sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Imortalidade digital e a busca pela alma sem corpo

No filme Cópias - De volta a vida (2019), uma terrível produção estrelada por Keanu Reeves, acompanhamos o neurocientista Will Foster em seu esforço de transferir a mente de um ser humano para um robô. Logo no início do filme, conversando com sua esposa sobre seus experimentos até então fracassados (os robôs sempre acabam por rejeitar a "mente" transplantada) ela afirma, em um diálogo ao mesmo tempo patético e interessante: "talvez tenha algo mais que nos torne humanos, como uma alma", ao que Foster responde: "Somos o que acontece conosco e como lidamos com isso. É o que nos torna humanos. Tudo é neuroquímico!". Sua esposa então questiona: "Você acredita mesmo nisso? É o que eu e as crianças somos? Apenas sinais elétricos e químicos?". Foster simplesmente ignora esta pertinente e necessária indagação e segue adiante com seus experimentos de mind upload ou transferência mental. Acontece que certo dia ele e sua família se envolvem em um terrível acidente de carro e sua esposa e seus três filhos acabam por falecer. Logo antes disso acontecer, no entanto, Foster faz o download da mente deles e, posteriormente - em apenas 17 dias - cria clones biológicos perfeitos de três deles (que já saem dos tanques de clonagem exatamente como eram, inclusive com os mesmos cortes de cabelo), e ele então transfere as versões virtuais de suas mentes a estes corpos, trazendo-os, portanto, de volta à vida. Só por este breve resumo já dá para ter uma noção da tragédia que é esse filme. De toda forma, apesar dos inúmeros problemas, ele traz uma discussão muito pertinente e atual: será que um dia será possível transferir o conteúdo mental/cerebral de uma pessoa para um dispositivo digital ou então para um outro corpo biológico? Já discuti esta questão no post Em busca da imortalidade da mente; gostaria agora de discutir uma questão relacionada a esta e que diz respeito à possibilidade de separar a mente do restante do corpo. Será que o corpo, incluído o cérebro, é realmente necessário para a existência e o funcionamento da mente ou se trata de algo descartável? Enfim, o corpo é ou não é necessário? No filme, em certo momento, Foster tem uma espécie de epifania ao compreender que suas tentativas de transferir a mente de um ser humano para um robô estavam dando errado porque faltava a esse um corpo biológico. "Não é a mente, não é o cérebro. É o corpo. Estávamos olhando para o lugar errado", afirma Foster. E é a partir dessa observação que ele resolve tentar transferir a mente das pessoas de sua família para corpos biológicos clonados e não para corpos sintéticos - o que de fato funciona. A resposta do filme para a última questão que fiz anteriormente seria, portanto, que o corpo é sim necessário, mas apenas para receber e abrigar a mente - ainda que não para se retirar a mente (basta observar que os corpos originais dos membros de sua família foram simplesmente descartados e substituídos por novos corpos). O filme termina com a cena de um idoso em uma cadeira de rodas sendo conduzido para um processo de replicação que permitirá que ele continue vivendo indefinidamente em outros corpos, o que aponta para a ideia de que o corpo é, ao mesmo tempo, fonte de inúmeros problemas (como o envelhecimento) mas também imprescindível para a existência da mente humana. O corpo é necessário e desnecessário.

Outras produções - algumas delas indicadas no post Top 12 - Filmes e séries sobre transplantes ou transferências de cabeça, cérebro, mente ou alma - tem apontado, nesse sentido, para a parcial ou total descartabilidade do corpo. Na série Altered Carbon, por exemplo, as pessoas, ou melhor, suas mentes, não morrem jamais: quando o corpo perece, um disco rígido com o conteúdo de sua mente é simplesmente realocado em um novo corpo ou "capa" biológico (que pode ser de um outro gênero, idade ou etnia) e a vida continua indefinidamente - como afirma o protagonista, você troca de capa como uma cobra muda de pele. Neste caso, como no filme Cópias, o corpo é necessário apenas para abrigar a mente e permitir que esta cicule pelo mundo - sendo, assim, apenas um veículo para a mente; no entanto, quando este falha ou envelhece - e todo corpo biológico falha e envelhece - basta transferir a mente para outro corpo. Cada corpo individual não importa, o que importa é que haja um corpo, qualquer corpo, para abrigar a mente. Já o filme Trancendence: a revolução (2014) vai além e elimina totalmente a necessidade do corpo. Nesta obra acompanhamos o cientista Will Caster transferir a própria mente para um computador quântico e, com isso, se tornar incrível e exageradamente poderoso. Neste caso o corpo é totalmente descartado e descartável; a única coisa que importa é a mente - e ela é completamente independente do corpo, inclusive do cérebro. A mente, nesta narrativa, existe apenas como informação, necessitando apenas da base física de um computador. Aliás, na maravilhosa série Years and Years, que acompanha uma família inglesa ao longo de muitos anos, a personagem Bethany Lions deseja justamente isso: tornar-se informação. Identificada como uma pessoa trans (mas não transexual e sim transhumana), a adolescente Bethany não aceita a sua existência corporal e deseja ardentemente descartar o próprio corpo. Conversando com seus pais, logo no primeiro episódio, ela afirma: "Eu quero me livrar dele [do corpo]. Desta coisa. Dos braços e pernas, de cada pedacinho.  Eu não quero ser de carne. Desculpem, mas vou fugir  desta coisa  e me tornar digital (...) Dizem que, em breve, vai haver clínicas na Suíça aonde você vai, assina um papel, eles pegam o seu cérebro e fazem download dele na nuvem". Sua mãe, aterrorisada com tais declarações, lhe questiona, então, se fazendo isso ela deseja morrer (haja vista que eliminar o próprio corpo, em geral, está relacionado ao objetivo de eliminar a si mesmo), ao que Bethany responde: "Eu quero viver para sempre. Como informação. Isso é ser transumano, mãe. Não masculino ou feminino. Melhor. Aonde eu vou não há vida ou morte. Só dados. Eu vou virar dados!". E sobre o que será feito do seu corpo quando ela se tornar apenas dados Bethany afirma: "Ele é reciclado. Na terra", o que sugere ser o corpo, incluído seu cérebro, apenas lixo, algo desnecessário e descartável. O que importa para a transhumana Bethany é única e exclusivamente sua mente, ou melhor, sua mente transformada em dados.

Muito embora todas as obras mencionadas acima sejam de ficção, mais precisamente de ficção científica, elas representam muito bem o pensamento, as expectativas e os desejos dos expoentes do transhumanismo, uma espécie de movimento religioso-científico que aposta na ampliação das capacidades humanas por meio da tecnologia. A ideia central é que a tecnologia tem o poder - e terá ainda mais no futuro - de ampliar as capacidades humanas, levando-nos além. Ainda que grande parte dos transhumanistas sejam, ou afirmem ser, ateus ou agnósticos, a essência desse movimento é religiosa no sentido de devotar grande fé na ciência e em sua capacidade de permitir que o ser humano supere sua biologia e, portanto, os limites e empecílios do corpo. Uma das expectativas/ desejos dos transhumanistas (e é sempre muito difícil diferenciar expectativas e desejos no caso dos transhumanistas) é que em algum momento no futuro será possível a transferência do conteúdo mental/ cerebral de uma pessoa - isto é, de sua personalidade, memórias e habilidades -  para dispositivos digitais, o que acarretaria na total descorporalidade da pessoa, e, portanto, em sua imortalidade. Ainda que não saibam exatamente como isso seria possível, muitos transhumanistas acreditam que isto ocorrerá em algumas décadas. Mas o ponto central passa pela questão de como fazer o download da mente do indivíduo e, posteriormente, o upload desta mente simulada para um dispositivo digital ignorando completamente o corpo. Como bem aponta o inventor e fututologista Ray Kurzweil na clássica obra transhumanista A singularidade está próxima "se estivermos realmente capturando os processos mentais de uma determinada pessoa, então a mente reinstalada vai precisar de um corpo, já que boa parte de nosso pensamento está dirigida para desejos e necessidades físicas". Em sua visão, este processo de upload mental só terá realmente sucesso se o conteúdo cerebral do indivíduo for transferido para um corpo sintético. Sem um corpo, biológico ou artificial, em constante interação com o mundo, nenhuma mente poderia existir. Uma mente sem corpo e, portanto, sem sentidos e sem interação com o ambiente, poderia ser uma forma de prisão. Como aponta o físico Michio Kaku no livro O futuro da mente, "o cérebro gerado por engenharia reversa, não tendo corpo, pode sofrer de isolamento sensorial e até manifestar sinais de doença mental, como os prisioneiros confinados na solitária. Talvez o preço de se criar o cérebro imortal, com engenharia reversa, seja a loucura". Uma maneira de contornar essa situação seria conectar este "cérebro virtual" a sensores que recebam sinais do mundo externo, de forma que alguns sentidos sejam mantidos, ainda que artificialmente. Mas a questão, sem dúvida alguma, é muito mais complexa que isso. A própria ideia de que seria possível, de alguma forma, retirar ou replicar o conteúdo cerebral/mental de um indivíduo e transferí-lo para um dispositivo digital passa por uma ideia, a meu ver, muito enganosa sobre o funcionamento do cérebro e da mente humanas e remete à ideia de alma imaterial e imortal. No fundo, apesar de se vender como um movimento científico - ou que tem na ciência seu fundamento - o transhumanismo se sustenta numa concepção espiritualista que apenas substitui a antiga noção de alma pela de mente. Assim, apesar de se apresentar como uma novidade, não passa de uma nova roupagem para velhas reflexões.

No clássico diálogo Fédon, publicado no século 4 A.C., o filósofo Platão defende a teoria da imortalidade da alma e sua separação do corpo. Em sua visão, corpo e alma permanecem unidos enquanto há vida; com a morte, no entanto, a alma imediatamente se separa - ou melhor, se liberta - do corpo, que funciona, assim, como um veículo da alma e também, como sua prisão. Como aponta em certo momento desse diálogo, "quando o homem perece, sua parte mortal também perece, mas a imortal escapa rapidamente, salvando-se da morte". Além disso, Platão vê o corpo, com suas emoções e sentimentos (que ele chama de "paixões"), como a fonte de grande parte dos problemas humanos. "Quem faz nascer as guerras, as revoltas os combates? Nada mais que o corpo, com todas as suas paixões", afirma Platão. Já a alma é entendida como a fonte da razão e, portanto, como a parte mais nobre e fundamental do ser humano. Nós somos as nossas almas, poderia dizer Platão. A atividade do filósofo, nesse sentido, envolve analisar o mundo racionalmente, utilizando-se, portanto, de sua alma e renunciando, assim, às paixões do corpo. Afirma Platão: "se desejamos saber realmente alguma coisa, é preciso que abandonemos o corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer". Estas ideias de Platão, em especial a de que a alma imortal, e não o corpo mortal, é o que realmente importa no ser humano, foram incorporadas e transformadas posteriormente pelo cristianismo e serviram de base também para o pensamento do filósofo renascentista René Descartes. Em sua famosa obra O discurso do método ele apresenta sua concepção dualista do ser humano afirmando que a alma humana "é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, não está de modo algum sujeita a morrer com ele". Em sua visão, é a alma, "coisa pensante", que nos faz o que somos; o corpo seria apenas uma máquina ao qual a alma se une enquanto estamos vivos. No livro Meditações metafísicas Descartes deixa bem claro o que somos e o que não somos ao afirmar, inicialmente, que "eu nada sou senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito" e, posteriormente, que "eu não sou essa reunião de membros que se chama corpo humano". A famosa frase de Descartes "penso, logo existo", aponta igualmente para a ideia de que eu só existo porque eu penso e eu só penso porque eu possuo/sou uma alma racional. O pensamento é entendido, portanto, como a base da existência e da identidade humana. Voltando agora para os sonhos transhumanistas não é curioso observar o quanto eles se assemelham às concepções dualistas de Platão e Descartes? A ideia de transferir a mente de uma pessoa para um dispositivo digital tornando-a imortal se assemelha imensamente às visões destes autores de que a alma, imortal, teria uma natureza diferente do corpo, podendo ser separada deste. Outra ideia afim entre os velhos e os novos dualistas - e os transhumanistas são, essencialmente, dualistas - é aquela que entende a alma/mente como a essência do que somos. O objetivo dos transhumanistas de transferir ou simular a mente em um computador passa pela noção de que a única coisa não-descartável do ser humano são seus pensamentos. "Penso, logo existo", poderiam dizer os transhumanistas - já Bethany poderia afirmar: "Eu quero existir apenas como pensamento". Por fim, uma ideia central para os referidos filósofos e também para os transhumanistas é que o corpo é a fonte dos principais problemas humanos. Como afirma o filósofo Michael Hauskeller no artigo My Brain, My Mind, and I: Some Philosophical Problems of Mind-Uploading [Meu cérebro, minha mente e eu: alguns problemas filosóficos da transferência mental], "o corpo humano não é apenas considerado dispensável; é um obstáculo, um inimigo a ser combatido e do qual se livrar; ele envelhece e nos faz envelhecer, e, eventualmente, nos aniquila; é bagunçado, desordenado e sujo; traz caos e decadência em nossas vidas; carne e ossos são considerados materiais inadequados para uma existência avançada, digna, esclarecida e feliz. Então, vamos abandoná-lo se pudermos". Esta é, em suma, a essência do pensamento transhumanista sobre o corpo - e também dos pensamentos platônico e cartesiano.

Na visão do antropólogo francês David Le Breton, no livro Adeus ao corpo, uma tradição de suspeita e aversão ao corpo percorre o mundo ocidental desde a Grégia antiga, tradição esta associada ao dualismo entre corpo e alma e à visão de que é a alma e não o corpo que nos faz o que somos. O corpo, nesta tradição, seria apenas um estorvo, fonte dos pecados e dos problemas humanos. "A carne do homem é a parte maldita sujeita ao envelhecimento, à morte, à doença", escreve Le Breton. Curiosamente, na ciência atual, marcada por uma visão supostamente materialista e, portanto, antidualista do mundo e do ser humano, esta tradição se mantém. Segundo o antropólogo, "no discurso científico contemporâneo, o corpo é pensado como uma matéria indiferente, simples suporte da pessoa. Ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo, uma materia-prima na qual dilui a identidade pessoal, e não mais uma raiz de identidade do homem". Isto significa, para o autor, que o corpo é atualmente pensado e concebido pela ciência apenas como algo acessório, não como algo central ou fundamental para sermos o que somos. Nossa identidade, isto é, nosso "eu", estaria situado em outro lugar, não no corpo, mas na mente, na consciência ou - por que não? - na alma. De forma semelhante à Descartes, o corpo é visto apenas como uma máquina incômoda com a qual temos que lidar e que melhor seria se pudéssemos eliminá-la. Com afirma Le Breton, "a carne do homem encarna sua parte maldita que inúmeros domínios da tecnociência pretendem por sorte remodelar, 'imaterializar', transformar em mecanismos controláveis para livrar o homem do incômodo fardo no qual amadurecem a fragilidade e a morte". Pois é justamente esse o objetivo, no fim das contas, de todas essas propostas de upload mental: livrar o homem da fragilidade do corpo, e, portanto, da morte. Como aponta maravilhosamente o antropólogo francês, "a luta contra o corpo revela sempre mais o móvel que a sustenta: o medo da morte. Corrigir o corpo, torná-lo uma mecânica, associá-lo à ideia da máquina ou acoplá-lo a ela é tentar escapar desse prazo, apagar a 'insustentável leveza do ser'". A questão é que desde a Grégia antiga tem-se tentado anular ou eliminar corpo, relegando-o à função de veículo e prisão da alma ou da mente, mas o corpo sempre resiste e insiste em se fazer presente. E o motivo é que nós somos, sempre fomos e, muito provavelmente, sempre seremos seres corporais. Nosso corpo é uma parte fundamental do que somos e da nossa experiência no mundo. Nossa subjetividade, por exemplo, tem grande relação com nossa corporalidade. Basta se atentar para o fato de que todo o tempo em que estamos conscientes nossa mente está continuamente percebendo e mapeando nosso estado corporal - além, é claro, do mundo exterior, através dos nossos sentidos. Tudo isto é feito de uma forma tão rotineira e natural que acabamos por não nos dar conta. Mente e corpo estão unidos de uma forma tão intensa que é como se tal união nem existisse. E ainda que a mente possua propriedades diferentes do corpo - no sentido, por exemplo, de que os métodos utilizados para estudá-la são diferentes daqueles utilizados para se estudá-lo - ela é, inevitávemente corporal e, portanto biológica. Imaginar uma mente separada do corpo não faz qualquer sentido - a menos, é claro, que se acredite em uma alma imortal (e eu duvido muito que os transhumanistas admitiriam tal crença). Aliás, uma importante diferença entre os conceitos de alma e mente passa pela ideia de que o primeiro, utilizado predominantemente no contexto religioso, diz respeito à algo que sobrevive após a morte do corpo, ao passo que o segundo aponta para algo ligado ao corpo e que morre com este. O que faz de uma mente algo diferente de uma alma é justamente o fato desta emergir de um corpo e permanecer conectada a este até a morte. Imaginar, portanto, que será possível um dia libertar a mente do corpo e viver eternamente como pensamento ou informação não passa de mais uma louca fantasia de ficção científica.

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