quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Sobre exames objetivos para problemas subjetivos



Em Abril deste ano, o site da Superinteressante publicou a seguinte reportagem: "Cientistas criam exame de sangue para detectar depressão em jovens" (leia aqui). Segue um trecho:


Hoje, médicos e psiquiatras fazem o diagnóstico da depressão com base no relato dos pacientes sobre seus sintomas – o que é algo totalmente subjetivo, ainda mais porque às vezes a tristeza tem motivo (perda de um ente querido, fim de um casamento etc.) e nem sempre isso é levado em conta. Agora, pesquisadores da Northwestern University (EUA) desenvolveram uma opção que pode ser muito mais confiável: um exame de sangue capaz de diagnosticar a doença em adolescentes e diferenciar a depressão maior e a depressão maior combinada com ansiedade. O teste, desenvolvido ao longo de um período de mais de 10 anos, pôde identificar mais de 25 marcadores genéticos (mais precisamente, no RNA mensageiro) para a depressão com base em estudos com ratos gravemente deprimidos e ansiosos (pois é, os bichos também podem ter dessas). Estudos adicionais em seres humanos descobriram que muitos desses marcadores também são válidos para adolescentes humanos, e a combinação entre eles permitiu aos pesquisadores usarem o exame de sangue por si só para determinar com precisão quais dos voluntários estavam deprimidos e/ou ansiosos e quais estavam completamente sãos. Mas uma das autoras do estudo, a professora de psiquiatria Eva Redei, disse ao site FoxNews.com que o teste não deve eliminar as conversas entre o médico e o paciente para o diagnóstico. A ideia é servir apenas como um complemento. “O teste apenas ajuda a informar. Queremos dar aos pacientes deprimidos – e existem muitos – a mesma chance que nós estamos dando para quem sofre de diabetes, hipertensão e outras doenças para as quais existem exames”, explicou ela.

A despeito da descoberta de marcadores biológicos ser o sonho dourado da Psiquiatria moderna, não acredito que ela possa um dia vir à prescindir da subjetividade da clínica, se quiser continuar existindo. Afinal, a psiquiatria só existe ainda em função desta subjetividade. Historicamente, sempre que foram descobertos marcadores biológicos para problemas psiquiátricos, eles deixaram de pertencer ao escopo da Psiquiatria e migraram para outras especialidades, em especial a Neurologia. Ou seja, a Psiquiatria, como a Psicologia, só existe ainda em função desta "incômoda" subjetividade. Negá-la, buscando marcadores biológicos objetivos, é como dar um tiro no próprio pé. Na verdade, existem autores que afirmam que a Psiquiatria está com os dias contados. No futuro, dizem, existirão somente neurologistas e "neurocientistas clínicos". Afinal, se problemas "mentais" são, na verdade problemas "cerebrais", quem melhor do que neurologistas e neurocientistas para entendê-los e tratá-los? Desta forma, somente levando em conta esta subjetividade não objetificável - e, portanto, irredutível ao cérebro ou aos genes -, é que a Psiquiatria (do grego, "médico da alma"), poderá continuar existindo. De uma forma geral, minha visão sobre exames objetivos para diagnosticar problemas subjetivos é perfeitamente expressa por este cartum.
 Traduzido e adaptado por mim mesmo. O original pode ser visto aqui.

Evento na UERJ debate o DSM-5


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

GUEST POST: A situação do psicólogo clínico brasileiro


No ano em que comemora 50 anos de sua regulamentação, a Psicologia está mais plural do que nunca. No entanto, a psicologia clínica ainda domina o imaginário da profissão - tanto entre leigos como entre os próprios profissionais. Muitos, talvez a maioria, daqueles que ingressam nas inúmeras faculdades de Psicologia espalhadas por todo o país, ainda sonham em abrir um consultório quando se formarem. Mas como é ser um psicólogo clínico no Brasil atualmente? Para tentar responder esta questão, convidei o psicólogo clínico, bacharel e mestre em filosofia Daniel Grandinetti para compartilhar, neste espaço, sua visão sobre esta problemática. Na verdade, esta é uma versão mais concisa de um post publicado por Daniel em seu blog, o No Gabinete do Psicólogo. Quando o li, há alguns meses, fiquei mexido com suas palavras. Mesmo que não concorde com tudo o que ele diz, não dá pra ficar indiferente à sua narrativa provocadora. Segue o texto do Daniel.

A Psicologia Clínica no Brasil pede ajuda; ou melhor, parece que sua situação está precária há tanto tempo, que ela se esqueceu de que nada está bom. Está conformada, quieta, comemorando os 50 anos de sua profissionalização neste país. Entretanto, dificilmente poderíamos entender a Psicologia Clínica no Brasil como uma profissão. É assim que o dicionário Aurélio define a expressão:

Profissão sf. 1. Ato ou efeito de professar (4). 2. Atividade ou ocupação especializada, da qual se podem tirar os meios de subsistência; ofício. 

O psicólogo clínico geralmente professa sua convicção nas técnicas e teorias que regem sua ocupação, que é bastante especializada. Nesse sentido, o exercício da Psicologia Clínica no Brasil é uma profissão. Mas, tirar sua própria subsistência através do exercício da clínica é uma tarefa herculínea para o psicólogo brasileiro. Poucos, em média, conseguem esse feito. Nesse sentido, a Psicologia Clínica brasileira é uma ocupação que mais se assemelha a um hobby do que a uma profissão. E, quando falo em hobby, não estou insinuando que o psicólogo exerce a clínica com pouca seriedade ou dedicação. Existem hobbies que exigem muito de tudo isso, além de profunda paixão. Aliás, é justamente nesse sentido que falo da clínica em Psicologia como um hobby: uma ocupação mantida em grande parte pela paixão, mas que não retribui com o sustento àquele que a exerce. 



O principal problema enfrentado pelo psicólogo clínico é a falta de interesse, por parte da sociedade, pelo serviço que ele deseja prestar. Ele descobre que nem sempre aquilo que as pessoas precisam (ou que nós pensamos que elas precisam) é aquilo que elas querem. A faceta mais perigosa da falta de interesse da sociedade é a sua internalização pelo psicólogo clínico. O psicólogo aprende que ele é o principal interessado naquilo que ele faz, e aprende a tratar com naturalidade o fato de viver num mundo que não deseja particularmente aquilo que ele tem a oferecer. 

No exercício da clínica, o psicólogo enfrenta a falta de interesse de seus pacientes fazendo a eles todo tipo de concessão. O paciente é tratado na conta devida de um cliente. O psicólogo toma a falta de interesse do paciente como um problema seu, e que, portanto, deve ser resolvido pela “melhora” dos serviços prestados por ele. Em meio à angustia constante da possibilidade de perder seus pacientes, o psicólogo se esquece de que o interesse na melhora é, deve ou deveria ser do paciente, não dele, psicólogo. 

No efetivo estabelecimento da Psicologia Clínica como profissão, o psicólogo aprende a tomar como natural o fato de que ele é sempre o interessado em prestar seus serviços, jamais as clínicas em que ele trabalha. Não há empregos para psicólogos clínicos. Ao contrário da maioria das demais profissões de saúde, não há demanda suficiente por serviços de Psicologia Clínica que justifique a contratação de um psicólogo clínico. A profissão de psicólogo clínico é autônoma quase por definição. 



Frente à inexistência de empregos para psicólogos clínicos, o profissional que decide por essa área tem duas possibilidades: Tentar ou o consultório particular ou as clínicas de Psicologia espalhadas por aí. Se ele não tiver uma fonte segura e constante de encaminhamentos de pacientes, a tarefa de manter um consultório particular se mostrará quase impossível. Restará a ele as clínicas de Psicologia. Nos contratos de serviço com elas, o psicólogo geralmente aluga seu espaço de trabalho e espera delas receber pacientes conveniados, em sua grande parte. Formalmente, o psicólogo não presta serviço algum à clínica; é a clínica que presta ao psicólogo seus serviços (o aluguel da sala), e por isso o psicólogo não tem direito de receber dela nada além do espaço que alugou. O encaminhamento de pacientes ao psicólogo pela clínica não faz parte do contrato. É quase uma “cortesia”. A clínica, por sua vez, recebe o pagamento fixo pelo aluguel, todo mês. Ao psicólogo não é dada qualquer garantia de que conseguirá retirar de seu trabalho pelo menos o necessário para pagar o aluguel. E uma vez que as clínicas cobram do psicólogo aluguel pelo preço de mercado, e repassam a ele entre dez e vinte reais por consulta de paciente conveniado (geralmente, muito mais próximo dos dez do que dos 20 reais), o psicólogo precisa atender uma grande quantidade de pessoas, contando que elas não faltem a nenhuma sessão, somente para pagar o aluguel. O resultado é que a conta quase nunca fecha, e o psicólogo clínico paga para trabalhar. Até o trabalho escravo, por definição, é mais vantajoso que o trabalho do psicólogo clínico. O escravo não recebe nada, mas tampouco paga para trabalhar. 

O Conselho Federal de Psicologia explicitamente relega o profissional representado por ele à sua própria sorte quando ele quer estabelecer contrato com uma clínica. Ao invés de criar normas e propor leis que evitem a exploração do psicólogo, o CFP apenas o aconselha a “tomar cuidado”, lhe desejando boa sorte! É fato que mais de 90% dos psicólogos brasileiros são mulheres. Mulheres são mais receptivas, estabelecem relações intimistas com mais facilidade, são mais acolhedoras, mais empáticas, compreensivas. Essas são qualidades que se encaixam perfeitamente no perfil ideal do psicólogo, e por essa razão a grande quantidade de mulheres psicólogas engrandece a profissão. Por outro, no entanto, o número elevado de psicólogas nos traz dificuldades. Mulheres casadas são geralmente sustentadas pelos maridos. E isso não é diferente no caso das psicólogas. Assim, as psicólogas não carregam sobre as costas o peso da necessidade de buscar sua subsistência. O pagamento da psicóloga geralmente fica todo com ela, ou então entra apenas como um complemento da renda do marido. As clínicas supracitadas atraem em grande parte psicólogas casadas, que não têm a preocupação direta com o ganho. Caso os psicólogos clínicos constituíssem uma classe de profissionais que trabalha pelo sustento próprio, e por provedores de família, o diálogo com essas clínicas e com qualquer um que explore o trabalho do psicólogo seria posto em outros termos. A exploração não aconteceria com tamanha facilidade, mesmo com a omissão do CFP a respeito. 



O psicólogo deve aprender a dizer não à exploração do seu trabalho. Não deve aceitar trabalhar em clínicas a não ser que seu saldo seja positivo no final do mês. Deve procurar fazer acordos em que a clínica ganhe proporcionalmente ao seu próprio ganho e à sua produtividade. Se o psicólogo produzir muito e ganhar muito, a clínica também ganhará. Se não produzir nada e não ganhar nada, a clínica nada ganhará. O psicólogo deve saber que a cada concessão abusiva sua a um paciente, e a cada sim dado àqueles que lhe exploram, toda a classe sai perdendo. Quem faz concessões excessivas não dá o valor devido ao seu próprio trabalho, e quem não valoriza seu próprio trabalho não pode cobrar a valorização dos outros. O psicólogo clínico está habituado a trabalhar sozinho em seu consultório. Por isso, ele se torna individualista. Acredita que o único interessado em seu trabalho é ele mesmo, e não percebe que o interesse pelo trabalho de seu colega também pode despertar o interesse dele pelo seu, e que uma classe de profissionais interessados no trabalho uns dos outros aprende a ter mais auto-estima, produz mais e desperta, naturalmente, o interesse das pessoas em geral. O psicólogo perde a consciência do valor daquilo que faz, e por isso se torna submisso e omisso.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

Antipsiquiatria e Cientologia: uma estranha relação



Alguns de vocês já devem ter assistido - e até compartilhado nas redes sociais - documentários como o "Marketing da loucura" ou o "Psiquiatria: uma indústria da morte" ou então o "DSM: a farsa mais mortífera da Psiquiatria", mas imagino que poucos saibam quem os produz e com que interesses. Apesar de tratarem de questões pertinentes, como a relação dos psiquiatras com a indústria farmacêutica, a falta de marcadores biológicos na Psiquiatria e os efeitos colaterais das medicações psicotrópicas, sempre me incomodei com o tom dramático, beirando o apocalíptico, destes videos. Resolvi pesquisar à respeito e acabei caindo no site da Comissão dos Cidadãos para os Direitos Humanos (CCHR), que é a entidade que produziu todos estes documentários, além de diversos outros materiais. Na seção "O que é o CCHR?" está escrito que a Comissão "é um serviço de vigilância da saúde mental sem fins lucrativos, responsável por ajudar a aprovar mais de 150 leis que protegem os indivíduos de práticas abusivas ou coercivas". Até aí nada de mais. O que me chamou a atenção realmente foi o seguinte trecho, no qual é explicada a origem da entidade: 

"A CCHR foi cofundada em 1969 pela Igreja da Scientology e o Professor Emérito de Psiquiatria, Dr. Thomas Szasz, numa altura em que os pacientes estavam a ser armazenados em instituições e despojados de todos os direitos constitucionais, civis e humanos".

Peraí! Deixa eu ver se entendi direito: a CCHR foi criada então pelo famoso - e recém-falecido - (anti)psiquiatra Thomas Szasz, autor de livros clássicos como "O mito da doença mental" e "A fabricação da Loucura", juntamente com... a Igreja da Cientologia. É isso mesmo? Sim, caro leitor. Para quem não sabe, a Igreja da Cientologia é aquela bizarra entidade religiosa fundada pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard e cujos adeptos mais famosos são o Tom Cruise e o John Travolta. Ontem de madrugada passou no GNT um documentário francês, chamado "Cientologia - A verdade sobre essa mentira" (disponível aqui), que expõe inúmeros podres desta seita tenebrosa. Não vou me deter aqui aos pormenores da Cientologia. Recomendo, àqueles que queiram saber mais, que assistam este documentário e também o sensacional episódio do South Park sobre a Cientologia (disponível legendado aqui). E fiquem atentos: está previsto para estrear no Brasil em Janeiro de 2013 o filme "The master" do diretor Paul Thomas Anderson, cujo enredo é inspirado na vida de L. Ron Hubbard. Veja o trailer abaixo:



A questão que me interessa neste post é a seguinte: o que pretende a Cientologia ao criticar a Psiquiatria? Foi com esta pergunta na cabeça que me deparei com o blog "Cientologia: a perigosa seita da ganância e do poder". Nele encontrei a resposta que procurava - especificamente aqui. Segundo tal blog, na década de 50, após a "revelação" da Dianética como o método terapêutico da Cientologia, L. Ron Hubbard sofreu duras críticas tanto da Associação Americana de Psiquiatria (APA) quanto da Associação Nacional de Saúde Mental (NMHA). Isto porque Hubbard pregava que todas as doenças são psicossomáticas e curáveis somente pelo método da Dianética, que inclui a ingestão de doses cavalares de vitaminas, sessões diárias de saunas e massagens. Qualquer medicação deveria ser completa e radicalmente abolida. Segundo o autor do blog, em função desta filosofia, "são inúmeros os casos noticiados de pessoas que morrem por falta de tratamento médico ou medicamentos em razão da proibição determinada pela Cientologia a seus fiéis". Este parece ter sido o caso do filho do ator John Travolta, cuja morte poderia ter sido evitada se ele tivesse tomado alguns medicamentos (saiba mais aqui). Desde a década de 50, portanto, a cientologia permanece em guerra contra a Medicina e, em especial, contra a Psiquiatria. De acordo com o blog, "para emprestar um ar de oficialidade à sua empreitada, a Cientologia, de tempos em tempos, cria 'organizações', 'comissões' e outras instituições com o fim de combater seu inimigo, a psiquiatria e outras concorrentes da área da saúde mental". A CCHR é fruto deste combate. Provavelmente a aproximação de Szasz com a Cientologia (ou será que foi o contrário?) ocorreu em função da existência deste inimigo em comum: a Psiquiatria ou, pelo menos, as práticas psiquiátricas usuais.

Segundo o site oficial da Cientologia, na seção de Perguntas e respostas (veja aqui), a igreja se opõe à Psiquiatria em função dos abusos históricos cometidos contra os doentes mentais. Segundo o site "ao longo da sua longa e trágica história a psiquiatria tem inventado numerosas 'curas' que finalmente provaram ser extremamente destrutivas. Nos séculos XVIII e XIX, pacientes mentalmente perturbados foram literalmente submetidos a aparelhos de tortura. Em seguida, eram banhos de gelo e choque de insulina. Em seguida, a terapia eletroconvulsiva que causava quebra de dentes e ossos, bem como perda de memória e de regressão a estados comatosos. Em seguida, foi a lobotomia pré-frontal com um picador de gelo através da órbita ocular. Hoje é com drogas". Segundo eles, as doenças mentais são farsas "elaboradas e mortais" e os tratamentos psiquiátricos não tem "nenhuma base na ciência e são brutais ao extremo". O curioso é que a cientologia, mesmo não sendo uma ciência - embora acredite ser - critica a ausência de cientificidade da Psiquiatria. Paradoxal, não? Isto me lembra um video, que comentei anos atrás, no qual uma organização religiosa critica a falta de embasamento científico das psicoterapias - como se as religiões o tivessem... Com relação aos tratamentos psiquiátricos eu discordo da cientologia. Na minha visão as medicações representaram, e ainda representam, um enorme avanço em relação aos tratamentos psiquiátricos anteriores. Se há um exagero na prescrição dos medicamentos é outra história.

Outra crítica da Cientologia à Psiquiatria é que ela rotula as pessoas "por atacado". Para eles, a Psiquiatria "é um negócio surpreendentemente lucrativo. Mas enquanto os psiquiatras fazem dinheiro fácil aos bilhões, a sociedade recebe uma nova geração de toxicodependentes ao longo da vida e, portanto, ainda mais consumidores para drogas psicotrópicas". Concordo que a Psiquiatria e a indústria farmacêutica obtém lucros imensos. Mas a cientologia não é, de forma alguma, uma associação sem fins lucrativos. Pelo contrário! Isto fica claro no documentário, que apresenta vários casos de pessoas que não conseguiam abandonar a igreja da cientologia em função das enormes dívidas contraídas com a seita no decorrer dos anos. Isto para não falar das luxuosas igrejas espalhadas por todo o mundo.

O que toda esta história mostra, na minha opinião, é que não é possível dividir o mundo entre heróis e vilões. Thomas Szasz, que para muitas pessoas e grupos é considerado um ícone de um certo pensamento crítico com relação à Psiquiatria, se aproximou de uma estranha seita com intenções um tanto obtusas. Da próxima vez que você for assistir a um documentário da CCHR - e antes de sair por aí compartilhando a "boa nova" - lembre-se desta estranha parceria e se pergunte: quais as intenções dos realizadores deste vídeo? Porque, ao contrário do dito popular, nem sempre o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo.


Thomas Szasz ao lado de Tom Cruise

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sem sofrimento não há crítica social - Vladimir Safatle


Reproduzo abaixo, na íntegra, um excelente artigo do Vladimir Safatle, professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), publicado na revista Carta Capital do dia 03 de Outubro de 2012. O artigo ainda não está disponível no site da revista. Encontrei-o aqui.

Um dos fenômenos mais relevantes da última década foi uma lenta mutação em nossa maneira de compreender a natureza do sofrimento psíquico. Tal questão não é um problema que deveria ocupar apenas psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. A maneira como compreendemos o que vem a ser o sofrimento psíquico é um setor fundamental a respeito da imagem que temos de nós mesmos e de nossos ideais de autorrealização.

A distinção entre normalidade e patologia, no que se refere à vida psíquica, não é o simples fruto de variações quantitativas, de déficits e excessos relativos a constantes orgânicas. Valores fundamentais na definição tradicional da normalidade, como harmonia e equilíbrio, nascem em campos exteriores à clínica. Não seria difícil mostrar como a genealogia da "harmonia" como valor médico encontra sua origem no campo da estética, da mesma forma que o "equilíbrio" encontra sua origem na política. Essa é apenas uma maneira de lembrar como os valores que compõem o horizonte da saúde são, em larga medida, dependente de valores que a clínica toma de empréstimo dos campos da cultura. O homem é um animal que sofre por não ser capaz de realizar valores que ele compreende, graças a uma experiência sócio-histórica de larga escala, como fundamentais para uma vida bem-sucedida.

Lembrar tais considerações aparentemente triviais é fundamental para começarmos a compreender as consequências de certa guinada organicista que submeteu as discussões sobre sofrimento psíquico, ao menos desde o aparecimento do manual de psiquiatria DSM-III no fim dos anos 1970. A partir daí, virou um lugar-comum afirmar que havíamos entrado na era do declínio das psicoterapias, graças, principalmente, ao advento de gerações de antidepressivos, psicotrópicos e neurolépticos que, enfim, dariam conta dos distúrbios e transtornos que afetam grandes camadas da população. For sua vez, a descoberta de certos paralelismos frutíferos entre estados mentais e estados cerebrais pareceu fascinar pesquisadores encantados com a possibilidade de localizar sentimentos e estados humorais em redes neuronais.



Aos poucos, vimos o estabelecimento de um senso comum que tendia a rejeitar explicações etiológicas do sofrimento psíquico que colocavam em relevo os impasses dos conflitos no interior da esfera familiar, as contradições nos processos de constituição social de identidades, em suma, as possibilidades de organização da experiência de si tal como permitidas pela natureza de nossos vínculos sociais. Tudo isso parecia como aquelas grandes meta-narrativas sobre desenvolvimento histórico que aprendêramos a recusar. Talvez não seja por acaso que a propalada crise da psicoterapia mais influente do século XX, a saber, a psicanálise tenha sido acompanhada da crise da "metanarrativa" mais influente do século XX, a saber, o marxismo. Nos dois casos, discursos profundamente críticos a respeito dos limites e das modalidades de sofrimento produzidas por nossas formas de vida eram jogados no fundo do baú da história.

Que o discurso do ocaso das psicoterapias e da ascensão da era dos antidepressivos tenha sido enunciado, de maneira mais peremptória, quando nossas sociedades liberais quiseram impor a ideia de que eles tinham vindo para ficar e que não havia muito mais a esperar, eis algo que não deve ser visto como uma mera coincidência. Quando Michel Foucault cunhou o belo termo "biopolítica", ele procurava salientar a maneira como decisões referentes à administração da vida e dos corpos, decisões eminentemente internas ao saber médico, não são exteriores à expectativa de valores políticos que queremos implementar. Por exemplo, se em certo momento do desenvolvimento da psiquiatria, a força terapêutica da relação entre médico e paciente foi levada em conta, isso não foi sem relações com noções de autonomia e subjetividade moral que apareceram como valores políticos fundamentais.



Devemos lembrar esses fatos, porque é bem provável que vejamos nos próximos anos um retorno crescente pelo interesse em psicoterapias. Freud, à sua época, não cansava de ouvir pacientes que simplesmente pediam para ser ouvidos, como se precisassem, por meio do redirecionamento lento de suas falas, construir espaços de vinculação de suas modalidades de sofrimento psíquico à singularidade de suas posições subjetivas. Que atualmente boa parte de nossos pacientes volte a reclamar do fato de não ser ouvida e de sair de consultórios com uma receita de medicamentos à base de Fluoxetina em tempo recorde, eis um sintoma social que indica exigências de novas abordagens a respeito do sofrimento psíquico. 

Vivemos em um momento de refluxo da euforia em relação à potência de cura de intervenções medicamentosas. Dizia-se que práticas psicoterápicas eram caras, longas e de resultados duvidosos. Engraçado como poucos lembravam que tratamentos com medicamentos também são caros, profundamente longos, e seus reais resultados poderiam ser mais bem avaliados se a indústria farmacêutica parasse de tentar influenciar resultados de pesquisa e retardar a divulgação de resultados desfavoráveis. 

Valeria dizer que tal refluxo talvez esteja silenciosamente ligado a uma ideia importante do psicanalista Jacques Lacan, a saber, de que os sintomas são aquilo que muitos têm de mais real. O sofrimento psíquico nunca foi simplesmente algo que deve ser eliminado, como eliminamos o vírus de uma doença orgânica. Na verdade, ele é, muitas vezes, a maneira desesperada que encontramos para dizer a nós mesmos que a estrutura de nossa vida não dá conta de experiências que, no fundo, gostaríamos de integrar. Sem sofrimento não há crítica, pois é a experiência do sofrimento que nos mostra o caráter arruinado daquilo que deve ser criticado. Nesse sentido, talvez devamos apreender como uma lição fundamental do século XX: não há crítica social possível sem compreendermos como o nosso corpo, como os impasses de nossos desejos falam aquilo que lutamos com todas as forças para não ouvir. Eis um bom caminho para o nosso futuro.


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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Eu sou meu cérebro? - Parte 2

Uma leitora deste blog deixou um comentário, no final deste post, dizendo o seguinte: "Desculpe- me a ignorancia, mas li e reli e nao consegui entender... se eu nao sou o meu cérebro... quem eu sou?". Não se trata de ignorância, querida leitora. Esta é realmente uma questão importante. Para respondê-la, disponibilizo abaixo o interessante video "Você não é o seu cérebro", legendado em português, no qual o filósofo norte-americano Alva Noë discorre sobre o assunto. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Sobre viagens, memórias e esquecimentos


Não, este blog não é de turismo, mas de Psicologia. Na verdade, trata-se de um blog de um psicólogo. E este que vos fala fará uma viagem no final do ano para a Europa. Pretendo, em 15 dias, conhecer algumas cidades de Portugal e Espanha. É um sonho que alimento já há algum tempo e, por diversos motivos, não pude concretizar até este ano. E foi com o objetivo de aproveitar a viagem da melhor maneira possível que comprei o livro "A arte de viajar", do filósofo inglês Alain de Botton. E antes mesmo de finalizar a leitura, ele já se encontrava na lista de livros da minha vida. O livro é sensacional! Recomendo a todos que se interessam por conhecer lugares - seja a Europa ou o próprio quarto. E além de ótimas reflexões e dicas para aproveitar as viagens, ele ainda trata de temas caros à Psicologia. Isto só comprova aquilo que disse o filósofo Hilton Japiassu, no livro que deu nome a este blog: "A psicologia é algo extremamente sério para ficar entregue apenas nas mãos dos psicólogos". Concordo com ele. E digo mais: muitas e muitas vezes encontramos importantes reflexões sobre temas "psicológicos" em obras de não-psicólogos. Especialmente a filosofia, mãe da Psicologia, tem muito a contribuir com os "nossos" temas - se bem que, na verdade, os temas são "deles", nós que os roubamos.

Já tinha lido do filósofo pop o ótimo "Religião para Ateus" e gosto muito da forma como ele escreve e dos temas que trata. Admiro também sua proposta de uma filosofia da vida cotidiana, oposta de certa forma, à hermética filosofia acadêmica. Para De Botton, a filosofia pode e deve ser aplicada à vida. Alguns chamam suas obras, pejorativamente, de auto-ajuda. Talvez seja, mas não no sentido tradicional. De Botton não tem receita pronta pra nada, mas propõe reflexões sobre grandes questões do cotidiano, como o amor (tema explorado em seu primeiro livro "Ensaios de amor"), o sexo ("Como pensar mais em sexo", recém-lançado), o trabalho ("Prazeres e desprazeres do trabalho"), a religião ("Religião para ateus"), a arquitetura ("Arquitetura da felicidade") e, claro, viagens (tema explorado por ele também no livro "Uma semana no aeroporto", que estou lendo agora). Seu livro mais famoso, "Como Proust pode mudar sua vida" congregou diversos desses temas, explorados a partir da obra do famoso (embora pouco lido) escritor francês. Questionado se o que faz é auto-ajuda, De Botton respondeu (veja aqui): "Eu quero criar uma nova autoajuda. Não quero criar soluções fáceis. Não vou te ajudar, porque muitas coisas não tem solução. Quero repartir coisas". Boa resposta!


"Arte de viajar" está dividido em cinco partes (Partida, Motivações, Paisagem, Arte e Retorno) e oito capítulos, cada qual com um destino e um guia (por exemplo: Amsterdã/Flaubert), ou seja para cada tema, ele utiliza como pontapé para suas reflexões um lugar pelo qual viajou e a vida e obra de outros escritores e pintores, alguns conhecidos outros não. O primeiro capítulo, "Da expectativa" (disponível aqui) é um dos mais interessantes de todo o livro, na minha opinião. Neste capítulo, De Botton pretende refletir sobre a diferença entre nossas expectativas com relação à determinada viagem e o que de fato encontramos quando chegamos lá. Para ilustrar esta problemática, ele traz o caso do Duque des Esseintes, personagem do livro Às avessas, de J-k Huysmans. Segundo De Botton, Des Esseintes adorava os livros de Dickens e, impressionado com as descrições de Londres feitas por este autor, resolveu viajar até a Inglaterra. Decepcionou-se tremendamente, retornando frustrado à sua cidade natal, disposto à nunca mais viajar. Afirma Des Esseintes: 

"Qual a necessidade de se locomover quando uma pessoa pode viajar tão maravilhosamente sentada em uma cadeira? Já não estava em Londres, com seus cheiros, seus climas, seus cidadãos, sua comida e até seus talheres  dispostos ao redor dele? O que poderia encontrar lá senão novas decepções? Eu devia estar sofrendo de alguma aberração mental ao rejeitar as visões de minha obediente imaginação e pensar, como qualquer velho tolo, que seria interessante e necessário viajar ao exterior"

Esta história poderia demonstrar o quanto a realidade é sempre pior do que nossa expectativa. No entanto, para De Botton, são âmbitos simplesmente diferentes. Isto porque nossas expectativas funcionam de uma forma simplificadora. Imaginamos apenas fragmentos, nunca o todo. Desta forma, idealizamos uma bela praia deserta com um coqueiro, mas dificilmente imaginamos o caminho até esta praia. Para chegarmos a ela - que dificilmente será tão perfeita como na foto, assim como um hamburguer do Mcdonalds -, precisamos primeiro passar horas dentro de um avião ou de um ônibus, nos instalarmos em um hotel, lidarmos com o calor ou frio do lugar, etc. E quando de fato chegamos ao local almejado, temos de lidar ainda com nossas ansiedades e angústias. 


Em uma passagem genial, De Botton descreve o belo cenário da Ilha de Barbados, que escolheu para passar as férias com a esposa por representar o exato oposto da chuvosa e cinza Londres, cidade em que mora. De Botton descreve detalhadamente a praia perfeita em que esteve, com suas árvores e pássaros, e acrescenta: "Esta descrição reflete apenas de forma imperfeita o que aconteceu comigo naquela manhã, pois, na verdade, minha atenção estava mito mais dispersa e confusa do que sugerem os parágrafos anteriores. Posso ter notado alguns pássaros cortando o ar em sua excitação matinal, mas minha consciência de sua presença foi comprometida por outros fatores, despropositados e sem relação entre si, como uma dor de garganta que desenvolvi durante o voo, a preocupação de não ter informado a um colega que estaria ausente, uma pressão entre as têmporas e a necessidade cada vez mais urgente de uma ida ao banheiro". E completa, com uma afirmação curiosa: "Um fato decisivo, mas até então ignorado, surgia pela primeira vez: inadivertidamente, eu me levara comigo para a ilha". Ou seja, junto com suas malas, ele tinha levado para este paraíso na terra, esta "criatura complexa", com todas suas particularidades. 

Antes de viajar, olhando algumas fotos da ilha, ele podia ignorar este fato, isto é, ignorar-se. No entanto, durante sua estadia em Barbados, seu corpo e sua mente "se revelariam cúmplices temperamentais na missão de apreciar o meu destino turístico. O corpo encontrava dificuldade para dormir e se queixava do calor, dos mosquitos e dos problemas para digerir a comida do hotel. A mente mostrava-se apegada à ansiedade, ao tédio, a uma tristeza descontrolada e ao alarme financeiro". Segundo ele, "Parece que, ao contrário da satisfação contínua e duradoura que esperamos, a felicidade com e em determinado lugar deve ser um fenômeno breve e, pelo menos à mente consciente, aparentemente fortuito: um intervalo em que conseguimos ficar receptivos ao mundo ao nosso redor, em que pensamentos positivos sobre passado e futuro se solidificam e as ansiedades são amainadas. Mas essa condição raras vezes se prolonga por mais de dez minutos"

Não é assim que funciona? Pelo menos comigo sempre foi assim. Mas algo alentador de pensar é que, da mesma forma que nossa imaginação, nossa memória é altamente simplificadora, retendo, com o tempo, apenas fragmentos de toda a experiência da viagem. Momentos de tristeza, medo e ansiedade, felizmente, costumam ser esquecidos, da mesma forma que grande parte dos detalhes da viagem. Este processo funciona de forma similar com os livros que lemos no decorrer da nossa vida. No interessante (e irônico) livro "Como falar dos livros que não lemos", o escritor Pierre Bayard afirma, na mesma direção de De Botton, que "a leitura não é somente conhecimento de um texto ou aquisição de um saber. Ela está também, e a partir do momento em que se inicia, engajada em um irreprimível movimento de esquecimento. No momento em que estou lendo, eu já começo a esquecer o que li, e este processo é inelutável, prolongando-se até o momento em que tudo se passa como se eu não tivesse lido o livro". 


Da mesma forma, ao iniciarmos uma viagem, já começamos a esquecê-la. Triste, mas é assim. À exceção de pessoas com memórias extraordinárias, nos lembramos pouco e cada vez menos das experiências pelas quais passamos. Isto tem um lado bom: se fossemos lembrar em detalhes de todas as nossas dores e ansiedades, não conseguiríamos seguir nossas vidas, como que assombrados por "fantasmas" do passado. Ao mesmo tempo, este processo nos faz esquecer detalhes e, muitas vezes, períodos inteiros de nossas vidas. E mesmo aquelas parcas memórias que "permanecem" não representam a "realidade" do que foi vivido. Como aponta Bayard sobre os livros: "Não guardamos em nossa memória, livros homogêneos, mas fragmentos arrancados de leituras parciais, frequentemente misturados uns com os outros, e ainda por cima remanejados por nossas fantasias pessoais". Segundo ele, nossa memória "conserva não mais do que alguns elementos esparsos que sobrenadam, como ilhotas, dentro de um oceano de esquecimento". Com as viagens, o mesmo processo parece agir. Um exercício interessante é tentar se lembrar de alguma viagem que você fez na infância e depois confrontar suas lembranças com as de outras pessoas que estiveram presentes na mesma viagem. Provavelmente, as lembranças serão tão diversas que darão a impressão de terem sido viagens diferentes.

De qualquer forma, são estas memórias fragmentadas, parciais e fantasiosas que formam o que somos. Esta é a lição daquele filme fabuloso "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". E mesmo que esqueçamos grande parte de nossas experiências, algo delas permanece no que somos. Um professor meu disse certa vez que o que chamamos de cultura ou conhecimento é tudo aquilo que permanece depois que a gente esquece onde aprendeu (não deve ter sido exatamente isso que ele disse, mas foi o que minha memória reteve). Concordo com ele. Tudo o que vivemos, mesmo aquilo que hoje esquecemos - ou achamos que esquecemos -, contribui com pequenos fragmentos para o que nos tornamos. Baylard chama de "livro interior" este conjunto de fragmentos do que lemos ao longo da nossa vida e que compõem uma parte do que somos. Talvez possamos falar, parafraseando Bayard, em uma "viagem interior", designando o conjunto de lembranças, sentimentos e pensamentos que permanecem, mesmo fragmentados em nossa memória, em função das viagens, reais ou imaginárias, que fizemos. Tendo em vista que a linha que separa real de imaginário é um tanto quanto imprecisa, não importa se a viagem é interior ou exterior. O que importa é viajar.