sexta-feira, 26 de agosto de 2016

São tantas opções!!! Reflexões sobre a arte de escolher, no Netflix e na vida

Se você é assinante do Netflix então você deve passar pelo que eu passo e sentir o que eu sinto. Aposto que você, como eu, já ficou um tempão passando pelas inúmeras opções de filmes e séries da plataforma sem conseguir escolher, afinal, o que assistir naquele momento. São tantas opções e, ao que parece, tantas boas opções, que é comum a sensação de me sentir perdido e até mesmo paralisado. Confesso que algumas vezes eu passei mais tempo imerso nesse doloroso processo de escolha do que assistindo efetivamente alguma coisa - uma total perda de tempo! Outras vezes eu acabei desistindo e não assisti nada. Isto acontece com você? Aposto que sim. Aliás, mesmo que você não tenha Netflix, esta sensação deve estar presente em sua vida de alguma forma. Isto porque temos hoje, enquanto sociedade, um gigantesco número de opções para quase tudo. Se as pessoas tem igualmente acesso a todas estas opções é uma outra história (e a resposta, já adianto, é um sonoro "Não!"), mas o fato é que nunca tivemos tantas opções. Já comprou um celular? Então você sabe do que eu estou falando. Comprar um celular ou um notebook hoje em dia é uma tarefa complexíssima em função da existência de uma quantidade absurda de marcas e modelos e funções e cores... Ahhh! É muito fácil se sentir perdido no meio de tantas opções. Mas o excesso de opções não existe somente no mundo do consumo, onde isso é mais evidente, mas em diversos outros âmbitos da vida. Pensemos, por exemplo, na escolha do curso de graduação. Um adolescente que deseje ingressar hoje na universidade tem à sua disposição, pelo menos teoricamente, mais de 500 cursos diferentes. E isto significa que ao escolher determinado curso ele estará instantaneamente abrindo mão de todos os outros. Não é uma tarefa simples! Escolher e abrir mão nunca é e nunca foi fácil, mas se torna ainda mais difícil diante de tantas e tantas e tantas opções.

Em geral, tendemos a ver isso como uma coisa boa. "Se temos mais opções, temos mais liberdade para escolher e se temos mais liberdade somos mais felizes", é o que normalmente pensamos. No entanto, isto não é totalmente verdade - por dois principais motivos. O primeiro é que em grande parte das vezes, acabamos optando pelo caminho mais fácil e escolhemos a opção mais óbvia, mais conhecida ou mais popular - por exemplo, quando você vai a uma sorveteria que tem mais de 200 sabores de sorvete e escolhe o sorvete de chocolate. Você tinha à sua disposição uma infinidade de opções, mas acabou optando - como grande parte das vezes as pessoas optam - pelo caminho mais seguro. Talvez você não saiba como é o gosto, por exemplo, de um sorvete de cajá, mas certamente você imagina e sabe como é o gosto de um sorvete de chocolate. Não que os sorvetes de chocolate sejam todos iguais, mas você tem uma referência mais clara em sua mente de como é e como será este sabor, o que lhe sugere que haverá uma menor possibilidade de você se decepcionar. Por isso você opta pelo caminho mais seguro e pede o sorvete de chocolate - e não o de cajá. Aliás, eu aposto que na maioria das sorveterias, um pequeno número de sabores tem uma saída muito maior que 99% dos outros sabores - da mesmo forma como acredito que no Netflix um pequeno número de filmes e séries domina a audiência (a ideia da categoria "Em alta" parece ser indicar justamente os filmes e séries mais vistos, que acabam, por conta desta indicação, sendo ainda mais vistos). Queremos acreditar que estamos tomando uma decisão autônoma e seguindo nossa intuição, mas estamos apenas agindo como ovelhinhas e seguindo a multidão. 

O segundo motivo pelo qual não é totalmente verdadeira a ideia de que "mais opções = mais liberdade = mais felicidade" é que, em geral, o excesso de opções causa sofrimento, ansiedade e angústia. Certamente, ter opções é bom até um determinado ponto, como bem aponta como aponta o psicólogo Barry Schwartz no magnífico livro O paradoxo da escolha: porque mais é menos (A Girafa Editora, 2007). No entanto, ultrapassado este "ponto", o excesso de opções começa a pesar e aí começamos a ficar perdidos e angustiados. Em parte, esta angústia se deve à ideia amplamente disseminada de que devemos fazer sempre "a melhor escolha", o que alguns indivíduos levam extremamente a sério - Schwartz os chama de "maximizadores". Essas pessoas não aceitam qualquer coisa, não se contentam com o mínimo, elas querem o máximo. Se vão comprar um celular querem o melhor celular. Se o objetivo é ter um carro, não querem um carro qualquer, querem "o" carro. Na hora de escolher a profissão, almejam a profissão perfeita: aquela que trará satisfação permanente e muito dinheiro. Ao "escolher" o parceiro amoroso (na verdade não é tanto uma escolha e mais um encontro), não aceitam menos do que a alma gêmea.  Enfim, os maximizadores querem sempre fazer a melhor escolha. E para tanto gastam (ou investem?) uma grande quantidade de tempo antes de tomarem qualquer decisão. Se o objetivo é comprar uma camisa, por exemplo, percorrerão todas as lojas do Shopping antes de escolher qual irá levar. Se o objetivo é escolher um filme no Netflix, explorarão todo o enorme catálogo da plataforma antes de se decidir. Se o objetivo é encontrar sua "alma gêmea" passarão horas no Tinder avaliando todos ou o máximo possível de perfis. O problema é que dificilmente os maximizadores ficarão satisfeitos. De acordo com Schwartz, os maximizadores, em geral, são pessoas "menos satisfeitas com a vida, menos felizes, menos otimistas e mais deprimidas". Em sua busca pelo "melhor" eles sempre se sentirão frustrados, inclusive depois de escolher. Isto porque eles quase certamente ficarão com a sensação de que poderiam ter pesquisado mais, explorado mais, comparado mais e, portanto, terem feito escolhas ainda melhores.

Escala de Maximização - Veja como você se sai!
O que o maximizador não percebe, ou não quer perceber, é que não existe escolha perfeita, não existe "a" melhor escolha, não existe alma gêmea. Todas as escolhas são falíveis. Nunca há ou haverá garantia de que fizemos a escolha certa. Aliás, o que seria uma escolha certa? Se tivéssemos feito outras escolhas em nossas vidas, nunca saberíamos como estaríamos. Se eu tivesse feito outro curso que não Psicologia, como seria minha vida hoje? Eu não sei e nunca vou saber - da mesma forma como não tenho como saber como minha vida seria se eu tivesse nascido na Índia ou se eu fosse mulher, por exemplo. A vida é o que é e não o que teria sido. Escolher, nesse sentido, é um ato de coragem, como bem aponta o orientador profissional Silvio Bock. É uma aposta que fazemos em determinados caminhos - e como em toda aposta, não há garantias, apenas possibilidades. E isto significa que diante de uma escolha (seja ela de qual sorvete tomar, de qual filme assistir, de qual pessoa namorar ou de qual profissão seguir) você tem basicamente duas opções: 1) buscar a melhor opção - e nunca encontrar e viver permanentemente frustrado; ou 2) aceitar o "suficientemente bom". A ideia, neste caso, não é fazer a escolha de qualquer jeito ou se contentar com o mínimo, mas aceitar que não existe escolha perfeita e que o máximo que podemos encontrar em cada momento é o "suficientemente bom". O melhor está no plano das ideias, é uma utopia. Já o "suficientemente bom" é mais palpável, mais real, mais possível. Schwartz defende, nesse sentido, que nos sentiríamos mais felizes se: aceitássemos determinadas restrições voluntárias à nossa liberdade de escolha, em vez de nos revoltarmos contra elas; buscássemos aquilo que fosse "suficientemente bom" em vez de buscar o melhor; baixássemos as expectativas quanto ao resultado das nossas decisões; nos importássemos menos com o que as pessoas ao nosso redor fazem. Tudo isto significa que da próxima vez que estiver de frente para a tela do Netflix tente não pensar "qual o melhor filme que eu posso assistir agora?" mas sim "este filme parece suficientemente bom para mim neste momento?". Estabeleça um limite de tempo para pesquisar (por exemplo, 5 minutos) e finalizado este período, escolha o que sua intuição mandar. Pode ser que você não goste do filme mas pode ser que você goste. Não há como saber anteriormente. Não há certezas. Escolher, no Netflix e na vida, é sempre uma caixinha de surpresas.

Sugestões (apenas duas para você não se sentir perdido):

domingo, 21 de agosto de 2016

Quem são as psicólogas brasileiras?

No último dia 19 de Agosto, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou o relatório final do “Levantamento de informações sobre a inserção dos psicólogos no mercado de trabalho brasileiro”, realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) a pedido do CFP. Este levantamento, realizado com base nos dados colhidos pelo IBGE para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), permite que tenhamos uma noção a respeito de quem é, afinal, o psicólogo brasileiro - na verdade, como a maioria absoluta dos profissionais do campo são mulheres, eu utilizarei quase sempre o gênero feminino para falar deste profissional, invertendo a lógica de se falar no masculino para se referir à ambos os gêneros. A seguir eu farei um breve compilado dos resultados, mas quem quiser se aprofundar, pode acessar diretamente o relatório final do levantamento clicando aqui. Pois bem, logo no inicio, o relatório aponta para a atuação, no Brasil, de cerca de 146 mil psicólogas - este número se refere, cabe reforçar, ao número de "psicólogas ocupadas", ou seja, não leva em consideração o número de pessoas formadas em psicologia mas somente aquelas que efetivamente atuam na área. Outro dado interessante é que grande parte destas profissionais, cerca de 90 mil, vive na região Sudeste - o que talvez tenha relação com a localidade dos cursos de formação (como eu constatei, em 2009, neste artigo). Importante destacar que o relatório contrapõe as psicólogas às pessoas "ocupadas com o ensino superior", ou seja, pessoas que no momento da pesquisa: a) frequentavam curso de mestrado ou doutorado; b) não frequentavam,  mas  já  frequentaram curso  de  mestrado  ou  doutorado;  ou  c)  não frequentavam,  mas  já  frequentaram e  concluíram,  com aprovação,  curso  superior  de graduação - nesse caso, o número que consta no relatório é de 14 milhões de pessoas. Pelo que pude entender, este número inclui todas as pessoas que concluíram um curso de graduação, não somente de psicologia. Segundo o Dieese, o objetivo ao retratar estes dados foi "fornecer uma base de comparação entre a situação dos psicólogos e a dos demais profissionais com o mesmo grau de formação".

Com relação à idade das profissionais, a conclusão do relatório é que cerca de 84% possuem mais de trinta anos - somente 16% teriam menos de trinta (no caso daquelas ocupadas com o ensino superior, o percentual é parecido: 80 versus 20%). E isto aponta para a conclusão de que as psicólogas não são assim tão jovens - embora dizer que a maioria possui "mais de 30" seja um tanto quanto vago, afinal, há uma enorme diferença entre ter 31 e 80. O relatório não explora os porquês dos dados, mas proponho alguns questionamentos: será que as psicólogas são mais velhas porque as mais jovens não conseguem ou demoram para conseguir emprego na área? Ou porque muitas pessoas ingressam na faculdade de psicologia mais tarde na vida? Como a proposta do levantamento é descrever a realidade das psicólogas e não explicá-la, não há qualquer resposta para estas perguntas. Da mesma forma como não há qualquer tentativa de resposta para a pergunta: por que a maioria dos psicólogos brasileiros são mulheres? Pois de fato o levantamento aponta que mais de 90% dos profissionais são do sexo feminino. Curiosamente, no caso das pessoas ocupadas com o ensino superior, a proporção é significativamente menor: 57% de mulheres contra 43% de homens. E isto aponta para uma maior "masculização" do ensino superior em geral, que se contrapõe a uma quase absoluta "feminilização" da formação e profissão psi. De toda forma, o debate continua: por que a psicologia no Brasil sempre foi e continua sendo uma profissão majoritariamente feminina?

Outro dado interessante - e preocupante - é o baixíssimo percentual de psicólogas negras. De acordo com o levantamento, apenas 16,5% das psicólogas são negras - as não-negras compõem a absoluta maioria (83,5%). Curiosamente, dentre aqueles ocupados com o ensino superior o percentual é maior: 30,5% de negros versus 69,5% de não-negros. Tendo em vista que a população negra representa, segundo o IBGE, cerca de 54% da população, é possível concluir que a categoria das psicólogas definitivamente não representa a população brasileira, sendo ainda majoritariamente branca. Não entrarei nos porquês disto - assim como o levantamento não entrou - mas gostaria apenas de deixar aqui o minha preocupação com este dado. Outra informação curiosa disponível no relatório é que cerca de 90% das psicólogas tem como grau mais elevado de formação a graduação. Apenas 4,4% possui mestrado ou doutorado completo - e 5,1 incompleto (nada é dito sobre o percentual de psicólogas envolvidas em pós-graduações lato sensu como especializações e residências). Curiosamente, as porcentagens permanecem semelhantes quando se analisam as pessoas ocupadas com o ensino superior: 92% possuem apenas graduação, 5,4% mestrado ou doutorado completo e 2,3% incompleto.

Outros dados interessantes dizem respeito à situação socioeconômica das psicólogas brasileiras. De acordo com o levantamento, as profissionais de psicologia possuem um rendimento mensal domiciliar médio de R$10.795,00 valor 24,4% superior ao rendimento total das pessoas ocupadas com ensino superior (R$8.680,00). Cabe reforçar que este é o valor do rendimento domiciliar, que é calculado somando-se os  rendimentos mensais de todos os moradores da unidade domiciliar. Não fica claro neste dado, portanto, qual é a renda média específica da psicóloga brasileira. Outra informação disponível no relatório é que o rendimento domiciliar per capita das psicólogas atinge, em média R$ 4.055,00, valor 28% superior ao das pessoas ocupadas com ensino superior (R$3.169,00) - mas isto ainda não diz nada sobre o salário médio das psicólogas. O cálculo do rendimento per capita é feito dividindo-se o valor do rendimento domiciliar pelo número de pessoas dependentes da renda familiar. Neste sentido, pode ser que um outro ente familiar, que não a psicóloga, contribua mais com a renda da família. Enfim, esses dados não permitem uma conclusão acerca da renda média das psicólogas brasileiras.

O mesmo não pode ser dito sobre o tipo de inserção profissional. O levantamento é bastante claro ao expor que grande parte das profissionais atua de forma autônoma/por conta própria (42%) - em contrapartida, pouco menos de um quarto trabalha na condição de assalariada com carteira de trabalho assinada (22,6%) e outras 20,8% como funcionárias públicas estatutárias. Aquelas  empregadas  sem  carteira  de  trabalho assinada representam 8,9% do total de psicólogas e as empregadoras 5,8%. Além disso, o levantamento aponta que 83% das psicólogas possuem apenas um único trabalho, que seria o responsável por toda sua renda mensal (no caso das ocupadas com ensino superior o número é ainda maior: 90%). Com relação à área de atuação, o relatório indica que cerca de 75% das psicólogas trabalham em atividades de "Educação, saúde e serviços sociais", o que não diz muita coisa sobre a real atuação destas profissionais. Em segundo  lugar (18%) está  a  administração  pública, mas este dado é também muito vago para que eu possa extrair qualquer conclusão.

Na parte final do levantamento, finalmente é respondida a pergunta "quanto ganha uma psicóloga no Brasil?" E a resposta é que em média a psicóloga brasileira ganha cerca de R$3400,00 - o que equivale a cerca de R$29,00 por hora hora de trabalho. Você considera este valor muito ou pouco? Confesso que minhas expectativas eram menores e eu me surpreendi positivamente - mas não podemos nunca nos esquecer que se trata de uma média e médias são sempre abstrações estatísticas (basta lembrar que a média entre 1 e 99 é 50, o que aponta para a possibilidade de algumas psicólogas ganharem muito e outras muito pouco, o que na média dá um valor razoável). No caso das pessoas ocupadas com o ensino superior, a renda média mensal é consideravelmente maior, cerca de R$4000,00, sendo R$32,00 por hora. Com relação à renda por faixa etária a conclusão do relatório é que as psicólogas mais jovens, com menos de 30 anos, ganham menos (em média R$2.211,00) do que aquelas com mais com 30 anos ou mais (em média R$ 3.639,00), o que sugere uma valorização da experiência profissional. Outro dado muito interessante é que embora as psicólogas ganhem em média mais do que os psicólogos (R$ 3.497 versus R$ 2.676), entre aqueles ocupados com o ensino superior, o rendimento masculino corresponde a R$ 5.296,00 quase 70% maior que o feminino (R$ 3.137,00) - e bem maior também que a renda média das psicólogas. Aliás, importantíssimo apontar que embora o salário médio das psicólogas seja maior do que dos psicólogos, o valor  da hora  trabalhada pelas psicólogas é consideravelmente inferior ao dos psicólogos: a hora média das mulheres equivale a R$27,76, enquanto a dos homens a R$ 37,68, ou seja, 36% a mais. E isto indica, segundo o relatório, que "as mulheres têm um rendimento mensal superior ao dos homens por trabalharem mais horas no mês". Verifica-se, portanto, uma clara e evidente desigualdade de gênero na psicologia brasileira. 

Mas não só: os dados apontam também para uma evidente desigualdade racial quando se comparam as rendas médias das psicólogas negras e não-negras. Segundo o relatório, uma psicóloga  negra recebe em média R$2.921,00, valor que corresponde a cerca de 83% do que recebe uma não-negra (R$3.514,00). Um evidente racismo permeia a psicologia, assim como a sociedade brasileira como um todo. Finalmente, avaliando-se a renda das psicólogas por tipo de inserção no mercado de trabalho, a conclusão do estudo é que aquelas que trabalham por “conta própria” recebem valores superiores (R$3.772,00) àqueles auferidos às que trabalham como  funcionárias  públicas  estatutárias (R$3.246,00), empregadas  com  carteira (R$3.214,00) e sem carteira (R$2.452,00). Enfim, de todo este levantamento se pode depreender que o "psicólogo brasileiro" (ou melhor, a psicóloga brasileira) é predominantemente uma mulher branca que possui apenas a graduação em psicologia e que trabalha de forma autônoma em alguma cidade da região sudeste do país, recebendo cerca de R$3400,00 por mês. Uma pergunta que fica de todo este relatório - dentre muitas outras que poderiam ser feitas - é: o quanto você, psicóloga(o), se encaixa neste perfil?

Sobre as funções psicológicas dos programas de sobrevivência do Discovery Channel

Eu simplesmente adoro aqueles programas de sobrevivência do Discovery Channel - tipo o "À prova de tudo", o "Largados e pelados" ou o "Survivorman" - mas confesso que não sei bem o porque. Afinal, dificilmente eu me perderei em alguma floresta ou deserto e mesmo que isso acontecesse, dificilmente eu me lembraria das dicas de sobrevivência fornecidas pelos programas. Mas se não é para ajudar em situações reais de sobrevivência, para que servem, então, tais programas? Refletindo sobre isso, cheguei à duas respostas: 1) ver alguém passando por situações difíceis e "comendo o pão que o diabo amassou" é maravilhoso se você está confortavelmente sentado em um sofá com bastante comida às disposição. Talvez uma das funções psicológicas de programas como esses seja gerar uma enorme gratidão pela vida civilizada que levamos - uma vida sem insetos sugando o seu sangue o tempo todo, com teto e paredes para te proteger do sol e de animais selvagens, com água limpa e comida à disposição (ou melhor, comida que não foge de você e que não quer te comer). 2) uma segunda função psicológica destes programas de sobrevivência talvez seja propiciar ao sedentário telespectador uma aventura sem riscos. A vida cotidiana da maioria das pessoas não é lá cheia de muitas aventuras e grandes emoções, mas ao assistir programas como esses é como se saíssemos do comodismo e da chatice de nossas vidas e rotinas e embarcássemos em grandes aventuras pelo mundo - com uma enorme vantagem: sem sair do sofá - e sem os malditos insetos, claro.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Como assim "neuropsicanálise"?

Em um post anterior, discuti criticamente a polêmica frase do neurocientista Ivan Izquierdo de que a neurociência teria superado a psicanálise. Meu argumento, em síntese, foi de que isto nunca poderia acontecer pois se tratam de áreas muito diferentes entre si. Em outro post analisei a relação de Freud com a neurologia, concluindo que Freud de fato nunca abandonou a biologia. O que ele fez, em função de restrições técnicas e metodológicas, foi se afastar de uma perspectiva neurológica em direção a um entendimento puramente (ou majoritariamente) psíquico da mente humana. Gostaria agora de discutir a emergência da neuropsicanálise, novo campo que pretende fazer dialogar - e quem sabe até, fundir - neurociências e psicanálise. Embora não seja fácil apontar uma "data de nascimento" precisa, é possível dizer que a neuropsicanálise emergiu entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000. Um marco, nesse sentido, foi a criação da revista científica Neuropsychoanalysis, cujo primeiro número foi publicado em 1999 - e que possuía em seu conselho editorial neurocientistas célebres como Antônio Damásio, Oliver Sacks e o "prêmio Nobel" Eric Kandel assim como psicanalistas conceituados como André Green, Otto Kernberg e Charles Brenner. Pouco tempo depois, em Julho de 2000, foi realizado em Londres o I Congresso Internacional de Neuropsicanálise, ocasião em que foi fundada a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, definida pelo site oficial como uma "rede internacional de organizações sem fins lucrativos" que visa criar um diálogo entre as neurociências e a psicanálise. Também de acordo com o site, a neuropsicanálise "está interessada nas bases neurobiológicas de como agimos, pensamos e sentimos. Quando começamos a conectar a atividade do cérebro com o modelo psicanalítico da mente, mesmo nos níveis mais profundos, uma compreensão verdadeiramente dinâmica pode emergir". Então esta parece ser a ideia: conectar, unir, aproximar neurociências e psicanálise.

O grande nome da neuropsicanálise, sem dúvida alguma, é o psicanalista e neuropsicólogo sul-africano Mark Solms, primeiro presidente da referida Sociedade e autor de uma considerável obra sobre o assunto - no Brasil, três livros dele já foram traduzidos e publicados: "Da neurologia à psicanálise", "O que é Neuro-psicanálise?",  e "Estudos clínicos em neuro-psicanálise" (estes dois últimos foram escritos em parceria com sua esposa Karen Kaplan-Solms). Segundo esta reportagem da revista The atlantic, Mark  começou a se interessar pela temática cerebral após seu irmão cair do telhado aos 6 anos de idade e sofrer um traumatismo craniano. Esta experiência demonstrou para ele a importância do cérebro na constituição do que somos. Após este acidente seu irmão não foi mais o mesmo, e nem sua família. "Tudo isso porque este órgão [o cérebro] não estava funcionando como antes", afirmou. Alguns anos depois, Mark iniciou e concluiu o curso de Psicologia, fez o mestrado em Psicologia Aplicada e o doutorado em Neuropsicologia. E paralelamente ao doutorado, realizado em Londres, fez a formação em Psicanálise. Seu percurso acadêmico evidencia, assim, um desejo de estudar e entender os dois campos e também de aproximá-los. Afinal, para Solms, psicanálise e neurociência são apenas dois pontos de vista sobre um mesmo objeto: o cérebro. Só que enquanto a psicanálise olha para o cérebro de dentro para fora a neurociência olha para o cérebro de fora para dentro. A ideia de uma neuropsicanálise passaria então justamente por aproximar e integrar estes dois pontos de vista.

À uma primeira vista, esta proposta de aproximar os dois campos parece interessante e mesmo pertinente - afinal, o que haveria de errado em tentar juntar dois pontos de vista antagônicos em prol de uma visão mais ampla do cérebro e da psiquê humana? Pode até ser. No entanto, alguns questionamentos se fazem necessários: será mesmo possível aproximar ou até mesmo fundir as duas visões? Conectar psicanálise e neurociências não será uma tarefa impossível como tentar unir as perspectivas políticas de esquerda e de direita ou teologias distintas como a budista e a católica? Mas para além da questão de se tal aproximação/união é possível, a grande questão na minha opinião é como isto seria possível. Na prática (e mesmo na teoria), como funcionaria a neuropsicanálise? Mark Solms não parece ter uma resposta muito convincente para esta questão. Segundo ele, as neurociências podem contribuir com a psicanálise ao fornecer os métodos científicos de investigação que esta não possui. Com isto algumas das teorias psicanalíticas poderiam ser testadas através de experimentos realizados por neurocientistas. Como afirmou em uma entrevista, "na psicanálise o problema é que ela é subjetiva demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. Trazendo os dois juntos corrige o que há de errado nos dois campos". Cabe apontar, que para Solms não só as neurociências poderiam hipoteticamente confirmar alguns pontos da teoria psicanalítica como já o teriam feito. Segundo ele, a existência de uma "cognição inconsciente", base da teoria psicanalítica, já teria sido comprovada pela neurociência contemporânea. Será mesmo? Não creio. Na minha visão e de outros autores, o inconsciente cerebral disseminado pelas neurociências contemporâneas não é igual ao inconsciente freudiano. Em comum, essas duas noções de inconsciente possuem apenas a ideia de que existem atividades mentais ou cerebrais que funcionam sem que tenhamos consciência. No entanto, o inconsciente disseminado por Freud é, nas palavras da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, "um inconsciente psíquico, dinâmico e afetivo, organizado em diversas instâncias (o eu, o isso e o supereu)", ao passo que o inconsciente cerebral diz respeito, basicamente, aos mecanismos automáticos do funcionamento neural. Enfim, tratam-se de visões muito distintas - o que significa dizer que as neurociências não teriam como comprovar o inconsciente freudiano. Isto pra não falar do restante da teoria psicanalítica. Será mesmo que as neurociências teriam como comprovar ou refutar o Complexo de Édipo, os estágios de desenvolvimento psicossexuais, o funcionamento tripartite da mente ou ainda conceitos como recalque, catexia ou pulsão? Não creio. 

Como já disse em outro post, psicanálise e neurociências são áreas muito diferentes e possuem objetivos e métodos muito distintos. Acreditar que as neurociências teriam a capacidade de confirmar ou refutar a teoria freudiana, além de colocar muita expectativa nesta área do conhecimento, ainda estabelece uma hierarquia entre as duas áreas - a neurociência, no caso, estaria no topo e seria ela a dar a última palavra sobre a psicanálise. E é esta ideia que leva o psicanalista Jorge Forbes a dizer que "a neuropsicanálise é um cavalo de Tróia que porta um projeto reducionista no ventre". Segundo ele, ao sugerir uma hierarquia entre os dois campos, Solms estaria supervalorizando uma visão biológica e, portanto, reducionista da mente. Outro problema desta "junção ecumênica", nas palavras de Forbes, é que ela tenta unir "paradigmas incompatíveis". Dizer nesse sentido que a psicanálise tem o mesmo objeto de estudos que as neurociências - o cérebro - não é correto. Embora a mente certamente esteja ligada ao cérebro - nem mesmo Freud negava isso - o ponto de vista da psicanálise é puramente mental ou psíquico. Mesmo que o conhecimento neurológico tenha sido importante em um período inicial da carreira de Freud, a psicanálise acabou por trilhar um caminho distinto e distante das ciências do cérebro - segundo Forbes, este "corte epistemológico" foi concretizado com a publicação do livro Interpretação dos sonhos, em 1900. E tudo isto significa que tentar juntar as duas áreas seria um desafio fadado ao fracasso - seguindo a ideia de "junção ecumênica", seria como tentar fundir ou integrar duas religiões muito diferentes entre si. Um meio termo, diferente da pretensão de juntar os dois conhecimentos, seria "simplesmente" colocar neurociências e psicanálise para dialogar. As pesquisadoras Monah Winograd e Nathalia Sisson defendem, nesse sentido, que "para garantir a possibilidade e a integridade de uma cooperação entre as duas áreas, deve-se, antes de qualquer outro passo, definir uma relação de respeito mútuo entre a psicanálise e as neurociências". A grande questão é que para concretizar este objetivo de cooperação não seria necessário criar uma nova área de conhecimento. Se a proposta é o diálogo e não a fusão porque propor, então, algo como uma neuropsicanálise? Acho que isso nem Freud explica.

Sugestões de leitura: