, cerveja, Enya, chá verde, jogar Tetris, pensar em sexo, xadrez, ser bilingue, maconha, sexo antes do estresse, etc, etc. Eu poderia continuar ad infinitum, mas uma pergunta se faz necessária diante de todos esses exemplos: o que significa, afinal, dizer que algo "faz bem ao cérebro"? Em geral, as reportagens e textos que se utilizam de tal expressão, se referem a supostos estudos e pesquisas que apontariam para os benefícios de tais ações ou substâncias para a concentração ou para a memória das pessoas. No entanto, embora estudos e pesquisas em geral sejam apontados como fontes de tais afirmações, normalmente nenhum estudo ou pesquisa específico - e muito menos a fonte ou o link destas pesquisas - é indicado, o que nos impossibilita de averiguar se o que eles dizem a respeito da(s) pesquisa(s) coincide com o que os próprios pesquisadores afirmam (em geral há uma enorme discrepância entre o que jornalistas e cientistas dizem - e especialmente em como dizem). E isto só reforça minha impressão de que tais reportagens ou textos tem como função primordial não divulgar os resultados de um estudo realizado por cientistas mas reforçar coisas que já sabemos que fazem bem, como fazer atividades físicas e se alimentar de forma equilibrada, ou então fazer o leitor se sentir momentaneamente satisfeito ou menos culpado por comer chocolate, acordar mau humorado ou passar horas jogando videogame. 

Dizer, por exemplo, que caminhar faz "bem ao cérebro" significa, em geral, que caminhar promove mudanças no cérebro. E eu não teria como duvidar disso, afinal, seguindo a noção de neuroplasticidade, acredito - como os neurocientistas contemporâneos - que o cérebro é constantemente modificado em nossa relação com o mundo (e digo "nossa" porque cérebros não se relacionam sozinhos com o mundo: eles precisam de um corpo para isso). Isto significa, por sua vez, que ficar sentado no sofá comendo M&Ms e assistindo séries também modifica o nosso cérebro. Aliás, tudo o que fazemos (e pensamos e sentimos) modifica o nosso cérebro - não só aquilo que "faz bem". Neste sentido, dizer que caminhar causa modificações no cérebro não traz qualquer informação de fato relevante. Outra coisa, no entanto, é apontar o que de fato se modifica no cérebro quando caminhamos ou quando fazemos qualquer outra coisa - e isto muitas vezes não é apontado. Peguemos, como exemplo, esta reportagem da revista Galileu que afirma que um estudo feito por um aluno de graduação da Universidade de Stanford teria mostrado que "caminhar na natureza faz bem ao cérebro". Neste estudo (que o artigo não indica, mas que pode ser lido na íntegra aqui), os pesquisadores dividiram 38 pessoas em dois grupos: um caminhou 90 minutos por áreas silenciosas e arborizadas do campus de Stanford e o outro caminhou também por 90 minutos pelo agitado centro da cidade. Após tal caminhada, todos responderam a um questionário que avaliava o nível de ruminação dos participantes, ou seja, a quantidade de pensamentos repetitivos focados em aspectos negativos do self. Além disso, os participantes tiveram a atividade cerebral avaliada e mensurada por um equipamento de tomografia. A conclusão dos pesquisadores, segundo a reportagem, foi: aqueles que andaram no centro ficaram mais agitados, com bastante fluxo de sangue no cortex pré-frontal; já os participantes que passearam pelo caminho arborizado teriam mostrado mais positividade em seus questionários e teriam menos sangue circulando no cortex pré-frontal. Por outro lado, a conclusão segundo os próprios pesquisadores foi de que os participantes que caminharam por um ambiente natural "relataram níveis mais baixos de ruminação e mostraram redução da atividade neural em uma área do cérebro associada ao risco para a doença mental" (repito: associada ao risco) em comparação com aqueles que caminharam em um ambiente urbano. Isto poderia confirmar a hipótese dos pesquisadores de que "ambientes naturais podem conferir benefícios psicológicos para os seres humanos".


Vale ressaltar que em nenhum momento do artigo os pesquisadores apontam que ambientes naturais fazem bem ou podem fazer bem para o cérebro, mas para os seres humanos em geral. E porque eles dizem desta forma? O motivo é bastante simples. O cérebro, sendo um músculo, não tem a capacidade de sentir ou de estar bem ou mal. Quem possui tal capacidade somos nós (pessoas/organismos como um todo) e não nosso cérebro - como já apontei, de certa forma, em um post anterior. Portanto, da próxima vez que ler manchetes como essa, ignore a expressão "para o cérebro" e concentre-se em "faz bem". E tente também ignorar o absurdo que são algumas pesquisas - ou pelo menos a divulgação delas - que só provam aquilo que já sabemos. Ler faz bem? Nossa! Dormir também! Que coisa! Os psicólogos Sally Satel e Scott Lilienfeld, no livro Brainwhashed chamam tais expressões de "neuroredundâncias" por simplesmente reforçarem aquilo que já sabemos - só que com uma roupagem neurocientífica. São "mais do mesmo": parecem dizer muito mas não dizem nada - ou, pelo menos, nada novo. Por outro lado, dizer que ouvir Enya e jogar Tetris fazem bem ao cérebro podem até parecer informações novas e interessantes; no entanto, mesmo tais notícias acrescentam muito pouco ao leitor. Isto porque algumas perguntas básicas raramente são respondidas: como foi feito o estudo que embasa esta afirmação? quantas pessoas participaram? qual foi a metodologia? Sem responder tais perguntas é difícil acreditar em afirmações generalistas como "ouvir Enya fazer bem ao cérebro". Que cérebro, cara pálida? Ou melhor, para quais pessoas escutar Enya faz bem? Para algumas certamente, mas não para todas. Algumas pessoas se sentem bem escutando Enya ou música clássica, mas outras preferem heavy metal ou samba - e  isto "faz bem" a elas. De toda forma, é claro que existem coisas que fazem bem, mas isto não significa 1) que fazem bem a todas as pessoas do mundo o tempo todo e 2) que fazem "bem ao cérebro". Se algo faz bem, faz bem à pessoa como um todo. Por tudo, isso, da próxima vez que ler que algo "faz bem ao cérebro" tente refletir sobre o que isso realmente quer dizer. Muitas afirmações parecem dizer muito mas efetivamente não dizem nada.