quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Ginástica cerebral funciona? Não há evidências, dizem cientistas.

Tem se multiplicado pelo Brasil e pelo mundo programas e serviços de "ginástica cerebral" que prometem não somente o "aprimoramento" do cérebro mas também a prevenção (e mesmo o abrandamento) de problemas cognitivos na terceira idade. No Brasil, podemos encontrar diversos programas presenciais e virtuais, como o Supera, o Cérebro Melhor (que recentemente foi comprado pelo Supera), além de inúmeras outras "academias cerebrais". Na verdade, uma indústria multimilionária voltada para o aprimoramento cerebral tem crescido absurdamente em todo o mundo - e nos últimos anos tal indústria tem se espalhado, como um vírus, também pelo Brasil (somente a rede Supera possui mais de 100 unidades/franquias em todo o país). E todas estas empresas alegam, supostamente embasadas em dados científicos - afinal, nada mais convincente hoje em dia que dizer que "estudos apontam" ou "pesquisas indicam" -, que o treinamento do cérebro, seja através de jogos de computador ou atividades como a utilização do ábaco (caso do Método Supera), fortalecem as estruturas cerebrais e previnem o declínio cognitivo. Esta é a promessa - chancelada muitas vezes por neurocientistas de renome -, mas será verdade que exercícios de "ginástica cerebral" potencializam o cérebro e evitam o "declínio" cognitivo?

Não é o que sugere uma série de estudos, além de um consenso assinado por inúmeros especialistas. Em um comunicado divulgado em Outubro deste ano pelo Centro de Longevidade da Universidade de Stanford juntamente com o Instituto para o Desenvolvimento Humano do Instituto Max Planck de Berlim e assinado por dezenas de importantes psicólogos cognitivos e neurocientistas de todo o mundo, os pesquisadores afirmaram que não há nenhuma evidência científica sólida de apoio a essa promessa. De acordo com o comunicado, a literatura científica disponível não corrobora a ideia de que jogos e atividades voltados para o treinamento cerebral de fato melhoram o desempenho cognitivo geral ou impedem o declínio cognitivo. Jogar determinado jogo ou fazer determinada atividade certamente podem torná-lo, com o tempo, melhor na execução de tal jogo ou atividade específica. Isto não significa, contudo, que tais jogos ou atividades contribuem para a melhoria geral da inteligência, da memória ou da atenção - e muito menos que têm a capacidade de prevenir agravos cognitivos decorrentes do processo de envelhecimento. Em suma: pessoas que praticam determinada tarefa, ficam melhores nessa tarefa, e talvez em tarefas muito semelhantes, mas não em outras tarefas. Como ilustrou esta reportagem da revista Salon, se você jogar repetidamente um determinado jogo de videogame, você, com o tempo, se tornará expert neste jogo específico e talvez tenha mais facilidade em jogos semelhantes, mas dificilmente se tornará melhor em tarefas "do mundo real" como fazer o seu trabalho, dirigir o carro ou memorizar determinado conteúdo. Tudo isto significa que um aprendizado específico grande parte das vezes não se generaliza para a cognição como um todo.

Os pesquisadores concluem o documento afirmando: "Opomo-nos à alegação de que jogos cerebrais oferecem aos consumidores um caminho cientificamente fundamentado para reduzir ou reverter o declínio cognitivo quando não há evidência científica convincente até agora de que eles o fazem. A promessa de uma solução mágica vai na contramão da melhor evidência até o momento, que é de a que saúde cognitiva na velhice reflete os efeitos a longo prazo de estilos de vida saudáveis. No julgamento dos signatários [deste consenso], alegações exageradas e enganosas exploram as ansiedades de adultos mais velhos sobre o declínio cognitivo iminente. Encorajamos a contínua e cautelosa investigação e validação nesse campo". 

Isto significa então que devemos deixar de lado todos estes exercícios cerebrais e simplesmente esperar o "inevitável" declínio cognitivo? De forma alguma. Em primeiro lugar, dizer que não existem evidências científicas de que jogos cerebrais funcionam, não significa que eles não podem ou não devem ser utilizados. Não! Significa que devemos depositar menos expectativas neles e olhá-los de forma mais crítica, tentando enxergar para além das estratégias de marketing e buscando considerá-los mais como atividades de lazer (que podem ser ótimas fontes de interação e diversão) do que propriamente atividades preventivas ou de aprimoramento cognitivo. Além disso, mesmo sem comprovação científica, tais atividades podem fazer muito bem (para o individuo como um todo, não somente para seu cérebro) e trazer resultados reais para algumas pessoas - a ciência, afinal, lida com dados populacionais e não com casos particulares. É importante ter em vista também que todas as experiências que passamos na vida são, de certa forma, "exercícios" para o cérebro, na medida em que modificam as conexões neurais - a noção de neuroplasticidade, tão em voga atualmente, aponta justamente nessa direção. Finalmente, os cientistas signatários do comunicado apontam para uma estratégia muito mais efetiva e embasada em dados científicos para "exercitar" o seu cérebro: a atividade física. Como aponta o comunicado, inúmeros estudos evidenciam que o exercício aeróbico aumenta o fluxo sanguíneo no cérebro, e ajuda na formação de novas conexões neurais e vasculares, podendo promover, desta forma, significativas melhoras na atenção, no raciocínio e também na memória. Portando, entre gastar seu tempo (e dinheiro) fazendo palavras cruzadas, jogos de memória ou ábaco e fazer exercício físicos, o caminho mais sensato (e mais embasado cientificamente) é o segundo. Ao exercitar o seu corpo, seu cérebro, que é parte integrante do seu corpo, também estará sendo "exercitado". 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O livro definitivo sobre a ansiedade

Acabei de ler o livro Meus tempos de ansiedade: medo, esperança, terror e a busca da paz de espírito, escrito pelo jornalista Scott Stossel e recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Que livro fantástico! Não gosto muito da ideia de "filme definitivo" ou "livro definitivo" porque nada nesse mundo é definitivo e também porque nenhum livro ou filme jamais poderia dar conta, totalmente, de determinado tema, mas não poderia pensar em algo melhor para dizer sobre essa obra magnífica. Concordo, nesse sentido, com Andrew Solomon, que afirmou: "Scott Stossel escreveu o relato definitivo sobre a ansiedade, unindo ciência, história e autobiografia" (Solomon, por sua vez, escreveu o "livro definitivo" sobre a depressão, o belo, erudito e já clássico Demônio do meio-dia). Realmente: o livro de Stossel condensa de forma soberba, em um calhamaço de mais de 500 páginas, um relato pessoal extremamente - e às vezes constrangedoramente - sincero (terminamos o livro nos sentindo amigos íntimos de Scott), uma investigação cuidadosa e crítica do estado da arte da "ciência da ansiedade" (Stossel, no entanto, não cai na tentação de achar que a ciência sozinha daria conta de explicar esta questão) e ainda uma narrativa histórica bastante ampla e embasada sobre o tema (só de bibliografia o livro tem quase 30 páginas!). E tudo isso sem cair em nenhuma forma de reducionismo, seja biológico, psicológico ou sociológico. Para o autor nenhum olhar isoladamente é capaz de dar conta sozinho deste complexo fenômeno. Pelo contrário, todos os olhares podem contribuir para o entendimento (e mesmo para o "enfrentamento") da ansiedade, que é compreendida por Stossel como reflexo ao mesmo tempo de uma biologia, herdada de nossos ancestrais e entranhada em nosso sistema nervoso, de uma psicologia, construida em nossa relação com os outros e com nós mesmos e de uma cultura, na qual estamos impreterivelmente imersos.

O livro tem início com o relato de um terrível ataque de ansiedade/ pânico que Stossel teve durante seu casamento e daí em diante o autor tenta entender tanto a própria ansiedade quanto o "fenômeno" da ansiedade de uma forma geral. Na primeira parte do livro, denominada "O enigma da ansiedade", Stossel tenta responder a pergunta "do que falamos quando falamos de ansiedade?". Para tanto, o autor busca e apresenta diversas definições feitas no decorrer da história, entremeando-as com relatos de suas próprias experiências de ansiedade. E haja ansiedade! Eu atendo cotidianamente muitas pessoas ansiosas - não seria equivocado dizer que trata-se da principal queixa que chega em meu consultório - mas poucas vezes, talvez nunca, atendi casos tão graves como o de Stossel. O jornalista é um sujeito sem dúvida alguma, patologicamente ansioso e em vários aspectos. Tem uma fobia de viajar de avião extremamente elevada e persistente (as descrições do pânico que ele experiencia quando voa são angustiantes), fica extremamente nervoso em exposições públicas ou em quaisquer situações em que ele seja o centro das atenções, tem ataques de pânico frequentes e incapacitantes e ainda possui uma fobia que eu nunca tinha ouvido falar, a "emetofobia", que é o o medo excessivo ou irracional de vomitar. Esta fobia, de certa forma, moldou a vida de Scott e se relaciona com grande parte de suas demais ansiedades - por exemplo, ele tem medo de se apresentar em público especialmente porque tem medo de vomitar diante das pessoas (embora tenha vomitado, efetivamente, pouquissimas vezes). Em suma, Stossel tem total "autoridade" para falar sobre ansiedade, haja vista sua longa e dolorosa vivência. Mas não se trata simplesmente, volto a repetir, de um relato de um sujeito ansioso, mas de uma profunda análise do que é a ansiedade.

E é neste sentido que, ainda na primeira parte do livro, Stossel tenta definir este fenômeno, recorrendo para isso a textos de filósofos, psicólogos, psiquiatras e neurocientistas. Obviamente, como em qualquer outro tema, não há consenso. Exatamente por isso o autor se propõe a apresentar e debater diversas controvérsias relacionadas ao tema da ansiedade. Eis algumas delas: seria a ansiedade algo "natural", que acompanha o ser humano desde sempre, ou algo "produzido" pela civilização moderna? Neste sentido, poderíamos dizer que a ansiedade é tipicamente humana ou também os animais podem ser ansiosos? Outra controvérsia bastante debatida pela autor, é se a ansiedade é (ou em que medida é) algo patológico. Com relação à esta questão o autor traça um percurso de como a ansiedade (ou o seu "excesso") passou, a partir de determinado momento, a ser considerada uma patologia. Segundo Stossel, a partir do DSM-III, publicado em 1980, surge a categoria diagnóstica "transtorno de ansiedade", que não constava nas edições anteriores da "Bíblia da psiquiatria". Anteriormente, o que hoje chamamos de ansiedade ou de transtorno de ansiedade foi chamado por muitos outros nomes. Na verdade isto é de certa forma equivocado de afirmar, pois não dá para dizer que o que no final do século XIX os médicos chamavam de "neurastenia" é o mesmo que o que hoje chamamos de "transtorno de ansiedade". Muito embora alguns dos sintomas descritos sejam comuns, trata-se de categorias diagnósticas muito distintas (e é exatamente por esse motivo que sempre acho equivocado diagnosticar pessoas do passado com categorias do presente, como por exemplo, ao afirmarmos que Platão ou Darwin eram bipolares).

Outra controvérsia debatida por Stossel - que muito me interessa - diz respeito à afirmação de alguns neurocientistas de que as modernas tecnologias de neuroimagem, como a ressonância magnética e a tomografia magnética, poderiam ajudar na diferenciação entre ansiedade normal e ansiedade patológica (da mesma forma que uma radiografia ajuda na distinção entre uma fratura de tornozelo e uma torção). Segundo o autor, tal afirmação não se sustenta. E o motivo é relativamente simples. Como aponta Stossel, algumas pessoas, diante de estímulos indutores de estresse, exibem sinais fisiológicos indicadores de ansiedade (por exemplo, as amigdalas ficam mais ativadas) mas afirmam que não estão se sentindo ansiosas. E é neste sentido que o autor afirma: "Quando uma radiografia mostra um fêmur fraturado e o paciente não relata dor, o diagnóstico médico ainda é de fratura de fêmur. Quando uma tomografia mostra intensa atividade nas amigdalas e nos gânglios basais, mas o paciente não relata ansiedade, o diagnóstico é... nenhum". Isto só confirma o que eu já disse em outro momento: que a Psiquiatria (e, evidentemente, a Psicologia) nunca poderá prescindir ou abrir mão da subjetividade. Posso estar enganado, mas acredito que nenhum exame objetivo (seja de cérebro ou de sangue) jamais substituirá uma avaliação clínica bem feita. Isto significa também que a ansiedade (ou a tristeza ou a raiva) não é simplesmente um "problema" cerebral, mas algo que afeta e é afetado pela pessoa como um todo em sua relação com o mundo.

Já na terceira parte, que considero a mais interessante, Stossel analisa a relação entre medicações e ansiedade. Embora ele próprio tenha tomado e ainda tome uma grande quantidade de remédios psiquiátricos na tentativa de controlar sua ansiedade, Stossel critica a visão de que a ansiedade é um "problema" neurológico que deve ser tratado exclusivamente com medicações. Como questiona em determinado momento, 

"Por acaso minha ansiedade pode mesmo resumir-se à eficácia com que meus canais de íons cloretos funcionam ou à velocidade dos disparos neuronais em minha amigdala? Bem, sim, num certo nível, pode. Os índices de disparo na amigdala correlacionam-se de forma bastante direta com a sensação de ansiedade. Entretando, dizer que minha ansiedade seja redutível aos íons em minha amigdala é tão limitador quanto dizer que minha personalidade ou minha alma é redutível às moléculas que constituem meu cérebro ou aos genes que levaram a elas".

Da mesma forma, o autor tece fortes e contundentes críticas à atuação da indústria farmacêutica na construção da teoria do desequilibrio quimico, que apregoa que os transtornos mentais seriam causados por um "desequilibrio quimico" no cérebro das pessoas - especialmente no nível de seus neurotransmissores. Nesse sentido, Stossel analisa em detalhes a construção do diagnóstico de Transtorno do Pânico, que, segundo o autor, "foi a primeira doença psiquiátrica cuja criação teve como fator determinante a reação a um fármaco: a imipramina cura o pânico; por conseguinte o transtorno do pânico tem que existir". Outros transtornos psiquiátricos, como o Transtorno de Ansiedade Social e o ainda controverso Transtorno de Ansiedade generalizada, teriam sido criados da mesma forma. 

Ao mesmo tempo, Stossel não condena ou descarta totalmente o uso de medicações. Sua posição, nesta e em outras polêmicas, é bastante moderada e conciliadora. Como aponta em determinado momento,

"Os medicamentos, como muitos estudos indicam, podem funcionar - em parte do tempo, com algumas pessoas, às vezes com horríveis efeitos colaterais, sintomas de abstinência terríveis e problemas de dependência. E na verdade não sabemos que danos a longo prazo estão causando em nosso cérebro. E, de fato, as empresas farmacêuticas e as seguradoras ampliaram ou distorceram de maneira artificial as categorias de diagnóstico. Mas posso garantir, com minha autoridade pessoal, conquistada a duras penas, que há aqui um sofrimento emocional legítimo, que pode ser muito incapacitante, suscetível de alívio proporcionado por esses fármacos, às vezes só um pouco, às vezes de maneira profunda"

Em outro momento, de forma ainda mais contundente, afirma (e eu concordo 100% com ele): 

"Os fármacos psiquiátricos funcionam - para algumas pessoas, em certas situações, às vezes. Seria cruel negar aos esquizofrênicos a remissão química de delírios psicóticos, ou ao paciente bipolar o alívio farmacológico de suas manias perigosas ou de suas depressões avassaladoras - ou impedir que a pessoa destruída pelo pânico e aprisionada em sua casa busque alguma proteção médica contra a ansiedade. Creio que se pode ser cético com relação às alegações da indústria farmacêutica, preocupado com as implicações sociológicas de uma população tão medicamentada e sintonizado com os custos existenciais envolvidos no uso de fármacos psiquiátricos, mas não se opor ao uso judicioso dessas substâncias".

No restante do livro, o autor apresenta e analisa uma miríade de questões relacionadas ao tema da ansiedade. Não gostaria de cansá-lo apresentando o livro capítulo por capítulo. Gostaria simplesmente de salientar que, caso se interesse por esse tema - e se você é psicólogo clínico acredito que irá se interessar, pois tenho certeza que queixas de ansiedade são frequentes em seu consultório - esqueça aquela besteira que é o best-seller "Ansiedade: como enfrentar o mal do século", escrito pelo Augusto Cury (que segundo esse texto, ele próprio, é o mal do século) e aventure-se neste livro fantástico de Stossel. O caminho é mais longo, afinal são mais de 500 páginas, mas tenho certeza que você não irá se arrepender.

Update 09/12/14: O psiquiatra Daniel Martins de Barros, em seu blog, fez uma analise igualmente entusiasmada do livro Meus tempos de ansiedade. Disse ele: "Misturando relato pessoal, pesquisa científica e história cultural, o livro lançado no Brasil pela Cia. das Letras é talvez o mais completo e abrangente trabalho leigo sobre os transtornos ansiosos".