segunda-feira, 16 de março de 2020

Quanto mais nos expomos, tanto mais nos escondemos: breves reflexões sobre a série Você

Antes de assistir à primeira temporada da fantástica série Você, lançada em 2019 pela Netflix, li algumas análises dizendo que a série retratava um psicopata que perseguia uma mulher, mas esta, na minha visão, não é uma boa descrição da série. Isto porque o protagonista, Joe, não é propriamente um psicopata. Ele mata pessoas, sim, mas é um sujeito com sentimentos e empatia - basta observar a relação quase paternal dele com o garoto Paco, seu vizinho. Joe está mais para um "stalker" - ou "perseguidor", em português. Mas essa expressão ainda não capta a complexidade deste genial personagem. Joe é, e se vê, como um protetor, isto é, como alguém capaz de fazer coisas ruins para proteger as pessoas que ama - em especial Beck, outra personagem fascinante. Joe é completamente obcecado por Beck e seu amor (se é que é possível chamar assim) é tão imenso quanto sua vontade de protegê-la. A série problematiza, nesse sentido, a por vezes sutil diferença entre o amor e a obsessão e entre o cuidado, o controle e o cerceamento. Uma outra reflexão que fiz a partir da série "Você" - em especial sobre a primeira temporada - diz respeito à nossa exposição nas redes sociais. Bem no começo da série Joe conhece Beck, se encanta por ela, e passa a tentar compreendê-la. Para tanto ele acessa todas as suas redes sociais e acaba por descobrir inúmeros fatos sobre sua vida: onde ela nasceu, onde estudou, quem são seus pais, que livros ela gosta, etc - e com isso a série me fez pensar sobre o quanto estamos potencialmente expostos à pessoas mal intencionadas ao compartilharmos determinados fatos e acontecimentos de nossa vida. No entanto, para compreender "quem é Beck" tais informações, por mais numerosas que sejam, não são suficientes. E o motivo é que nas redes sociais escolhemos muito bem o que compartilhamos, isto é, o que expomos de nós mesmos e de nossas vidas - em geral deixamos que os outros vejam apenas nossas partes belas e nobres (ou simulações disso). E isto significa que toda esta exposição nas redes sociais ao mesmo tempo em que mostra, oculta. Quanto mais nos expomos, tanto mais nos escondemos - eis um paradoxo contemporâneo. Observando somente o que determinada pessoa posta nas redes sociais não é possível compreender, em profundidade, quem ela é. E é exatamente por isso que Joe passa a observar (ou melhor, espionar) Beck na vida real, não apenas na vida virtual. E mesmo assim, só observando à distância, ainda não é possível compreender quem é a pessoa. Aliás, essa pergunta "Quem é tal pessoa", me parece de certa forma irrespondível. As pessoas são tão complexas, tão contraditórias e ambíguas, que nem elas próprias tem a capacidade de se entenderem completamente. Somos e seremos sempre enigmas, independente do que e do quanto nos expomos nas redes sociais. 

domingo, 15 de março de 2020

A testosterona é amplamente, às vezes terrivelmente, mal compreendida

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Testosterone is widely, and sometimes wildly, misunderstood, publicado no site AEON no dia 10 de Março de 2020 pelo professor de antropologia da Brown University Matthew Gutmann, que é autor de vários livros, dentre eles Are Men Animals? How Modern Masculinity Sells Men Short (2019). Uma observação sobre o título original do artigo é que ele faz um jogo de palavras, impossível se ser captado na tradução, com as expressões "widely" (amplamente, consideravelmente) e "wildly" (extremamente, violentamente), cujas pronúncias são semelhantes.

Nós damos um crédito injustificado às explicações biológicas do comportamento masculino. Em nenhum caso isso é mais verdadeiro do que com a testosterona. Especialistas contemporâneos invocam o hormônio, apelidado de 'T', para provar ideias sobre a masculinidade e a virilidade, para mostrar como são diferentes homens e mulheres e também para explicar por que alguns homens (presumivelmente aqueles com mais T) têm maior libido. No entanto, apesar das propriedades míticas popularmente associadas ao T, em todos os rigorosos estudos científicos realizados até o momento não há correlação significativa, em homens saudáveis, ​​entre os níveis de T e o desejo sexual.

Começando na década de 1990 e ganhando força nos anos 2000, as vendas de terapias de reposição de testosterona (testosterone replacement therapies - TRTs) passaram [a lucrar] de praticamente zero a mais de 5 bilhões de dólares por ano  em 2018. Isso ocorreu porque houve um surto repentino de 'Baixo T', momento em que uma grande epidemia médica foi finalmente reconhecida - ou porque o T tornou-se comercializado como uma droga milagrosa para os homens que entraram em pânico quando descobriram que seus níveis de T diminuíam 1% ao ano após atingirem 30 anos. 

A resposta não é que o corpo dos homens mudou ou que a baixa de T foi terrivelmente subdiagnosticada antes, mas que, na mente de muitos, ela se tornou nada menos que uma molécula masculina mágica que poderia curar homens com declínio de energia e desejo sexual à medida que envelheciam.

Além do mais, muitos foram instruídos a acreditar que, se você quer saber o que faz com que alguns homens sejam agressivos, basta testar seus níveis de T, certo? Na verdade, errado: a ciência também não apoia esta conclusão. Alguns dos famosos estudos iniciais que ligavam T à agressão foram realizados com populações carcerárias e foram usados ​​efetivamente para 'provar' que níveis mais altos de T eram encontrados em alguns homens (leia-se: homens de pele mais escura), o que explicava por que eles eram mais violentos e por que tinham de ser presos de uma forma desproporcional. As falhas metodológicas nesses estudos levaram décadas para serem esclarecidas, e novas pesquisas rigorosas, que mostram uma reduzida relação entre T e agressão (exceto em níveis muito altos ou muito baixos), tem somente agora chegado ao público geral.

Além do mais, entende-se atualmente que o T não é apenas uma coisa (um hormônio sexual) com um objetivo (reprodução masculina). O T também é essencial para o desenvolvimento de embriões, músculos, cérebros femininos e masculinos e glóbulos vermelhos. A depender de uma série de fatores biológicos, ambientais e sociais, sua influência é variada - ou insignificante.

Robert Sapolsky, um neurocientista da Universidade de Stanford, na Califórnia, compilou uma tabela mostrando que havia apenas 24 artigos científicos sobre a relação entre T e agressão entre 1970 e 1980, e mais de 1.000 somente na década de 2010. Isto significa que foram feitas novas descobertas sobre a relação entre agressão e T? Na verdade não, embora tenha surgido nesse período novas descobertas mostrando a importância do T no estímulo à ovulação em mulheres. Há que se atentar também para a diferença entre correlação e causa (a relação entre níveis de T e agressão, por exemplo, proporciona um desafio clássico do tipo "ovo ou galinha"). Como os principais especialistas em hormônios nos mostram há anos, para a grande maioria dos homens, é impossível prever quem será ou não agressivo com base no nível de T, assim como se você encontrar um homem (ou uma mulher) agressivo(a), não pode prever seu nível de T.

A testosterona é uma molécula que foi incorretamente rotulada,  há quase 100 anos, como um 'hormônio sexual', porque (algumas coisas nunca mudam) os cientistas procuravam diferenças biológicas definitivas entre homens e mulheres, e o T deveria desvendar os mistérios da masculinidade inata. E de fato o T é importante os cérebros, biceps e testículos dos homens mas também é essencial para os corpos femininos. E, para constar, a dimensão nos níveis de T não significa necessariamente nada: às vezes, a mera presença de T é mais importante que a quantidade do hormônio. É mais ou menos como ligar um carro: você só precisa de combustível, sejam dois galões ou 200. Além disso o T nem sempre cria diferenças entre homens e mulheres, ou mesmo entre homens. Acrescente-se à tudo isso que ainda existem evidências de que os homens que relatam alterações após tomar suplementos de T estão relatando apenas efeitos placebos mais do que qualquer outra coisa.

Ainda assim, continuamos atribuindo ao T poderes sobrenaturais. Em 2018, uma vaga para a Suprema Corte dos EUA acabou suscitando discussões sobre isso. As questões nas audiências de confirmação [de um indicado à Suprema Corte] se focaram na violência sexual masculina contra as mulheres. Descrições e análises minuciosas foram necessárias. Analistas prós e contras eventualmente se utilizaram da testosterona para descrever, denunciar ou defender o comportamento passado do juiz Brett Kavanaugh [saiba mais sobre esse caso clicando aqui]: um comentarista da Forbes escreveu sobre 'estupros grupais induzidas por testosterona'; outro, entrevistado na CNN, perguntou: 'Mas estamos falando de um garoto de 17 anos no ensino médio com testosterona à flor da pele. Diga-me, que garoto não fez isso na escola?'; e um terceiro, em uma coluna do The New York Times escreveu: "Ele estava surfando em uma onda da testosterona e bebida..." [that's him riding a wave of testosterone and booze]

E é improvável que muitos leitores tenham questionado a "lógica hormonal" de Christine Lagarde, então presidente do Fundo Monetário Internacional, quando ela afirmou que o colapso econômico de 2008 se deveu em parte ao fato de muitos homens serem responsáveis ​​pelo setor financeiro: 'Eu sinceramente penso que nunca deveria haver tanta testosterona em uma sala'.

Você pode encontrar o T sendo utilizado como biomarcador para explicar (e às vezes desculpar) o comportamento masculino em artigos e discursos todos os dias. Licença poética, pode-se dizer. Ou apenas uma maneira curta e grossa de dizer que os machos devem permanecer no comando. No entanto, quando elevamos o T a algo significativo para explicar o comportamento masculino, podemos inadvertidamente desculpar o comportamento masculino como se este estivesse além da capacidade de controle dos homens reais. Apelos à masculinidade biológica implicam que os relacionamentos patriarcais estão enraizados na natureza.

Quando normalizamos a ideia de que o T está presente em todos os garotos do ensino médio e que isso explica por que o estupro ocorre, nós abandonamos um eufemismo e passamos a oferecer aos homens a impunidade de agredir sexualmente as mulheres, oferecendo-lhes uma defesa do tipo 'eu não sou culpado, a culpa é dos hormônios'.

Invocar a biologia dos homens para explicar seus comportamentos muitas vezes acaba por absolvê-los de suas ações. Quando utilizamos termos como T ou cromossomos Y, isso ajuda a disseminar a ideia de que os homens são controlados por seus corpos. Pensar que hormônios e genes podem explicar por que os meninos agem como meninos liberta os homens de todos os tipos de pecados. Se você acredita que a testosterona diz algo significativo sobre como os homens agem e pensam, você está enganando a si mesmo. Os homens se comportam da maneira que fazem porque a cultura permite, não porque a biologia exige.


Ninguém poderia argumentar seriamente que a biologia é a única responsável por determinar o que significa ser homem. Mas palavras como testosterona e cromossomos Y se encaixam em nossas descrições das atividades dos homens, como se elas explicassem mais do que realmente explicam. A testosterona não governa a agressividade e a sexualidade dos homens. E é uma pena que não ouvimos muito falar sobre pesquisas que mostram que níveis mais altos de T nos homens se correlacionam tanto com a generosidade quanto com a agressividade. Mas a generosidade é uma virtude  masculina menos estereotipada, e isso estragaria toda a narrativa sobre a agressividade inerente dos homens, especialmente sobre a viril agressividade dos homens. E isso tem um profundo impacto sobre o que homens e mulheres pensam sobre as inclinações naturais dos homens.

Nós precisamos continuar falando sobre masculinidade tóxica e patriarcado porque são fenômenos reais e perniciosos. E também precisamos de novas maneiras de falar sobre homens, masculinidade e virilidade que nos permitam escapar da armadilha de pensar que a biologia dos homens é o seu destino. De fato, quando eliminamos os efeitos placebo e todo o blábláblá biológico [biobabble], o T não é uma molécula masculina mágica, e sim - como argumentam as pesquisadoras Rebecca Jordan-Young e Katrina Karkazis no livro Testosterone (2019) - uma molécula social.

Independentemente de como você a compreende, a testosterona é freqüentemente usada como desculpa para perimitir que os homens se safem e para justificar o privilégio masculino.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sex education e a importância da psicoterapia

Assisti a primeira temporada da série Sex education, produzida pela Netflix, e gostei muito. Para além dos dramas e romances adolescentes, já extensamente retratados em outras produções, a série foca sua atenção na questão sexual - e o faz com uma naturalidade e uma honestidade impressionantes. Para quem não assistiu ainda, Sex education tem como protagonista o jovem Otis, cuja mãe é uma experiente terapeuta sexual, e que passa a atuar em sua escola, ele próprio, como uma espécie de terapeuta sexual amador. A questão é que Otis tem uma série de dificuldades na esfera sexual - ele não consegue se masturbar, por exemplo - mas apesar ou em decorrência de seus problemas ou limites pessoais, ele consegue, de fato, ajudar seus colegas com suas dificuldades sexuais e amorosas. Enquanto psicólogo, percebo que a série ilustra muitíssimo bem o peso das palavras (ditas e ouvidas), e, de uma forma mais específica, a importância da terapia. Muito embora o que Otis faça não seja propriamente uma terapia - está mais um processo de orientação - todos os principais elementos de uma psicoterapia estão presentes em seus atendimentos: uma escuta atenta, uma abordagem empática, a busca por soluções e orientações personalizadas, etc. Da mesma forma, a série expõe a importância de tais atendimentos para as pessoas que passam por dificuldades - e que vivenciam e tentam lidar com seus problemas muitas vezes sozinhas, especialmente no que diz respeito à sexualidade - e também o peso e a importância que as palavras do terapeuta tem na vida das pessoas que são por ele atendidas. Suas palavras não apenas confortam mas também ajudam as pessoas a tomarem decisões e mudarem os rumos da própria vida. "As palavras importam", a série parece dizer todo o tempo. Enfim, para além de trazer à tona toda a complexidade da vida afetiva e sexual das pessoas, não apenas dos adolescentes, e ainda tratar de temas difíceis como o aborto com grande naturalidade e honestidade, a série ainda acaba por se constituir, sem que talvez pretenda, como uma obra em defesa da psicoterapia - ou, mais amplamente, da escuta e da empatia- para o crescimento das pessoas, seja na esfera sexual seja em outras esferas da vida.

A atração pela pesquisa cerebral está sufocando a psicoterapia

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The lure of ‘cool’ brain research is stifling psychotherapy, publicado no site AEON no dia 04 de Março de 2020 pelo famoso psiquiatra Allen Frances, professor da Duke University School of Medicine in North Carolina e que foi presidente da força-tarefa que elaborou o DSM-IV. Allen é autor de diversos livros, dentre eles Fundamentos do diagnóstico psiquiátrico e Voltando ao normal, ambos já publicados no Brasil.

"Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e errada" 
HL Mencken no livro Prejudices (1920)

Nunca houve um problema mais complexo para a humanidade do que entender nossa própria natureza. E não faltam respostas simples, elegantes e erradas alegando examinar essa questão.

Tendo tratado milhares de pacientes psiquiátricos em minha carreira, e trabalhado nos esforços da American Psychiatric Association (APA) para classificar os sintomas psiquiátricos (publicados como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou DSM-IV e DSM-5), posso afirmar com confiança que não há respostas simples na psiquiatria. O melhor que podemos fazer é adotar um modelo quadridimensional ecumênico que inclua todos as possíveis contribuições para o funcionamento humano: o biológico, o psicológico, o social e o espiritual. Reduzir as pessoas a apenas um elemento - seu funcionamento cerebral, suas tendências psicológicas, seu contexto social ou sua luta por significado - resulta em uma imagem distorcida e rasa que deixa de fora mais do que consegue capturar.

O Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) foi criado em 1949 pelo governo federal dos Estados Unidos com o objetivo prático de fornecer 'uma análise nacional, objetiva e detalhada, dos problemas humanos e econômicos relacionados à saúde mental'. Até 30 anos atrás, o NIMH valorizava a necessidade dessa abordagem abrangente e mantinha um orçamento de pesquisa equilibrado que cobria uma gama extraordinariamente ampla de tópicos e técnicas.

Mas em 1990, o NIMH mudou anos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.repentinamente e radicalmente de curso, embarcando naquilo que foi chamado de "Década do Cérebro". Desde então, o NIMH tem cada vez mais estreitado seu foco, se dedicando quase exclusivamente à biologia cerebral - e deixando de fora tudo o que nos torna humanos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.

Esse reducionismo equivocado teve início com a disponibilidade de ferramentas de pesquisa espetaculares (por exemplo, o Projeto Genoma Humano, a ressonância magnética funcional, a biologia molecular e o aprendizado da máquina [machine learning]) combinadas com a ingênua crença de que a biologia cerebral poderia explicar todos os aspectos do funcionamento mental. Os resultados foram uma gigantesca aventura intelectual mas um colossal fracasso clínico. Abrimos uma fantástica janela para o funcionamento dos genes e do cérebro, mas que pouco ajudou na prática clínica.

Quanto mais aprendemos sobre genética e cérebro, mais incrivelmente complicados ambos se revelam. Depois de três décadas e mais de 50 bilhões investidos, nós não colhemos os frutos de tais pesquisas simplesmente porque não há frutos a serem colhidos. O cérebro humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios, cada um se comunicando com milhares de outros através de centenas de moduladores químicos, levando a trilhões de potenciais conexões. Não é de se admirar que ele revele seus segredos apenas muito gradualmente e de maneira fragmentada.

A genética oferece a mesma desconcertante complexidade. Por exemplo, variações em mais de 100 genes contribuem para a vulnerabilidade à esquizofrenia, com cada gene contribuindo apenas um pouquinho, e interagindo das maneiras mais incrivelmente complicadas com outros genes e também com o ambiente físico e social. De forma ainda mais desanimadora, os mesmos genes geralmente estão implicados na vulnerabilidade a vários transtornos mentais - eliminando qualquer esforço para estabelecer uma especificidade. As permutações quase intermináveis ​​derrotarão qualquer resposta genética fácil, não importa quantas décadas e bilhões sejam investidos.

O NIMH se enquadrou em um portfólio de pesquisa bastante desequilibrado. Entreter-se com os divertidos "brinquedos"  da pesquisa genética e cerebral tem infelizmente superado a tarefa muito mais difícil e menos intelectualmente gratificante de ajudar pessoas reais.

Agora contraponha este fracassso atual do NIMH com a gradiosa história de sucesso desta instituição. Um dos pontos altos da minha carreira foi fazer parte de um comitê do NIMH, que fundou os estudos sobre psicoterapia nos anos 80. Ajudamos a apoiar a pesquisa da psicóloga americana Marsha Linehan que a levou a desenvolver a terapia comportamental dialética; contribuimos para o desenvolvimento da terapia cognitiva concebida pelo psiquiatra norte-americano Aaron T. Beck; além de apoiar muitos outros pesquisadores e temas. Estudos subsequentes estabeleceram que a psicoterapia é tão eficaz quanto os medicamentos para depressão leve a moderada, ansiedade e outros problemas psiquiátricos e ainda evita o ônus dos efeitos colaterais e das complicações dos medicamentos. Milhares de pessoas em todo o mundo foram beneciciadas pelas pesquisas sobre psicoterapia realizadas pelo NIMH.

Em um mundo racional, o NIMH continuaria a direcionar um orçamento robusto para a pesquisa sobre psicoterapia e promoveria seu uso como uma iniciativa de saúde pública para reduzir a atual superprescrição de medicamentos psiquiátricos nos EUA. A psicoterapia breve seria o tratamento de primeira linha para maioria dos problemas psiquiátricos que requerem intervenção. Os tratamentos com medicamentos seriam reservados para problemas psiquiátricos graves e para aquelas pessoas que não responderam suficientemente à observação assistida ou à psicoterapia.

Infelizmente, não vivemos em um mundo racional. As empresas farmacêuticas gastam centenas de milhões de dólares todos os anos influenciando políticos, fazendo propaganda enganosa para médicos e promovendo tratamentos farmacêuticos para o público. Eles venderam com sucesso a falsa ideia de que todos os sintomas emocionais se devem a um "desequilíbrio químico" no cérebro e, portanto, exigem uma solução medicamentosa. O resultado: 20% dos cidadãos norte-americanos usam medicamentos psicotrópicos, a maioria dos quais não passa de placebos caros e que  podem resultar em danosos efeitos colaterais.

As empresas farmacêuticas são um Golias comercial com enorme poder político e econômico. A psicoterapia é um pequenino David, sem orçamento para marketing; nenhum vendedor assediando os consultórios médicos; nenhum anúncio de TV; sem pop-ups na internet; nenhuma influência com políticos ou companhias de seguro. Não surpreende, portanto, que a negligência do NIMH na pesquisa sobre psicoterapia tenha sido acompanhada por sua negligência na prática clínica. E o apoio do NIMH ao reducionismo biológico fornece uma legitimação involuntária e injustificada para a alegação das empresas farmacêuticas de que existe uma pílula para cada problema humano.

Um orçamento equilibrado do NIMH ajudaria bastante a corrigir as duas maiores catástrofes da saúde mental na atualidade. Estudos comparando psicoterapia versus medicação para uma ampla variedade de transtornos mentais leves a moderados ajudariam a equilibrar o jogo para os duas modalidades de tratamento e, eventualmente, reduziriam nossa enorme dependência de tratamentos medicamentosos para “desequilíbrios químicos” inexistentes. A pesquisa sobre serviços de saúde é urgentemente necessária para determinar as melhores práticas para ajudar as pessoas com doenças mentais graves a evitar e superar o encarceramento e o desabrigamento [homelessness].

O NIMH tem o direito de manter o olho no futuro, mas não à custa das necessidades desesperadas do presente. A pesquisa cerebral deve continuar sendo uma parte importante de uma agenda equilibrada do NIMH, mas não sua única preocupação. Após 30 anos percorrendo um beco sem saída bio-reducionista, já passou da hora do NIMH considerar um retomada biopsicossocial e reequilibrar seu portfólio de pesquisa bastante desigual .