terça-feira, 29 de julho de 2014

Porque o cérebro não pensa: conheça a falácia mereológica e saiba como evitá-la

Tem sido cada vez mais comum encontrar em sites, revistas e livros voltados para o público leigo, expressões que antropomorfizam o cérebro como “o cérebro escolhe”, “o cérebro faz”, “o cérebro pensa”, “o cérebro aprende”, etc, como se o cérebro tivesse vida própria e tomasse as próprias decisões, a despeito de seu “dono”; ou então expressões como "cérebro criativo", "cérebro apaixonado" ou "cérebro feminino", etc. Pois é, toda vez que alguém se utiliza de expressões como essas, comete a chamada falácia mereológica. Esta expressão, utilizada pelos filósofos Peter Hacker e Max Bennett no livro Fundamentos filosóficos da neurociência, aponta justamente para o equívoco de atribuir a uma parte (o cérebro) predicados ou características que dizem respeito ao todo (a pessoa, o organismo). Não é o cérebro que pensa, sente ou escolhe, mas sim a pessoa como um todo. Não é o cérebro que é criativo, apaixonado ou feminino, mas sim as pessoas. Nenhum cérebro sozinho, isolado de um corpo, é capaz de pensar, sentir, escolher ou aprender. 
Não acredita? Então faça o seguinte experimento: chame uma pessoa que você goste - e acredite: ela precisa gostar muito de você para topar uma coisa dessas - e peça para ela se deitar; pegue uma serra e corte o crânio dela; em seguida retire seu cérebro e tente estabelecer um diálogo com ele. Não conseguiu? Então pegue esse cérebro e coloque dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional e veja se ainda há alguma atividade nele? Não? Então despeça-se da pessoa (ou melhor, de seu cérebro), trabalhe seu luto e fuja ou então ligue para a polícia, pois você acabou de assassinar alguém...
Brincadeiras à parte, o que essa macabra história aponta é que cérebros, ao contrário de pessoas, não pensam, não sentem, não dialogam, não se apaixonam, não escolhem, não são femininos, masculinos, heterossexuais ou homossexuais. Como bem aponta Peter Hacker, em outro livro, "Um cérebro não pode falar, não porque seja um imbecil, mas porque não faz sentido dizer – 'meu cérebro está falando'. Eu posso ser um tagarela. Meu cérebro não pode. Cérebros não utilizam linguagem. Eles não tem opiniões, não argumentam, não levantam hipóteses, nem fazem conjecturas. Somos nós que fazemos essas coisas todas". Na mesma direção, o neurocientista Steven Rose, em um capítulo do livro Critical Neuroscience, aponta que “não são os cérebros que tem conceitos ou adquirem conhecimento ou têm ‘livre-arbítrio’, são as pessoas, usando seus cérebros”. Segundo o autor, dizer que o "cérebro pensa" é equivalente a dizer "a perna anda", como se o cérebro e a perna tivessem autonomia com relação à pessoa como um todo. Para Rose, somos nós que pensamos através do cérebro, assim como andamos com nossa perna. Atribuir a uma parte aquilo que diz respeito ao todo, equivalendo a mente ao cérebro, é entendido pelo autor como uma forma de reducionismo.
Segundo ele, dizer que o cérebro pensa ou aprende, assim como falar em “cérebro esquizofrênico”, “cérebro feminino” ou “cérebro adolescente”, pode até ser entendido como um atalho linguístico conveniente. No entanto, tal atalho não é inocente porque molda os nossos pensamentos e as nossas práticas, inclusive as teorias e práticas científicas. Portanto, da próxima vez que ler ou escutar alguém dizendo que o cérebro faz isso ou faz aquilo lembre-se de que na verdade são as pessoas que fazem tudo isso. Os cérebros, por mais complexos que sejam, não possuem tais capacidades.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Uma crítica ao cerebralismo na educação



As crianças estão sentadas diante de mesas enfileiradas todas na mesma direção. Em suas cabeças estão instalados capacetes de metal ligados por cabos elétricos a uma máquina na qual o professor deposita livros enquanto seu assistente, girando uma manivela, faz com que seus conteúdos sejam diretamente implantados ou transplantados na cabeça de seus estudantes. Foi desta forma que os ilustradores franceses Jean-Marc Côté e Villemard imaginaram, em 1899, a escola e a educação no ano 2000. Interessante observar como os artistas, ao conceberem um futuro, não conseguiram se libertar do presente: a escola imaginada por eles não era muito diferente da que havia naquele momento. A única e significativa diferença estava na tecnologia. É a máquina, no caso, que possibilita – ou potencializa – o aprendizado. Mas a função ativa do professor, entendido como aquele que deposita o conhecimento, e passiva dos estudantes, concebidos como meros receptáculos do saber alheio, permanece, assim como a organização do espaço da sala de aula. O ideal educativo de corpos dóceis e úteis, como aponta Foucault (2008) ou de uma educação bancária, como diz Freire (1987), permaneceu neste futuro imaginado.



Já passamos do ano 2000 e tal mecanismo de transferência direta de conteúdos para os cérebros dos aprendizes ainda não foi inventado – se é que um dia, de fato, será. No entanto, tem se disseminado pelo mundo, e pelo Brasil, propostas de “educar” o cérebro. De uma forma geral, como apontam diversos autores, o cérebro vem se tornando um verdadeiro ator social configurando-se, na cultura ocidental contemporânea, como o órgão central na definição de nossa identidade pessoal, fenômeno chamado pelo antropólogo da ciência Rogério Azize de cerebralismo. Este processo culmina no entendimento reducionista, amplamente disseminado no mundo ocidental, de que “eu sou o meu cérebro”. Segundo o filósofo Francisco Ortega, tal afirmação tornou-se auto-evidente em função de um contexto de emergência de uma neurocultura, na qual explicações cerebrais tem privilégio sobre outras formas de compreensão da realidade. E é justamente nesse contexto, no qual emerge a figura do sujeito cerebral, que “o cérebro vai à escola”. Com isso queremos dizer que o cérebro tem sido cada vez mais considerado um importante ator e mesmo o protagonista do processo educacional. No material aqui analisado, de fato, encontramos inúmeras referências à ideia de que é o cérebro que vai para a sala de aula e é para ele que é destinado o processo de ensino-aprendizagem. O cérebro seria, enfim, aquele que aprende. 



Sobre isto, gostaríamos de fazer algumas reflexões. Certamente, não há vida humana possível sem um cérebro. Basta constatar que bebês anencéfalos não vivem, com raríssimas exceções, mais do que poucos dias. Além disso, lesões significativas no sistema nervoso central comprometem e até mesmo impedem, em alguns casos, a vida. O clássico caso do operário Phineas Cage – que após um acidente que lesionou seu lobo frontal teve uma significativa e abrupta mudança de personalidade -, deixa claro a importância do cérebro na constituição do que somos, da nossa personalidade. Isto aponta para o entendimento de que o cérebro é absolutamente necessário para estarmos vivos e sermos o que somos. A existência de doenças graves como o Alzheimer, que atrofiam os tecidos cerebrais e alteram (e mesmo impedem) nossa consciência do mundo e de nós mesmos, e o fato de certos medicamentos influenciarem nossas emoções e nossos comportamentos, só confirma este entendimento.

Ao mesmo tempo, apesar de absolutamente necessário, ter um cérebro não é suficiente para sermos o que somos. Antes de tudo, precisamos de um corpo. Um cérebro em uma cuba não é nada mais nada menos do que um pedaço de carne. Não há vida possível sem um corpo. Mesmo sujeitos com corpo parcialmente paralisado ou extremamente comprometido possuem alguma relação corporal com o mundo e com as outras pessoas – caso, por exemplo, do físico norte-americano Steven Hawking. No caso de sujeitos com o corpo completamente paralisado – pessoas em coma, por exemplo - a relação com o mundo e com as outras pessoas é impedida ou se torna muito difícil. Mesmo que se desenvolvam formas de se comunicar com estas pessoas – e isto já está sendo testado – seria difícil negar a importância do corpo em nossa relação com o mundo, com as pessoas e com nós mesmos. 

Certamente, além de um corpo é necessário um mundo para este corpo atuar e também de outras pessoas, com seus corpos e cérebros, para se relacionar. Ou seja, nosso cérebro está num corpo que, por sua vez, está num mundo e com ele interage. Como afirma o neurocientista Steven Rose no livro O cérebro do século XXI, “os cérebros e os corpos são sistemas abertos, não fechados, em interação contínua com os mundos externos, material, biológico e social”. E é nesse sentido, que o filósofo canadense Alva Noe em seu livro Out of our heads, defende que nós não somos o nosso cérebro. Para o autor, nós somos seres vivos encarnados (em um corpo) e em permanente interação com o mundo e com as outras pessoas. Nesse sentido, segundo o autor, não é possível explicar a consciência somente em termos cerebrais porque a consciência não acontece no cérebro sozinho. A atividade neural, para Noe, ainda que necessária, não é suficiente para explicar nossa consciência de nós mesmos e do mundo. 

Para o filósofo não há nada dentro de nós que pensa e sente e é consciente. A consciência não é algo que acontece dentro de nós. É algo que nós fazemos. Segundo ele, o cérebro é necessário para a consciência assim como um motor é necessário para um carro. Mas o motor não dá origem à condução; dirigir não é algo que acontece dentro do motor. Da mesma forma, a consciência não é algo que ocorre dentro do cérebro. Outra metáfora utilizada por Noe é o dinheiro. Segundo ele, não é possível dizer que o valor do dinheiro está na nota. Se pegássemos um microscópio e a observássemos detalhadamente, não encontraríamos nela qualquer valor, porque este não se encontra em suas propriedades físicas ou químicas. O que faz uma nota de 10 reais valer efetivamente 10 reais são práticas, convenções e instituições e não qualquer materialidade da nota. Da mesma forma, para Noe, a consciência não está no cérebro, mas sim - como o título de seu livro aponta - fora de nossas cabeças. Mas isto não significa que Noe defenda a noção antiga de um espírito ou alma imaterial. De forma alguma. O que o filósofo defende é que a consciência é relacional, não material.

Evald Vassilievich Ilyenkov
Este entendimento possui grande proximidade com as ideias do filósofo soviético Evald Vassilievich Ilyenkov (1924-1979), conforme análise realizada pelo filósofo David Bakhurst. Pertencente a uma geração de pensadores marxistas pós-Stalin, Ilyenkov desenvolveu uma forte crítica ao que chamou de cerebrismo (brainism), isto é, a visão de que “(1) a vida mental de um individuo é constituída por estados, eventos e processos no seu cérebro e (2) que os atributos psicológicos podem legitimamente ser atribuídos ao cérebro”. O autor rejeita tal perspectiva em prol de um personalismo (personalism), entendimento de que “os atributos psicológicos são apropriadamente atribuídos somente a pessoas e que os fenômenos mentais não ocorrem ‘dentro’ da pessoa, mas são aspectos do seu modo de engajamento com o mundo”. Assim, para Ilyenkov o sujeito psicológico é a pessoa e não seu cérebro. Nesta perspectiva seria incorreto dizer, por exemplo, que o cérebro pensa ou que o cérebro aprende. Quem pensa e aprende são as pessoas.

Será que está realmente explicado?
Como aponta Bakhurst, o personalismo defendido por Ilyenkov não é uma forma de dualismo cartesiano. A mente, para o personalista, não reside em qualquer substância ou órgão material, mas diz respeito à pessoa como um todo – e pessoas são coisas materiais que habitam um mundo natural. A existência de um cérebro, neste sentido, é entendida como pré-condição para a existência de uma vida mental, mas ambos não se equivalem nem se reduzem um ao outro. Segundo o autor, é possível ter um profundo conhecimento da mente humana sem nada entender sobre o funcionamento cerebral – como foi o caso de Aristóteles e Platão. Em contrapartida, se abrirmos o crânio de uma pessoa e olharmos para o seu cérebro (mesmo munidos das mais modernas tecnologias de neuroimagem) não encontraremos pensamentos, sensações, crenças ou intenções. 

Este entendimento personalista possui grandes pontos de contato com a perspectiva do filósofo da mente Thomas Nagel, conforme exposto em seu artigo What is like to be a bat? (leia aqui o artigo traduzido). Segundo este autor, por mais que observemos o cérebro ou a atividade cerebral de alguém, nunca poderemos saber (ou sentir) como é ser aquela pessoa – ou, como aponta no título de seu artigo, como é ser um morcego. Isto porque os estados mentais possuem uma dimensão qualitativa, subjetiva, fenomenológica (designada na filosofia da mente de qualia), que não pode ser depreendida da análise objetiva, científica, da atividade cerebral da pessoa. No linguajar do autor, não é possível entender a perspectiva de primeira pessoa através da perspectiva em terceira pessoa. São perspectivas ou pontos de vista irreconciliáveis. Como aponta Bakhurst, provavelmente um personalista concordaria com este entendimento. È neste sentido que o autor aponta que as neurociências estão aptas, no máximo, a estabelecer correlações entre atividade mental e cerebral. Isto não significa, no entanto que a mente seja o (ou se equivalha ao) cérebro. O personalista, aponta Bakhurst, entende que o cérebro permite a mente, mas não a constitui.

Cérebros em sala de aula
Imbuído de uma visão sócio-histórica da mente e do cérebro, compartilhada por seus conterrâneos (ainda que não contemporâneos) Lev Vygotsky e Alexander Luria, Ilyenkov estava especialmente preocupado com a influência do cerebrismo na educação. Via como um desastre a visão do processo educacional como uma forma de treinar cérebros, assim como a perspectiva de que a capacidade do cérebro de aprender estaria constrangida por fatores inatos/genéticos. De acordo com esta perspectiva, criticada por ele, se uma pessoa é inteligente ou talentosa isto se deveria ao tipo de cérebro que ela possui. Da mesma forma, se a pessoa falha no aprendizado isto se deveria a alguma falha inata ou genética. Para Ilyenkov, a verdadeira falha reside no processo educacional. Para ele, não há nada inato ou constitutivo que faça com que a criança aprenda ou tenha dificuldade para aprender. Segundo Bakhurst, “a capacidade da criança para aprender tem horizontes ilimitados”. Em função disso, se alguma coisa sai errada no processo de aprendizagem, deve-se estar atento às causas sociais mais do que para as biológicas de tal processo. 

Analisando a produção recente do campo da Neuroeducação, Bakhurst aponta para uma predominância da visão cerebrista, o que pode ser observado tanto pela recorrência de expressões que humanizam o cérebro, como “o cérebro aprende”, quanto pela disseminação do entendimento de que os problemas de aprendizagem se deveriam a falhas ou erros no funcionamento cerebral. O autor defende, no entanto, que mesmo que o personalismo seja verdadeiro e que os atributos psicológicos não estejam contidos no cérebro, as neurociências ainda sim poderiam ser relevantes para o campo educacional na medida em que estão aptas a explicar os processos cerebrais envolvidos ou correlacionados com a aprendizagem. O que não se poderia perder de vista, aponta, é que a educação é um esforço comunicativo e não um problema de engenharia. Isto significa que educar não é implantar informações ou habilidades nas cabeças das crianças, como sugere a ilustração de Côté e Villemard, mas uma atividade essencialmente comunicativa, um “encontro de mentes”.

Assim como Bakhurst, não negamos que as neurociências possam trazer valiosas informações para os educadores e para a educação. Entender o funcionamento do cérebro pode contribuir, juntamente com outras abordagens e visões, para uma compreensão ampliada e complexa dos processos relacionados com a aprendizagem – como, aliás, defende a importante publicação Como as pessoas aprendem, produzida pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos. Da mesma forma não negamos o papel do cérebro para a educação. Sem o cérebro, obviamente, não há aprendizado possível. Isto não significa, contudo, que este seja o único elemento ou ator em cena ou que a aprendizagem seja um processo realizado por um cérebro. Pelo contrário, concebemos o cérebro como mais um ator em jogo, um ator necessário certamente, mas não suficiente. Além disso, seguindo Ylenkov e Noe, concebemos o aprendizado como algo realizado pela pessoa e não por seu cérebro. As dificuldades de aprendizagem, da mesma forma, devem ser entendidas levando-se em consideração a pessoa como um todo em sua relação com o ambiente físico e social e não simplesmente como uma falha na maquinaria cerebral. Enfim, juntamente com autores da chamada Neurociência Crítica, defendemos uma visão do cérebro como um órgão embodied, embedded, enacted, extended affective, ou seja, como algo encarnado (em um corpo), inserido (em um meio), que ganha sentido pela ação no mundo, e que é afetivo. Por tudo isso, consideramos prudente permanecer entre os extremos do neuroceticismo e do neuroentusiasmo compreendendo que o campo neurocientífico, ainda que possa gerar conhecimentos relevantes para a Educação, não é capaz, sozinho, de explicar a aprendizagem e suas dificuldades e muito menos de resolver os inúmeros problemas e desafios do campo educacional.

Trecho retirado, com pequenas alterações, das Considerações Finais da minha dissertação, intitulada "O cérebro vai à escola": um estudo sobre a aproximação entre neurociências e Educação no Brasil (para ler na íntegra, clique aqui)

domingo, 20 de julho de 2014

Compram-se diagnósticos!


Lendo o interessante livro "Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética", escrito pelo filósofo Michael Sandel (autor do bestseller "Justiça"), me deparei com o seguinte trecho:

"Psicólogos especializados em educação relatam que cada vez mais pais os procuram querendo que seu filho, aluno do ensino médio, seja diagnosticado com alguma deficiência de aprendizagem apenas para ter direito a mais tempo para responder ao exame [Sandel se refere aos exames admissionais para o ensino superior nos Estados Unidos, que correspondem ao Enem no Brasil]. Essa 'compra de diagnósticos' aparentemente foi desencadeada pela declaração em 2002 do College Board (entidade responsável por exames de admissão nos Estados Unidos) de que não mais colocaria um asterisco ao lado da pontuação dos alunos que receberam mais tempo para responder ao exame por ter alguma deficiência de aprendizagem. Os pais pagam aos psicólogos até US$2,4 mil por avaliação e US$250 por hora de serviço para que eles testemunhem em favor do aluno diante da escola e do Educational Testing Service, que elabora o exame de admissão da universidade. Se um psicólogo se recusar a fornecer o diagnóstico desejado, eles procuram outro" (página 67)

Fiquei pensando: será que isso acontece no Brasil? Sinceramente não sei - e se alguém souber, por favor comente abaixo. Mas que pode acontecer, não duvido nada pois, desde 2012 o Enem permite que alguns inscritos obtenham tempo adicional nas provas. Como é possível ler no Edital 2014 do Enem (especificamente no item 2.2.1.1), é possível solicitar atendimento especializado pessoas portadoras das seguintes condições: baixa visão, cegueira, deficiência física, deficiência auditiva, surdez, deficiência intelectual (mental), surdocegueira, dislexia, déficit de atenção, autismo, discalculia, dentre outras. Pessoas que se encaixem nestes diagnósticos podem solicitar tempo adicional para a realização das provas. No entanto o Inep, organizador do Enem, exige a apresentação de alguns documentos comprobatórios - mas não aponta especificamente quais (imagino que o parecer de um psicólogo possa valer em alguns casos).

Sobre esta possibilidade de ceder mais tempo para algumas pessoas na realização das provas considero algo justo e necessário, pois não há nada mais desigual do que tratar as pessoas como se fossem todas iguais - elas não são e nunca serão. Tratar diferentemente os diferentes é um princípio básico de toda proposta que se queira inclusiva. No entanto, uma possível consequência ruim desta regra é que ela abre margem para que estudantes que não sejam portadores de tais transtornos, se utilizem dessa possibilidade para tirar vantagem dos demais. Nesse caso, de posse de um documento comprado que ateste que o sujeito é portador de TDAH ou de dislexia, alguns sujeitos podem conseguir mais tempo para realizar a prova, ampliando suas chances de obter uma nota melhor. E não duvido que tenha muito psicólogo e psiquiatra por aí disposto a vender diagnósticos para quem deseja comprar.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A psicóloga "da seleção" e o sigilo profissional

Diversas pessoas, dentre elas o jornalista esportivo Juca Kfouri, estão acusando a psicóloga do esporte Regina Brandão, que prestou um serviço para a seleção brasileira durante a Copa, de ter cometido uma infração à ética profissional dos psicólogos ao supostamente expor seus clientes/pacientes em rede nacional - quebrando assim, o sigilo profissional. Quem assistiu à entrevista de Regina no programa Roda Viva (se não, assista aqui) concorda com esta crítica? Eu assisti e não concordo, ou melhor, não completamente. Regina falou do seu trabalho na seleção mas, que eu me lembre (me corrijam se eu estiver errado), em nenhum momento ela expôs um ou outro jogador especificamente, sempre falando no conjunto dos jogadores, da equipe como um todo. Quando falou de determinados jogadores foi bastante genérica, não expondo muita coisa - muito menos o resultado da avaliação psicológica que ela fez. 

No Código de Ética Profissional dos Psicólogos consta que "é dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional". Como já disse, não creio que ela tenha exposto a intimidade de qualquer jogador ou membro da comissão técnica. Mas será que ela protegeu devidamente a "intimidade" do grupo/organização a que prestou serviço? Essa pergunta leva, por sua vez a outra: será que ela poderia participar de um programa de entrevistas e falar sobre o seu trabalho junto à seleção brasileira? Sinceramente não sei. Ao mesmo tempo que penso que talvez ela devesse ter recusado ceder tal entrevista (especialmente em um momento de grande comoção com a derrota da seleção brasileira na Copa), considero importante que profissionais sérios e competente apareçam na mídia e falem sobre a nossa profissão, ainda tão cercada de mistérios e visões equivocadas. De toda forma, se ela de fato cometeu uma infração ética, será necessário inicialmente uma denúncia ao Conselho Regional de Psicologia a que ela esta vinculada e um posterior julgamento pela entidade. Mas, siceramente, tenho minhas dúvidas se realmente ela quebrou o sigilo profissional em sua entrevista.

No código de ética também consta que "o psicólogo, ao participar de atividade em veículos de comunicação, zelará para que as informações prestadas disseminem oconhecimento a respeito das atribuições, da base científica e do papel social da profissão".  Com relação à isso, considero que Regina fez o que tinha (e o que podia) fazer: falou sobre seu trabalho enquanto psicóloga do esporte - atividade que realiza há mais de 20 anos; e falou também, de uma forma bastante genérica, de seu trabalho com a seleção - o que desagradou um tanto de pessoas, que esperavam que ela falasse de uma forma mais específica sobre a "psiquê" dos jogadores. Se ela tivesse feito isso, aí não teria dúvida em dizer que cometeu uma infração ética, mas não foi o que ela fez. 

Já no Manual de Orientações, elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (veja aqui) é dito sobre a participação de psicólogos na mídia: "É fundamental que o(a) psicólogo(a) atente para o uso do conhecimento da Psicologia em favor do bem-estar da população e não da exposição de pessoas ou grupos ou organizações nestes meios de comunicação. Deverá zelar também para que as informações que oferecer tomem por base apenas conhecimentos a respeito das atribuições, da base científica e do papel social da profissão, contribuindo para o esclarecimento do trabalho que o(a) psicólogo(a) realiza ou em relação às teorias, técnicas, conceitos e ideias reconhecidas pela Psicologia e que possam estar sendo objeto da divulgação". Pessoalmente, considero que Regina cumpriu bem seu papel, divulgando e explicando seu trabalho como psicóloga do esporte. A única dúvida que me resta é se Regina de alguma forma falhou ao expôr o grupo/organização para a qual ela prestou um serviço (mesmo que não tenha sido remunerada, diga-se de passagem). O que vocês acham?

terça-feira, 8 de julho de 2014

A culpa é da psicóloga? Ah, fala sério!



O Brasil perdeu de lavada para a Alemanha e está fora da Copa do Mundo. Ruim, né? Péssimo, sem dúvida alguma. Inacreditável até. Quem poderia imaginar ou prever um resultado desses? (parece que só este sujeito, que sonhou com o 7 a 1 para a Alemanha!). Mas como uma coisa dessas pôde acontecer? As explicações variam mas normalmente envolvem algum tipo de culpabilização. Uns culpam o técnico Felipão (ele próprio reconhece sua responsabilidade), outros culpam os jogadores (individualmente ou a equipe como um todo), outros apontam ainda para a ausência de dois importantes jogadores (Tiago Silva e, especialmente, Neymar) e também tem aqueles que, surpreendentemente, culpam a psicóloga da seleção, Regina Brandão. Digitando-se a expressão "psicóloga" no Twitter é possível encontrar dezenas, centenas, talvez milhares de tweets acusando e culpando a psicóloga pelo fracasso da seleção brasileira (selecionei três na imagem acima). Faz sentido uma coisa dessas? Não creio. 

Antes de tudo, é importante compreender que diante de uma perda tão absurda como a sofrida pela seleção brasileira, muitas vezes a primeira reação dos torcedores é buscar um culpado. Identificado o alvo, volta-se toda a raiva e o descontentamento para esta pessoa, o que, curiosamente, gera um alívio e uma sensação de que as coisas tem algum sentido. Diante do inexplicável é muito mais confortável recorrer à explicações simplistas do que se dar conta de que existem muitos fatores em jogo - literalmente. Tendo isto em vista, será que faz algum sentido culpar a psicóloga pelo fracasso do Brasil na Copa? (se bem que não foi propriamente um fracasso pois o Brasil chegou até as semifinais, o que outras 28 seleções do mundo não conseguiram). Em minha visão não faz sentido algum, pois a vida é muito mais complexa do que essa visão culpabilizadora dá a entender. 

Em primeiro lugar cabe apontar que não são só fatores psicológicos que pesaram para o péssimo resultado do Brasil no jogo contra a Alemanha. Fatores técnicos/táticos também pesaram - e muito, talvez até mais do que os fatores psicológicos/emocionais. Em segundo lugar, a psicóloga foi chamada às pressas pela equipe técnica após o extenuante jogo contra o Chile, como que para apagar um incêndio. E ainda, segundo esta reportagem, Regina não pôde se dedicar completamente ao trabalho com a seleção em função de outros compromissos profissionais. Como ela mesmo disse, "Eu estava em aulas na universidade [onde trabalha], então estava indo e voltando. Não podia ficar aqui por muito tempo, porque além das aulas tenho o meu consultório. Agora entrei de férias na sexta-feira", explicou a psicóloga - o que é extremamente curioso, afinal será que a CBF não teria condição de contratar uma profissional para trabalhar exclusivamente com a seleção nesse momento? 

De toda forma, seu trabalho - que não sei bem no que consistiu (a mídia falou apenas em "conversas" com os jogadores - inclusive por WhatsApp!) - foi absolutamente pontual. E uma intervenção pontual e rápida como essa e nunca poderia ter a mesma eficácia do que um trabalho mais longo e profundo, como aquele realizado por muitos psicólogos do esporte em diversos times brasileiros e estrangeiros. Imaginar que um psicólogo sozinho e rapidamente poderia resolver todos os problemas da seleção é de uma ingenuidade sem tamanho. Seria como imaginar que um psicólogo clínico, com poucas sessões de terapia, poderia resolver problemas complexos e antigos de uma pessoa - se é que, de fato, o psicólogo "resolve" os problemas das pessoas (prefiro falar que contribui para a resolução). Tudo isto sinaliza para o fato de que o trabalho do psicólogo pode funcionar sim, pode ser extremamente útil e importante para uma equipe esportiva, mas não da forma mágica e rápida como muitas pessoas desejam.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Princípios para o atendimento clínico de gays, lésbicas e bissexuais

Todo psicólogo clínico ou institucional se deparará, pelo menos uma vez em sua carreira, senão cotidianamente - como é o meu caso -  com demandas que tangenciam ou se relacionam diretamente à questão da orientação sexual. E muitas vezes tais demandas dizem respeito ao sofrimento experimentado por gays, lésbicas e bissexuais com relação à própria sexualidade e/ou com relação ao preconceito sofrido em função de suas orientações sexuais (que não são propriamente escolhas, diga-se de passagem). Tendo isto em vista, considero relevante trazer para este blog algumas reflexões e princípios expostos no ótimo livro "Terapia afirmativa: uma introdução à psicologia e à psicoterapia dirigida a gays, lésbicas e bissexuais", escrito pelo psicólogo clínico Klecius Borges - autor também das obras Desiguais e Muito além do arco-íris (veja aqui uma entrevista concedida por Klecius para a Marilia Gabriela). 

Neste livro Klecius expõe as bases conceituais e os princípios da chamada terapia afirmativa, entendida por ele não propriamente como uma abordagem clínica (como a psicanálise, o humanismo ou o comportamentalismo) mas como uma espécie de filosofia clínica que considera a identidade homossexual uma "expressão natural, espontânea e positiva da sexualidade humana, em nada inferior à identidade heterossexual". Como já apontei anteriormente (ver aqui e aqui), não faz sentido - além de ser uma infração ética no Brasil - considerar a homossexualidade uma patologia passível de ser tratada ou curada. Trata-se de uma forma de ser e estar no mundo, tão válida quanto a heterossexualidade. Segundo Klecius, um terapeuta afirmativo é aquele que reconhece justamente isso: que as identidades gay, lésbica e bissexual são formas de experiência e de expressão humanas, tão positivas quanto a identidade heterossexual. Para tal profissional, é a homofobia (externa e internalizada) a principal responsável por muitos dos conflitos vivenciados pelos homossexuais e bissexuais e não a homossexualidade em si.

E é nesse sentido que Klecius, a partir do livro Pink Therapy, aponta para algumas condições essenciais (ou princípios) que os terapeutas que se pensam afirmativos - e, eu acrescentaria, todos os terapeutas - deveriam levar em conta no atendimento aos pacientes homossexuais ou bissexuais: 1) Respeito pela orientação sexual do paciente, considerando-a uma manifestação saudável, e não patológica da sexualidade humana; 2) Respeito pela integridade pessoal do paciente, lembrando que os pacientes gays tem um histórico de opressão que os torna muito vulneráveis na relação de poder (relação transferencial) com o terapeuta. Não revelar a terceiros ou mesmo familiares a identidade sexual do paciente é um dos cuidados a serem tomados na preservação de sua integridade; 3) Respeito pela cultura e pelo estilo de vida do paciente, mesmo quando seus valores morais são diferentes dos do terapeuta. Se for o caso, é necessário que o terapeuta procure conhecer a diversidade dos estilos de vida e das subculturas das comunidades gay e lésbica; 4) Respeito por suas próprias crenças e atitudes. O terapeuta deve se dispor a examinar os próprios preconceitos e crenças a respeito das orientações sexuais diferentes da sua e, em determinadas situações, dependendo desta autoanálise, ser capaz de reconhecer sua incapacidade de atender pacientes homossexuais.

Com relação à este último ponto, Klecius aponta para as principais crenças do terapeuta que podem interferir negativamente no processo terapêutico: a) a de que a homossexualidade vai contra a vontade de Deus e é pecado; b) a de que a homossexualidade é uma doença, é antinatural ou é uma perversão; c) a de que a homossexualidade é inferior à heterossexualidade; d) a de que a monogamia é a única forma saudável de se viver um relacionamento sexual; e) a de que os relacionamentos homossexuais são sempre superficiais, não duram e são apenas sexuais; f) a de que gays, lésbicas e bissexuais têm maior probabilidade de abusar sexualmente de jovens ou de que de alguma forma "pervertem" a sexualidade ainda em formação destes; g) a de que a paternidade e a maternidade gays e as famílias gays não tem o mesmo valor que seus equivalentes heterossexuais.

Cabe apontar que estas são as crenças de muitos psicólogos que se dizem "cristãos" ou "missionários" e que propõem ou disseminam propostas de tratamento ou mesmo de "cura" para as homossexualidades. Na contramão de tais propostas, Klecius aponta ainda que o objetivo central de uma terapia afirmativa é "ajudar o paciente a tornar-se mais autêntico, por meio da integração dos sentimentos, pensamentos e desejos homossexuais às diferentes áreas de sua vida, desenvolvendo, assim, uma identidade gay positiva". O objetivo é, portanto, não tratar ou curar sua homossexualidade, mas sim ajudar o paciente a passar da vergonha e da homofobia internalizada para o orgulho de sua identidade sexual. Tendo tudo isso em vista, deixo aqui uma indagação: você se considera afirmativo? Se não, o que falta para você se tornar um psicólogo (ou um estudante de Psicologia) afirmativo?

Conheça a incrível história de Buck Angel

Recomendo com entusiasmo o documentário "Mr. Angel", sobre a surpreendente história de vida de Buck Angel - o filme está disponível no Netflix. Para quem não o conhece, Buck é esse sujeito da foto: um homem na faixa dos quarenta anos, musculoso e com várias tatuagens no corpo. Enfim, um típico "macho alfa". Buck trabalha como ator pornô nos Estados Unidos e mora com sua esposa e seus inúmeros cachorros no México. Mas o que faz de Buck um sujeito realmente único é que ele, diferentemente da maioria dos homens, não possui um pênis. Na verdade, ele possui uma vagina. Sim, é isso mesmo: Buck é um homem com uma vagina. Nascido e criado como menina, Buck nunca se encaixou no que esperavam de seu gênero original. Preferia brincadeiras e roupas masculinas mas sempre foi reprimido por sua família, especialmente por seu pai. No final da adolescência tornou-se modelo mas ainda não aceitava a identidade feminina e por isso se punia de inúmeras formas (se cortava, bebia demais e usava drogas ilícitas, inclusive crack, etc) e tentou se matar algumas vezes. No inicio da vida adulta começou a se aceitar como homem e fez a sua primeira cirurgia, de remoção dos seios, começando também a tomar testosterona com o objetivo de masculinizar-se. Mas nunca quis fazer a cirurgia de transgenitalização (vulgarmente conhecida como cirurgia de mudança de sexo) tanto por gostar de sua vagina quanto por entender que o pênis que seria construido com fragmentos de outras partes de seu corpo nunca seria plenamente funcional como o da maioria dos homens. Seria mais esteticamente um pênis do que funcionalmente um pênis. Em função disso, optou por manter sua vagina, masculinizando-se de outras maneiras. A vida e o corpo de Buck nos permitem questionar de uma forma bastante profunda o que nos torna homens e mulheres, Será que é o fato de possuir um pênis que nos torna homens? Será possível ser homem sem um pênis? Buck nos mostra e nos prova que sim. Em uma cena do documentário é exibido um trecho não-explícito de um filme de Buck no qual ele faz sexo com uma mulher trans não-operada, ou seja, uma mulher com um pênis. O que temos então é, de certa forma, um sexo heterossexual: um homem faz sexo com uma mulher - a única mas não insignificante diferença é que, nesse caso, o homem possui uma vagina e a mulher um pênis. Ficou confuso? Talvez seja realmente confuso - e mesmo perturbador - para quem se habituou a pensar que todos os homens, para serem homens devem necessariamente possuir um pênis - e mulheres, para serem mulheres, uma vagina. Mas pessoas como Buck deixam claro que não é a genética nem o fato de se possuir um pênis ou uma vagina que determinam a identidade de gênero de uma pessoa. É sua forma de ser e estar no mundo que são determinantes. Buck, quer se aceite ou não, é um homem. Com uma vagina.

Saiba mais sobre a história de Buck Angel clicando aqui e aqui.