quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TDAH existe?


No último dia 28 de Novembro, o neurologista Eduardo Mutarelli participou do Programa Mais Você, da TV Globo, com o objetivo de debater o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em determinado ponto do programa, Mutarelli deu as seguintes declarações (link): 

 “Todo mundo tem algum destes sintomas e a confusão é que estes sintomas são frequentes, mas eles têm que estar presentes de maneira a prejudicar. Tem autores que acham que esta doença nem existe, mas vamos admitir que existisse. Os autores alertam que têm diagnósticos demais e que as pessoas estão tomando remédios além da conta”, alertou. Em relação aos exames, o médico opinou: "É complexo a ponto de você ter que analisar o ambiente em que a criança está, em que contexto ela está. Quem tem déficit de atenção verdadeiro começa logo cedo, antes dos sete anos. Eles querem mudar agora para antes dos 12 anos”. Mutarelli disse ainda que “Os sintomas de que a gente deveria prestar atenção são os que estejam interferindo pesadamente, não particularmente, não é que a criança não vá bem em determinada matéria, mas sim em todo o contexto. As aulas hoje são desinteressantes e fora do contexto”, analisou. “Eu acho que o dia a dia de hoje é tanta correria, que é mais fácil você fazer o diagnóstico do déficit de atenção, porque você culpa um fator externo e não se envolve mais”, avaliou o especialista, enfatizando que raramente o remédio ajudará o paciente. “Com tanta falta de tempo, pais trabalhando, a criança até poderia se recuperar se fizesse o dever de casa com alguém. É mais fácil você prescrever um medicamento, chapar a criança”, finalizou.

A declaração de Mutarelli, especialmente o trecho "tem autores que acham que esta doença nem existe" gerou uma reação da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que elaborou uma resposta pública às declarações do neurologista. O conteúdo deste documento (link) pode ser resumido na idéia de que o TDAH tem uma existência física, a-temporal e universal. Os cinco principais argumentos a favor desta tese apresentados no documento são: 1) O que hoje chamamos de TDAH é descrito por médicos desde o século XVIII; 2) Os sintomas que compõem o TDAH são observados em diferentes culturas; 3) O TDAH é reconhecido pela OMS como transtorno mental e está listado na Classificação Internacional de Doenças (CID); 4) Mais de duzentos artigos científicos já foram publicados demonstrando alterações no funcionamento cerebral de portadores de TDAH; 5) Apesar das contraindicações, os medicamentos são extremamente benéficos para aqueles que realmente precisam. Apresentados os argumentos básicos, a SBP conclui:

"Diante do exposto, façamos uma reflexão. Se fosse uma doença 'inventada' ou 'mera consequência da vida moderna', seria possível o TDAH atravessar mais de um século com a descrição dos mesmos sintomas? Se o TDAH fosse apenas 'um jeito diferente de ser' e não um transtorno mental, por que os portadores, segundo pesquisas científicas, têm maior taxa de abandono escolar, reprovação, desemprego, divórcio e acidentes automobilísticos? Por que eles têm maior incidência de depressão, ansiedade e dependência de drogas? Se fosse tão somente um comportamento secundário ao modo como as crianças são educadas, ou ao seu meio sociocultural, como é possível que a descrição seja praticamente a mesma em regiões tão diferentes? O fato inquestionável é que o TDAH é um dos transtornos mais bem estudados da medicina e com mais evidências científicas que a maioria dos demais transtornos mentais."

Analisemos brevemente os argumentos apresentados pela SBP. Com relação ao primeiro, sabe-se que a homossexualidade e a masturbação foram, por muito tempo, consideradas patológicas pela medicina. O fato de certos comportamentos estarem descritos como patológicos desde o século XVII não confere "verdade" ao TDAH. Na minha opinião, todos os chamados "transtornos mentais" são invenções, possíveis somente em determinados contextos históricos e sociais. Isto não significa dizer que não existam pessoas agitadas e hiperativas, mas que considerar estes comportamentos como patologias passíveis de tratamento medicamentoso, depende mais do contexto que de qualquer comportamento da pessoa. Penso não haver nada nos comportamentos em si que determinem a diferença entre o normal e o patológico. Qualquer diagnóstico depende essencialmente de um julgamento e este "juiz" está inserido em uma sociedade que estabelece os critérios para seu julgamento, condicionando seu olhar. 

Sobre o segundo argumento, questiono: será mesmo que os sintomas do TDAH estão presentes em diversas culturas ou certos comportamentos de outras culturas são interpretados sob esta ótica? Já o terceiro argumento, na minha opinião, é o mais estúpido, afinal até a homossexualidade já figurou no CID e no DSM, além do fato de o número e a variedade dos transtornos mudar imensamente de uma edição para outra. Ou seja, estar incluido no CID ou ser reconhecido pela OMS não significa nada. Esse é, simplesmente, um argumento de autoridade: "Se a OMS disse, então deve ser verdade".


Com relação ao quarto argumento, cabe considerar que ao nos alimentarmos também produzimos alterações cerebrais. Ao ficarmos tristes também, da mesma forma que ao caminharmos pela rua. Agora, o fato de haver correlação entre certos comportamentos e certas alterações cerebrais não diz nada sobre se o comportamento é patológico ou não. As imagens do cérebro não falam por si, precisam ser interpretadas. Outro erro também muito comum  tem sido confundir correlação com etiologia ou causalidade: de fato nossa tristeza é acompanhada por uma série de alterações cerebrais, dentre elas uma diminuição no nível de certos neurotransmissores. Mas isto não significa dizer que é a baixa da serotonina que causa a depressão. Significa apenas que uma coisa acompanha a outra. Pode ser até que ocorra o contrário, que a depressão ou a tristeza cause a baixa de serotonina. Há autores que argumentam que o cérebro mais reage ao que fazemos ou pensamos do que efetivamente age. Ou seja, estamos no controle, não ele. 

Finalmente, sobre o quinto argumento, acredito que medicamentos podem ser, realmente, úteis para algumas pessoas, mas será que não está havendo um exagero na prescrição hoje em dia? A ABP nem toca na questão da medicalização, o que me leva a pensar que quem cala consente. Neste sentido, não posso discordar do Manifesto de Lançamento do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (leia aqui), quando afirma que

"Uma vez classificadas como 'doentes', as pessoas tornam-se 'pacientes' e consequentemente 'consumidoras' de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados individualmente.  Muitas vezes, famílias, profissionais, autoridades, governantes e formuladores de políticas eximem-se de sua responsabilidade quanto às questões sociais: as pessoas é que têm 'problemas', são 'disfuncionais', 'não se adaptam', são 'doentes' e são, até mesmo, judicializadas (...) A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em 'portadores de distúrbios de comportamento e de aprendizagem'".


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Comunidades terapêuticas: novos manicômios?

A mais recente batalha da "psicóloga cristã" M. L., sobre quem escrevi em post recente, contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP), se deve à posição contrária deste com relação à destinação de recursos federais para a manutenção das comunidades terapêuticas no tratamento de dependentes químicos. No manifesto "Por uma política de álcool e outras drogas não segregativa e pública" (ler aqui), o CFP afirma o seguinte:

"Preocupa-nos, de modo particular, a defesa da internação compulsória e das comunidades terapêuticas, dois modos de resolver a questão recorrendo à exclusão e a segregação. Tais soluções opõem-se, radicalmente, aos princípios que sustentam o compromisso desse governo de trabalhar pela ampliação da cidadania e inclusão de todos. Portanto, não tem como dar certo!"

Em outro documento, é ainda mais claro:

"Comunidades terapêuticas não são dispositivos de saúde pública. São a versão moderna dos antigos manicômios, seja pela função social a elas endereçada, quanto pelas condições de uma suposta assistência ofertada. Elas reintroduzem o isolamento das instituições totais, propondo a internação e permanência involuntárias, centram suas ações na temática religiosa, frequentemente desrespeitando tanto a liberdade de crença quanto o direito de ir e vir dos cidadãos. Portanto, rompem com a estrutura de rede que vem sendo construída pelo SUS, não havendo qualquer justificativa técnica para seu financiamento público".


No último dia 28 de Novembro, o CFP lançou o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Segundo o site do Conselho, este relatório traz o resultado de vistorias em 68 instituições de internação para usuários de drogas, em 24 estados brasileiros e no Distrito Federal. O documento aponta para várias formas de violação dos direitos humanos em todos os locais visitados, dentre elas, interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, dentre outras. Na conclusão, o relatório aponta para a inexistência de cuidado e de promoção de saúde nestes lugares.

A questão central para o CFP, no meu entendimento, não é se as comunidades terapêuticas devam existir ou não, mas se o governo deve ou não destinar recursos públicos para sua manutenção. Na referida carta para a Presidente Dilma, o CFP afirma que "as comunidades terapêuticas não cabem no SUS". Para a entidade, o tratamentos dos usuários de álcool e drogas "deve seguir os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, sendo também este o caminho a ser trilhado pelo financiamento: a ampliação da rede substitutiva". Neste sentido, apresenta algumas propostas concretas:

"O Brasil precisa de mais CAPS-ad, necessita que os mesmos tenham condições que os permitam funcionar vinte e quatro horas, carece de leitos em hospital geral, de casas de acolhimento transitório, consultórios de rua, equipes de saúde mental na atenção básica, de estratégias de redução de danos e de políticas públicas intersetoriais. Este deve ser o endereço dos recursos públicos!"

Na contramão das posições do CFP, está M.. Segundo texto disponibilizado em seu blog M. afirma que "pesquisas comprovam que o índice de recuperação em clínicas ou em Centros de Atendimento Psicanalíticos (CAPs), não passam de 2 a 6 % no máximo enquanto que em comunidades terapêuticas (religiosas) esse índice sobe para 32 a 42%". Primeira coisa: será que ela não está se referindo aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)? Sinceramente, nunca ouvi falar em Centros de Atendimentos Psicanalíticos. Pesquisei no Google e não encontrei nada. Devo estar mal informado. Segunda coisa: de onde ela tirou estes números? Como assim "pesquisas indicam"? Quais pesquisas? Ela não cita a fonte, nem explica o que entende por "recuperação". O que é uma pessoa recuperada? Uma pessoa que parou de beber ou de usar drogas completamente? Quanto tempo de abstinência é necessário para dizer que esta pessoa foi recuperada? Além disso, uma pessoa que diminuiu o uso não estará recuperada, de certa forma? São muitas perguntas sem respostas. Segue M.:


"O que me assusta, é um Conselho de Psicologia com total desconhecimento de tratamento e prevenção às drogas. São profissionais que não devem ter tido nenhuma experiência concreta e real com tratamento, além de teorias falíveis, que podem com a morosidade de seu tratamento levar o individuo a morte, pois em se tratando de crack, oxi, cristal a morte está muito próxima, e talvez somente o tratamento em consultório de psicologia, sem um internamento compulsório, pode não ajudar".
Inicialmente, M. desqualifica o CFP por seu distanciamento da realidade e por suas "teorias falíveis". Mas terá ela uma teoria infalível? A seguir utiliza a retórica do medo. Fala em Crack, em Oxi, em morte, como se quem fosse contra as comunidades terapêuticas fosse a favor da morte dos usuários. Concordo que, às vezes, uma internação temporária é necessária, tanto para uma desintoxicação inicial quanto diante da possibilidade da pessoa se ferir ou ferir outras pessoas. Mas este tipo de internação pode, muito bem, ser breve e  ambulatorial, o que difere imensamente das internações típicas das comunidades terapêuticas que costumam ser longas; às vezes, muito longas. No mesmo parágrafo, M. defende ainda a polêmica internação compulsória e se equivoca tremendamente ao afirmar que "somente o tratamento em consultório de psicologia pode não ajudar". Não é isso que o CFP defende! Não sei daonde que ela tirou isso... criticar a posição do CFP om argumentos com esse, demonstra sua enorme ignorância (ou será má-fé? Ou haverão intere$$es por trás?) sobre o assunto. Continua M.:


"É lamentável, que um conselho de psicologia mais uma vez, com uma minoria de psicólogos, estejam empurrando goela abaixo de uma população e de profissionais, tais decisões que não expressam, de forma alguma, a opinião de centenas de profissionais que trabalham e voluntariam na área e em comunidades terapêuticas. Como psicóloga atuante dentro de comunidades terapêuticas e como coordenadora de curso que ensina programas terapêuticos, sei que temos abusos em situações isoladas, mas estas são a minoria. Não podemos generalizar, a maioria dos internos são acolhidos de forma humanizada ao contrário do que diz o CFP. O que talvez incomode este cidadão [o presidente do CFP, Humberto Verona] seja o fato de que estes usuários tem a oportunidade de entender que não estão só, que há um poder superior capaz de devolver a sanidade e isso tem feito a diferença na recuperação".

Na minha humilde opinião, o grande problema das comunidades terapêuticas é a lógica da exclusão/ segregação, o pensamento de que a única solução possível consiste no afastamento do usuário de sua comunidade. A reforma psiquiátrica nos ensinou que existem formas alternativas, mais inclusivas, de se lidar com certas questões. Concordo com o CFP neste ponto. No entanto, o fato de existirem graves problemas de direitos humanos nas comunidades terapêuticas não significa que todas elas devam ser interditadas ou que todos os tratamentos de cunho religiosos devam ser ignorados. Seria como proibir o funcionamentos dos hospitais porque em alguns pessoas morrem por infecção hospitalar. O que deve ser combatido é a infecção hospitalar, não o hospital. Da mesma forma, o que acho que deva ser combatido são as violações dos direitos humanos, não as comunidades terapêuticas em si. Como dizem, não se deve jogar fora a criança com a água da bacia. Acredito, mesmo sendo ateu, que tratamentos de cunho religioso podem ser úteis para algumas pessoas - mas não para todos, com absoluta certeza.

Agora, uma coisa é a pessoa ou a família escolher a internação em uma comunidade terapêutica. Outra, muito diferente, é o governo contribuir financeiramente, com dinheiro público, para a manutenção destas instituições. E outra coisa, mais absurda ainda, é o governo financiar estas instituições sem estabelecer regras mínimas e sem realizar fiscalizações sistemáticas - o que equivale a entregar um cheque em branco. E parece que é exatamente isto que os donos de algumas comunidades terapêuticas pleiteiam. Concordo plenamente com a seguinte afirmação contida em uma carta aberta destinada à Pres. Dilma: "Que a escolha por uma comunidade terapêutica e pela supressão dos direitos de cidadania seja a opção de alguns é algo que só pode ser respeitada no plano da decisão individual, mas jamais como oferta da política pública e resposta do Estado à sociedade". Assim como o CFP, não concordo com a destinação de verbas públicas para entidades privadas, da mesma forma que, ideologicamente, não defendo programas como o ProUni, embora aceite que ele contribui, a curto prazo, para a ampliação do acesso ao ensino superior. Como afirma o CFP na referida carta:

"Submeter a saúde a interesses privados, à lógica de mercado, é fazê-la retroceder ao ponto que inaugurou o SUS como direito; é impor a saúde à dimensão de objeto mercantil, gerador de lucro para alguns e dor para muitos. Submeter o Estado e as políticas públicas a crenças e confissões, fere um princípio constitucional e a dimensão laica do mesmo".

Pseudo-tolerância


Terapia - Parte 2


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Psicologia Cristã - O eterno retorno


Passados dois anos da aplicação pelo CFP da censura pública à "psicóloga missionária" Rozângela Justino por defender publicamente e atuar no "tratamento" de homossexuais (saiba mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), mais uma polêmica relacionada à uma psicóloga cristã e homofóbica vêm à tona. A "psicóloga" da vez é M. L., criadora do site Psicologia Cristã, autora dos livros "Psicopatas da fé", "Entrevista motivacional: uma abordagem cristã" e "Auto-sugestão divina" e organizadora da Expocristo. Segundo o referido site, M. "é uma Psicóloga Clínica, formada em 1996, pela universidade Tuiuti do Paraná. Pós graduada em saúde mental, com curso de extensão em sexualidade humana, dependência química, cursos de entrevista motivacional, psicossomática, psicodiagnóstico, psicoterapia breve, arte terapia, bibliodrama aconselhamento Pastoral e Teologia. Estagiou, a convite do Governo dos Estados Unidos, na Mont Sinai Hospital, em New York, na Divisão Internacional de Atenção Primária a Saúde. Ministra cursos e palestras e possui experiência de mais de 13 anos em clinica e dependência química". Currículo admirável, não? Mas na seção "Quem sou eu" de seu blog, fica evidente que, antes de tudo, ela é cristã. E é este cristianismo, ao que tudo indica, que guia sua "teoria" e sua prática. Em uma entrevista, M. chega a dizer que tudo em sua vida "está subordinado á palavra de Deus inclusive minha profissão, creio ser por isso que sou, graças a Deus, bem sucedida".

Bem, a polêmica começou com uma carta que M. escreveu ao deputado Marco Feliciano (que é pastor e filiado ao PSC) questionando o apoio do Conselho Federal de Psicologia ao Kit Anti-homofobia. Segue um trecho desta carta, que pode ser lida na íntegra aqui.

"Uma coisa é aceitar a pessoa como ele é outra coisa é eu ser obrigado a ser como ele, para não me taxarem de homo fóbico. Se começarmos ficar refém dessas atitudes desrespeitosa com receio de perdermos voto, vamos transformar nosso país em um BRASIL amoral, sem lei, sem regras sem princípios e sem ética. Tudo em nome de um prazer seja ele qual for isso é muito sério". (Está exatamente assim na carta, com os erros de português e tudo mais. E eu retirei este trecho do blog dela, não de um outro site que poderia alterar o conteúdo da carta para prejudicá-la. Ok, eu questiono a norma culta, mas em uma carta aberta endereçada a um deputado, um mínimo de cuidado é necessário. Ou não?)

Nos comentários à carta em seu blog, algumas pessoas criticaram sua posição. Segue uma de suas geniais respostas (e percebam que os erros de português permanecem):

"Quero dizer aos psicólogos que me afrontam, que a partir do momento, que ENTRAM aqui, para dar sua ridícula opinião, se mostram preconceituosos com minha crença, minha Fé, portanto se me acham antiético, VOCÊS são porque estão SAÍNDO em defesa de UMA causa, que nem sabe direito qual é. CRITICAM-ME PORQUE ODÉIAM CRENTES, E PORQUE OS CONSULTÓRIOS DE PSICÓLOGOS QUE SE MOSTRAM CRISTÃOS, ESTÃOS CHEIOS ENQUANTO OS DOS SENHORES ESTÃOS AS MOSCAS,TENDO QUE TRABALHAR NO SERVIÇO PÚBLICO, O DIA INTEIRO PARA GANHAREM UMA MERECA RSS. Essa é a diferênça de Servir a Deus, ele nos prospera e nos honra, Nunca disse que sou homofóbica.vocês estão dando diagnóstico, isso é anti ético hemmm, moçada , cresçam, to nem aí pra vcs , pegaram a pessoas errada, naõ dependo da psicologia para viver. Graças a Deus" (Eu simplesmente copiei e colei. Está exatamente assim, confiram aqui. Só não entendi uma coisa: se o consultório dela está sempre cheio, por que, afinal, ela agradece a deus por não depender da psicologia para viver? E qual seria o problema, então, em ter o registro profissional cassado pelo CFP? A única explicação que encontro é que, ao afirmar-se psicóloga, ela acaba por ganhar de seus fiéis uma maior autoridade, pretensamente científica, para expressar suas idéias, basicamente religiosas. Por fim, chamo a atenção de vocês para a louvável atitude cristã que M. demostra ao rir daqueles psicólogos que "ganham uma merreca" e não estão tão prósperos como ela. Muito bonito isso...).

O advogado Tiago Morini rebateu, escrevendo uma carta aberta criticando M. Não tenho como discordar dele! Leia na íntegra aqui. Segue um trecho em que ele comenta a afirmação dela, transcrita acima:

"Eu particularmente li esse trecho algumas vezes e conferi para ter certeza de que foi escrito por uma psicóloga. Sua afirmação beira o absurdo – caso não tenha ultrapassado tal linha. Como eu mencionei anteriormente, todos os “privilégios” concedidos àqueles que forem discriminados ou sofrerem preconceito por sua opção sexual – inclusive os HETEROssexuais – com a PLC122, seriam postos no mesmo patamar dos religiosos que sofrerem com tais injustiças por serem religiosos. Uma psicóloga que teme, infundadamente, ser obrigada a se tornar homossexual porque pessoas lutam contra serem ofendidas e humilhadas diariamente é quase uma piada da qual não disponho senso de humor para rir".

Nos comentários, M. responde Tiago, partindo para o ataque:

"Você é um ignorante, eu disse que não faço tratamento para mudar orientação de ninguém, mas no twitter , não podemos escrever uma carta não é mesmo. Vocês sim são preconceituosos , olha o que fazem comigo, estão invadindo minhas redes, eu não invado a de vocês. Mas sou forte decidida, não tenho medo de ninguém, o conteúdo do Kit, é péssimo, então questiono sim o CFP, minha opinião, meu direito ainda que me cassem .. e você um aproveitador está pegando carona, ótimo estão só me promovendo a mim e ao Deputado @marcofeliciano que tive a honra de conhecer. NÃO SOU HOMOFÓBICA, mas tenho verdadeira vergonha de pessoas que fazem o que fazem, ódio está do lado de vocês não do meu, não aceitam uma critica, bem vindo ao mundo das igualdades é assim mesmo. cresçam somos todos iguais" (Adorei, especialmente, a frase: "estão só me promovendo a mim") 

E a guerra continua... de que lado você está? Mantenho minha opinião e minhas dúvidas, que expressei há dois anos sobre o caso Rozângela Justino: "A Psicologia brasileira vem lutando a décadas para ser encarada pela sociedade como uma profissão séria e 'científica', muito embora inúmeros profissionais insistam em contrariar isso, inserindo em suas práticas diversos procedimentos místicos e religiosos. Só que se fossemos levar à cabo a cientificidade da Psicologia e eliminar tudo o que não é científico, certamente não ia sobrar muita coisa. A psicanálise, inclusive, estaria fora. O que fazer? Como distinguir as práticas científicas das alternativas? E, mais importante, o que fazer com esta distinção? Eliminar tudo o que não seja científico ou aceitar a não-cientificidade da maioria das práticas psicológicas? Pra variar, não tenho respostas, só perguntas.O CFP, como entidade representativa dos psicólogos, ao contrario destes individualmente, deve ter uma posição clara a respeito deste e de outros assuntos polêmicos. Ficar em cima do muro não ajudaria em nada. E o fato é que o CFP é dominado pelos sócio-históricos, psicólogos marxistas de esquerda. E isto é um elogio! E os psicólogos-sócio-históricos-do-CFP tem uma posição clara a respeito do assunto: o psicólogo não pode e não deve trabalhar na "conversão" de homossexuais [e nem discriminá-los de nenhuma forma, acrescento]. E ponto final! Foi uma decisão baseada na perspectiva dos direitos humanos e contra a homofobia. Apoio totalmente o CFP nesta empreitada contra a discriminação, seja ela qual for. E esta é uma posição política, não científica!". Ao mesmo tempo, aceito que, em última instância, ao lutar contra o preconceito, exercemos preconceito contra o preconceituoso, chegando, às vezes, a sentir ódio daqueles que odeiam. É paradoxal! E isto aponta para a impossíbilidade de consenso, nesta e em outras questões polêmicas. Mas isso não impede de continuarmos lutando por aquilo que acreditamos. E eu luto contra a homofobia!


O holocausto brasileiro: a loucura da razão


O jornal Tribuna de Minas publicou esta semana uma série de reportagens intitulada Holocausto brasileiro: 50 anos sem punição, escrita pela premiada jornalista Daniela Arbex, cujo objetivo foi trazer à tona,  através do depoimento de sobreviventes e testemunhas, as  atrocidades ocorridas no interior do Hospital Colônia de Barbacena. Este verdadeiro campo de concentração para "loucos" (conceito que incluía homossexuais, militantes políticos, alcoolistas, mendigos, etc) foi transformado, na década de 80, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), ainda em funcionamento. O local abriga também o Museu da Loucura, inaugurado em 1996. As reportagens da Tribuna são ricamente ilustradas por fotos incríveis e chocantes retiradas na década de 60 pelo fotógrafo Luiz Alfredo, na época da revista "Cruzeiro". Segue um trecho da primeira reportagem e, abaixo, algumas imagens feitas por Alfredo no interior da Colônia. Que elas sirvam de lembrete para que erros como esses não sejam cometidos novamente...

"Não se morre de loucura. Pelo menos em Barbacena. Na cidade do Holocausto brasileiro, mais de 60 mil pessoas perderam a vida no Hospital Colônia, sendo 1.853 corpos vendidos para 17 faculdades de medicina até o início dos anos 1980, um comércio que incluía ainda a negociação de peças anatômicas, como fígado e coração, além de esqueletos. As milhares de vítimas travestidas de pacientes psiquiátricos, já que mais de 70% dos internados não sofria de doença mental, sucumbiram de fome, frio, diarréia, pneumonia, maus-tratos, abandono, tortura".

















Para ver outras fotos clique aqui.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Resenha: A mulher trêmula - Siri Hustvedt




Esta semana finalizei a leitura do recém-lançado livro "A mulher trê mula: uma história dos meus nervos" (Companhia das Letras, 2011, 204 pgs), da escritora Siri Hustvedt. Sensacional! Este ensaio autobiográfico começa com o relato de uma terrível tremedeira que a autora teve ao proferir um discurso em homenagem ao seu pai, falecido dois anos antes. Segundo ela, seus braços e mãos se movimentavam convulsivamente, ao mesmo tempo que, curiosamente, sua voz continuava sendo emitida com clareza e segurança. 

Este episódio - a que se seguiriam outros - desencadeia em Siri a necessidade de entender o que se passou. Segundo ela, "a curiosidade intelectual sobre uma doença que estamos enfrentando nasce sem dúvida de um desejo de domínio. Se eu não podia me curar, talvez conseguisse pelo menos começar a me entender melhor". Siri empreende, então, uma busca por explicações para sua condição. Demonstrando enorme erudição, a autora passeia pelas teorias psicanalíticas com a mesma desenvoltura que pelas explicações neurocientíficas, psiquiátricas e sociológicas, transitando da literatura para a ciência com uma habilidade invejável. Indo mais fundo, discorre até mesmo sobre o problema mente/cérebro, fazendo críticas pertinentes à neurociência e à psiquiatria moderna, que pretendem reduzir tudo ao cérebro. Afirma Siri: ‎"Como ocorre com frequência, as pessoas preferem respostas fáceis. No ambiente cultural de hoje, uma doença cerebral orgânica soa reconfortante. Meu filho não é louco: o cérebro dele apresenta problemas".

Mas Siri não se furta de criticar também a psicanálise. Para ela, "o fato de Freud estar certo no tocante a alguns aspectos da mente não impede que ele se equivoque em relação a outros. E haveria alguma razão para insistir em adotar ou rejeitar uma teoria como um todo?" Penso exatamente como ela. Não acredito que nenhuma teoria sozinha seja capaz de dar conta da complexidade humana e é por esse motivo que não me filiei a nenhuma abordagem psicológica até hoje. Não que eu seja a-teórico, mas tento ser crítico e receptivo a todas as teorias. Como li certa vez, não me lembro bem aonde, atuar dogmaticamente é agir como o alfaiate que costura roupas somente de um tamanho e espera que todos caibam nelas. Acredito que uma postura anti-dogmática como a apresentada por Siri faria muito bem à alguns psicólogos. Neste mesmo sentido, ela afirma: "Jamais fui capaz de aceitar que qualquer sistema, por mais sedutor que pareça, possa abranger as ambiguidades inerentes a ser uma pessoa no mundo"


Um ponto importante de sua narrativa refere-se à questão de referir-se à sua "doença" na primeira ou na terceira pessoa. É comum, em meus atendimentos, escutar pacientes dizendo frases do tipo "eu não fui trabalhar por causa da depressão" ou "a bulimia me fez vomitar" ou "comprei demais por causa do transtorno bipolar". Os rótulos psiquiátricos são tratados quase como entidades que os invadem e os obrigam a fazer determinadas coisas. O indivíduo parece ter pouca responsabilidade sobre seus atos, como se dissessem "não fui eu, foi a Depressão" ou "não fui eu, foi meu Cérebro" (da mesma forma que algumas pessoas de certas religiões afirmam "não fui eu, foi o demônio"). Outras pessoas, na contramão, afirmam SER depressivas, SER ansiosas, SER bipolares. Não é algo que elas têm, mas algo que elas são. O "transtorno" não vem de fora, mas surge de dentro. Enfim, a pessoa É o transtorno. Sobre esta questão Siri afirma:

‎"Toda doença possui uma característica alienante, um sentimento de invasão e perda de controle evidente na linguagem que utilizamos para falar dela. Ninguém diz 'sou um câncer' ou mesmo 'sou canceroso', apesar de não haver de fato invasão de vírus ou bactéria; o que muda é o comportamento das células do corpo. A pessoa têm um câncer. No entanto, doenças neurológicas e psiquiátricas, são diferentes, pois com frequência atacam a fonte do que o indivíduo imagina ser sua personalidade. 'Ele é epilético' não soa estranho para nós. Numa clínica psiquiátrica os pacientes costumam dizer 'sou bipolar' ou 'sou esquizofrênico'. A doença e a personalidade se identificam inteiramente nessas sentenças".

Quase no final do livro, analisando a enxaqueca que sofre desde a infância, afirma: "A dor de cabeça sou eu, e compreender isso tem sido minha salvação. Talvez o truque agora seja integrar a mulher trêmula, reconhecer que ela faz parte de mim". Em seu tortuoso processo de conhecimento de si e do mundo, Siri nos presenteia com importantes reflexões sobre a memória e o esquecimento, sobre a saúde e a doença, sobre a mente e o cérebro, sobre a vida e a morte e finaliza o livro dizendo: "Em maio de 2006 eu comecei a falar sobre o meu pai. Assim que abri a boca, uma tremedeira violenta tomou conta de mim. Tremi naquele dia, tremi de novo em outros momentos. Eu sou a mulher trêmula".

Siri (à direita) com a filha e o marido, o escritor Paul Auster

Top 5 - Filmes críticos à indústria farmacêutica


1- Jardineiro fiel (EUA, 2005, dir: Fernando Meirelles)

Sinopse: Um diplomata inglês que vive na África tem sua esposa brutalmente assassinada. Quando decide investigar, descobre que sua luta é contra a ganância de uma grande empresa farmacêutica.

2- Sicko - SOS Saúde (EUA, 2007, dir: Michael Moore)

Sinopse: Um painel do deficiente sistema de saúde americano. A partir do perfil de cidadãos comuns, somos levados a entender como milhões de vidas são destruídas por um sistema que, no fim das contas, só beneficia a poucos endinheirados. Ali vale a lógica de que, se você quer permanecer saudável nos Estados Unidos, é bom não ficar doente. E, depois de examinar como o país chegou a esse estado, o filme visita uma série de países com sistema de saúde público e eficiente, como Cuba e Canadá.

3- Big Bucks, Big Pharma (EUA, 2006, dir: Amy Goodman)

Sinopse: Este documentário investiga a multi-bilionária indústria farmacêutica para expor as formas insidiosas com que as doenças são usadas, manipuladas e, em alguns casos, criadas, visando o lucro, não a saúde dos consumidores. Para assistir este filme legendado clique aqui.

4- Amor e outras drogas (EUA, 2010, dir: Edward Zwick)

Sinopse: Jamie Randall é um sedutor incorrigível do tipo que perde a conta do número de mulheres com quem já transou. Após ser demitido do cargo de vendedor em uma loja de eletrodomésticos, por ter seduzido uma das funcionárias, ele passa a trabalhar num grande laboratório da indústria farmacêutica. Como representante comercial, sua função é abordar médicos e convencê-los a prescrever os produtos da empresa para os pacientes. Em uma dessas visitas, ele conhece Maggie Murdock, uma jovem de 26 anos que sofre de mal de Parkinson. Inicialmente, Jamie fica atraído pela beleza física e por ter sido dispensado por ela, mas aos poucos descobre que existe algo mais forte. Maggie, por sua vez, também sente o mesmo, mas não quer levar adiante por causa de sua doença.

5- Geração Prozac (Alemanha/EUA, 2001, dir: Erik Skjoldbjaerg)

Sinopse: Elizabeth Wurtzel é uma brilhante estudante, que tem planos de estudar Jornalismo na conceituada universidade de Harvard. Entretanto problemas familiares fazem com que Elizabeth entre em profunda depressão, o que coloca seus planos em risco. Aos poucos suas noites de trabalho, sempre regadas a drogas, e sua instabilidade emocional a afastam de Ruby, sua melhor amiga, e também de seu namorado. Decidida a procurar ajuda profissional, Elizabeth marca uma consulta com a Dra. Diana Sterlin, que lhe receita o antidepressivo Prozac.

Menção honrosa

A indústria do Orgasmo (EUA, 2009)

Sinopse: A diretora Liz Canner investiga a trajetória das indústrias farmacêuticas na corrida para produzir um remédio contra a disfunção sexual feminina, o que se espera que seja o primeiro “Viagra” para mulheres. Mas, o que promete uma atividade sexual mais intensa para mulheres, garante bilhões de dólares para empresários do ramo. Para assistir a este filme, legendado, clique aqui.

Menção horrorosa

Efeitos colaterais (EUA, 2005)

Sinopse: Karly Hert passou seus últimos 10 anos vendendo droga... legalmente. Apesar dos conflitos todos os dias sobre os valores entre a indústria farmacêutica e a indústria visando o lucro à custo das pacientes, Karly foi seduzida pela lucrativa américa corporativa. Zach Danner convence Karly a ser leal a seus valores e sair desse emprego lucrativo e vazio. Enquanto o relacionamento deles se desenvolve, Karly cria um plano para sair dessa. Mas nunca é tão fácil quanto se parece. Comentário: a proposta do filme é boa, mas o filme em si é horrível. Roteiro estúpido, cenários toscos, atuações péssimas, direção deprimente, enfim, um lixo.

E em breve:

Pharm Girl (EUA, s/d)- Segundo o site da Folha de S. Paulo, neste filme, sem previsão de estréia, a atriz Reese Witherspoon viverá a funcionária de um laboratório farmacêutico que "descobre os pontos vulneráveis da companhia e consegue, assim, subir na carreira". 


Update 11/07/2012 - Assisti esta semana no GNT um excelente documentário holandês chamado "Meu primeiro Viagra" (em inglês Erectionman, 2009, 52 minutos), do diretor, Michael Schaap, que é uma espécie de versão masculina do Indústria do orgasmo (Orgasm.Inc). Não encontrei nenhum link para assistí-lo ou baixá-lo, mas deixo aqui a dica. Se alguém encontrá-lo para baixar me dê um toque por e-mail. Segue a sinopse do site do GNT: "O diretor do documentário é um holandês de 40 anos que decide experimentar pílulas como o Viagra. Ele faz uma investigação sobre o surgimento da disfunção erétil como doença e o lançamento do Viagra em 1998". Leia mais sobre este filme aqui.

Homo Automaticus



Segue abaixo, na íntegra, um artigo espetacular da jornalista Eliana Brum, publicado na Revista Época do dia 24 de Outubro deste ano. O artigo condensa toda uma complexa discussão de uma forma bastante interessante e clara.

Os robôs não nos invejam mais

Eliane Brum – Revista Época

Os primeiros robôs da ficção tinham um conflito: eles eram criados e programados para dar respostas automáticas e objetivas, mas queriam algo vital e complexo. Em algum momento, às vezes por uma falha no sistema, eles passavam a desejar. E desejar algo que lhes era negado: subjetividade. Condenados às respostas previsíveis, revoltavam-se contra a sua natureza de autômato. Humanizar-se, sua aspiração maior, significava sentir angústia, tristeza, amor, raiva, alegria, dúvida e confusão. Os robôs da modernidade queriam, portanto, a vida – com suas misérias e contradições. Ao entrar em conflito e ao desejar, os robôs já não eram mais robôs, mas um algo em busca de ser. 

Um ser humano, portanto. A partir desta premissa, grandes clássicos da ficção científica da modernidade foram construídos, como O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov, que depois virou o filme estrelado por Robin Williams. Hoje, a pós-modernidade nos encontra em uma situação curiosa: os humanos querem se tornar robôs. Cada vez um número maior de pessoas se oferece em sacrifício, imolando sua vida humana, ao deixar-se encaixar em alguma patologia vaga do manual das doenças mentais e medicalizar o seu cotidiano para se enquadrar em uma pretensa normalidade. E assim dar as respostas “certas”.



Basta olhar ao redor com alguma atenção para perceber que, nas mais variadas esferas do nosso cotidiano, esperam-se respostas automáticas e objetivas. Seja na área amorosa e no “desempenho” sexual, seja no comportamento profissional. Até mesmo dos bebês espera-se que atendam às classificações previstas nos muitos compêndios sobre o que esperar de um filhote humano a cada fase. Vivemos no mundo dos manuais de todos os tipos, difundidos pelo mercado editorial e reproduzidos e amplificados pela mídia, que nos ensinariam um “modo de nos usar”, com o objetivo de alcançar um tipo específico e previamente anunciado de resultado.Dar respostas automáticas e objetivas diante de situações determinadas nos daria um lugar no mundo dos “normais”. E dos bem-sucedidos, já que hoje a normalidade é determinada por um tipo particular de sucesso. Tornar-se robô na vã tentativa de apagar a subjetividade humana é, portanto, o que uma parte da humanidade ocidental tem desejado para si – e se esforçado para impor aos filhos. E nisso tem a ajuda decisiva da indústria farmacêutica, que possivelmente nunca tenha ganhado tanto dinheiro com psicofármacos como hoje, e de um certo tipo de profissional da medicina que manipula o “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM-IV)” como uma Bíblia. 

A tese acima é o ponto de partida de um livro muito interessante lançado há pouco, chamado “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” (Via Lettera). A obra é organizada por Alfredo Jerusalinsy e Silvia Fendrik, dois dos mais brilhantes psicanalistas da atualidade. Mas, entre os nove autores brasileiros, nove argentinos, um mexicano e um francês, não há apenas psicanalistas, mas também psiquiatras, neurologistas e pesquisadores da área da neurociência. Em alguns capítulos a linguagem é árida, e a obra se beneficiaria de uma edição mais rigorosa e cuidada. Ainda assim, o tema é irresistível e a leitura abre muitas janelas de reflexão. Em certa medida, o livro responde às provocações de outra obra, “O Livro Negro da Psicanálise” (Civilização Brasileira), em que a psicanálise é violentamente atacada como “charlatanismo”. Mas, como os autores anunciam – e cumprem – “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” não é um mero contra-ataque, o que serviria apenas para empobrecer um dos debates mais relevantes da nossa época. E sim uma excelente oportunidade para discutir com inteligência e profundidade algo que diz respeito a todos nós.


Afinal, não é o caso de demonizar a indústria farmacêutica e a psiquiatria, como se tivessem o poder superior de nos fazer acreditar que os sentimentos e as contradições inerentes à condição humana constituíssem um estorvo dos quais fosse preciso se livrar com a maior rapidez possível. Tampouco radicalizar afirmando que os medicamentos não têm função alguma nem possam representar uma conquista em determinadas situações. É importante assinalar: existem casos em que os remédios são benéficos e podem ajudar a pessoa a sair de um estado de paralisia. E há bons profissionais que são parcimoniosos e responsáveis no seu uso, em geral por tempo determinado e com rigoroso acompanhamento, para que os efeitos colaterais das drogas não se tornem mais nocivos do que o problema que motivou o seu uso. Infelizmente, a realidade nos mostra que esta não tem sido a regra.

Vivemos hoje uma patologização da vida humana e um uso indiscriminado, abusivo e cada vez mais precoce de psicofármacos. A importância deste livro é nos ajudar a compreender o que isso diz sobre a forma como estamos vivendo as nossas vidas, sobre a qualidade do nosso desejo e sobre a lógica socioeconômica que tem movido nosso mundo. Para isso, de nada valeria trocar um dogma por outro. E o livro tem o mérito de não fazê-lo.

Se muitas vezes a ciência é colocada no lugar de divindade e damos aos médicos o poder de determinar como vamos viver – e como vamos morrer –, é porque nós permitimos que isso aconteça. Porque é mais fácil transferir a um outro a responsabilidade por escolhas que deveriam ser nossas. Ainda que seja difícil escapar das engrenagens do mundo, especialmente quando elas enriquecem as grandes corporações, em alguma medida é justo pensar que temos, se não liberdade, pelo menos uma paleta de alternativas. Com todos os riscos que implica escolher contra a lógica dominante.

Por exemplo. Quando os pais levam uma criança que não está dando as respostas “adequadas”, seja em casa ou na escola, a um psiquiatra ou a um pediatra ou a um neurologista ou a qualquer outra especialidade e saem de lá com um diagnóstico e uma receita de psicofármaco, não me parece que estão sendo enganados. Acredito que a ética do médico pode ser questionada. Mas acredito também que os pais, assim como cada um de nós, procuram – e encontram – o profissional que vai dizer aquilo que gostariam de ouvir.

Hoje parece mais fácil para os pais lidar com um diagnóstico de transtorno psiquiátrico e tentar calar seus filhos com medicamentos do que empreender uma travessia que seguramente será mais espinhosa, exigirá tempo e dedicação maiores e poderá levar a respostas impossíveis de prever – quando não a novas perguntas. Da forma como hoje é colocado, o “transtorno” mental aparece como algo que está convenientemente fora, não tem nada a ver nem com o paciente, nem com o funcionamento da família. Sem contar que parte dos pais adora delegar a difícil tarefa de serem pais – e parte dos médicos adora assumir a prazerosa tarefa de ser Deus.


No capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história. Uma psicopatologia pós-moderna para a infância”, Alfredo Jerusalinsky afirma: “Nos últimos trinta anos, tem havido um deslocamento das categorias nosográficas (de descrição das doenças) para o terreno dos dados. Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. 

E, mais adiante: “De nossa parte, continuamos sustentando uma psicopatologia interpretativa, o que quer dizer não nosográfica, porque não depende de dados, não depende de sintomas, mas de deciframento. (...) Colocam na cabeça dos pais que eles não têm nada para ver nem entender e, então, eles se comportam como se não tivessem nada para ver nem entender; consequentemente a criança fica condenada aos automatismos mentais. Mas, claro, para eles só existem os automatismos mentais, então o que é preciso é trocá-los por outros”. 

Quando as crianças apresentam um comportamento não esperado (esperado por quem e para quê?), a resposta predominante de pais, médicos e professores têm sido não escutar, mas transformar expressões em transtornos porque o que a criança diz, por palavras, gestos ou ações, pode transtornar os pais. E por isso precisa ser calado o mais cedo e o mais rápido possível. Em nome desta lógica, esquece-se de que somos seres dotados de inteligência e são poucos os que se questionam: se nunca houve tantos diagnósticos psíquicos (e, portanto, tantas patologias), se nunca existiram tantos medicamentos disponíveis para tratar essas doenças ou distúrbios, por que o número de casos não para de crescer e estaríamos vivendo verdadeiras epidemias de doenças mentais, transtornos de comportamento ou como queiram chamar essas síndromes que têm se multiplicado como coelhos? Não seria legítimo questionar: então, os remédios não curam? 

Se aceitarmos como verdade única que o problema se resume a uma disfunção química no nosso cérebro, alheia ao viver, algo da ordem dos mecanismos fisiológicos, como o desarranjo de um sistema robótico, não bastaria “corrigir” com drogas para ser “curado”? Pelas estatísticas, tão valorizadas e difundidas pela própria indústria, sabemos que não é isso o que está acontecendo. O número de “depressivos”, “bipolares” e doentes do “pânico”, no mundo dos adultos, assim como o número de crianças com “transtorno de hiperatividade e déficit de atenção” e até mesmo com “autismo” não para de crescer. Se os remédios são tão eficazes e os diagnósticos tão fáceis de fazer como aqueles testes que a imprensa costuma publicar, do tipo “descubra se você é depressivo”, os doentes não deveriam diminuir em vez de aumentar? Afinal, sempre que a ciência descobriu a cura ou uma vacina para as doenças, iniciava-se um processo de redução no número de casos até a total erradicação. 

Sobre este aspecto, os organizadores levantam uma questão interessante na apresentação da obra: “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de ‘doentes mentais’”.

Para complementar essa ideia, vale a pena ler a ótima entrevista feita pela jornalista Cláudia Collucci na Folha de S. Paulo de 18 de outubro. Sob o sugestivo título “Estamos dando veneno para as crianças”, Marcia Angell, professora titular do departamento de Medicina Social da Escola Médica de Harvard, critica a indústria farmacêutica por estimular o uso de medicamentos psiquiátricos em pacientes infantis. E também em adultos. Angell diz: “As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: ‘Você precisa perder peso, fazer mais exercícios’. E a pessoa diz: ‘Eu prefiro o remédio’. E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso. Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base”.


O que vale a pena perceber é que ninguém é normal, mesmo. Basicamente porque não há como saber o que seja isso. O que não é razão para sermos todos tratados como portadores de algum transtorno mental desde bebê. Como afirmam Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik: “A generalização e multiplicação dos signos psicopatológicos preparam o território para a expansão industrial na fabricação de psicofármacos, que passam a ser consumidos em massa. Nasce assim uma hipocondria dos estados de humor, dos afetos, das dúvidas, dos desejos, das tristezas. As variações mentais e as singularidades pessoais são comparadas com uma média estatística que cria uma medida comum inexistente na realidade. Esse ‘boneco padrão’ subjacente descreve uma ‘normalidade’ definida pela uniformidade. Comparados com ele, viramos todos ‘doentes mentais’”.

A tentativa de classificar toda singularidade como anormalidade pode se tornar uma grande comédia. Em 1992, o psicólogo clínico britânico Richard Bentall propôs em um artigo para o “Journal of Medical Ethics” o seguinte: classificar a felicidade como distúrbio psiquiátrico e incluí-la no manual dos transtornos mentais (DSM-IV). Richard escreveu com grande rigor acadêmico e citou 32 artigos de importantes revistas científicas britânicas. Passo a passo, ele prova que a felicidade é um estado estatisticamente anormal, acompanhado por sintomas como disfunção cognitiva e marcado por uma percepção distorcida da realidade. 

Os pacientes afetados por esse distúrbio apresentam um quadro de euforia, sem contrapartida real, podendo resultar em desvantagem adaptativa. Sem contar que há uma relação significativa da felicidade com obesidade e ingestão de álcool. Richard propõe que os psiquiatras busquem tratamento para a felicidade e sugere até um nome para classificá-la como doença mental: “major affective, pleasant type”. A história é deliciosa porque Richard percebeu que, para evidenciar o absurdo que estava – e continua – sendo praticado, só mesmo assumindo o discurso psiquiátrico, mas pelo avesso. Se a tristeza é tratada como uma anomalia que pode e precisa ser curada, por que não a felicidade?

Ao olhar hoje para nós, com seus olhos artificiais, com o que um robô se depararia? Acho que uma das respostas pode ser encontrada em “Wall-e”, a bela animação da Pixar. Aliás, fica uma dica das mais agradáveis: pegue na locadora estes dois filmes sobre robôs, mas de épocas diferentes, “O Homem Bicentenário”, inspirado no texto de Isaac Asimov publicado na década de 70, e “Wall-e”, que recebeu o Oscar de melhor animação em 2009. “Wall-e” é um filme brilhante, “O Homem Bicentenário” deixa a desejar, mas juntos podem ser um ponto de partida interessante para pensar – sozinho, com os amigos ou com a família – sobre as mudanças ocorridas nas últimas décadas na forma de enxergar a nós mesmos.

“O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” afirma que o ideal pós-moderno é o pensamento simplificado: memória reduzida + seleção de respostas corretas. Dizem Alfredo e Silvia: “Enquanto a cibernética eletrônica procura engenhosamente capacitar seus robôs para responder a questões cada vez mais aleatórias, e até para formular perguntas, nós humanos somos levados a uma ‘padronização’ do controle da ‘mente’. Amparados em padrões diagnósticos cada vez mais amplos – depressão, TOC, Asperger etc –, incluem-se os mais heterogêneos conjuntos de sintomas justificando deste modo a utilização dos mesmos psicofármacos. (...) Em um mundo em que o sujeito se desvanece ao redor da promessa de ter respostas para tudo, curiosamente surgem e proliferam as ‘patologias’ (...). O modelo atualmente proposto substitui o saber pela informação, a falta pela completude, a busca pela resposta ‘já’, a singularidade da diferença pela repetição do idêntico, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza garantida do presente. O ideal seria que adaptássemos nossa experiência àquilo que, com toda a propriedade, poderia se chamar: Homo Automaticus?”. 

Um dos traços marcantes da modernidade é a descoberta de que nossa consciência é apenas uma pequena parte do que somos. Há um vasto mundo inconsciente ou pré-consciente que nos constitui. Assim, não deixa de ser curioso, ainda que bastante lógico, que a partir da descoberta transformadora de que a consciência nem nos governa nem é nosso “eu” total, de repente desejamos nos robotizar para escapar da aventura ao mesmo tempo extraordinária e assustadora que é criar uma vida. Será que o melhor acordo que podemos fazer com nós mesmos é engolir pilulinhas na tentativa de manter um ilusório controle sobre nossa mente e sobre o outro, quando se trata de nossos filhos? Pílula para comer ou para não comer, pílula para dormir ou para ficar acordado, pílula para ter desejo sexual ou para diminuir o desejo sexual, pílula para se acalmar ou para estimular... Como se a condição humana, com todas as suas ambiguidades, pudesse ser reduzida ao mero ajuste de um corpo-máquina. 

O crescimento dos distúrbios mentais na mesma proporção das supostas pílulas da felicidade e de outros “ajustadores” da mente mostra que há algo que não fecha nessa conta. Enquanto puder, a indústria farmacêutica vai continuar ganhando com a transformação de qualquer sofrimento em patologia e com a consequente medicalização da vida. E, quando (e se) algo mudar, vão ganhar com outra coisa. Mas nós, nós e nossos filhos, só temos uma vida para viver da forma mais ampla e rica possível. Convém não perdê-la na tentativa de anular a singularidade que nos pertence. 

Como dizem Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik, os organizadores de “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”: “Os robôs não precisam se preocupar, já que hoje em dia parecem ser eles os que encarnam o ideal: sem desejos, sem envelhecimento, sem falhas, com automatismos garantidos para cada situação específica, sem vacilação, tudo positivado em um pensamento ‘positivo’. No entanto, devemos sublinhar que, enquanto aqueles robôs dos anos 1930 representavam em sua rebelião os ideais de um modernismo romântico, os atuais ‘transtornos’, sob suas formas toxicomaníacas, bulímicas, anoréxicas, de padrões sociais de sucesso ou de quimiopsiquiatria, representam a obediência recoberta por um falso manto de liberdade”. 

Por mais que tudo nos empurre para a patologização e a medicalização da vida na busca de uma normalidade inexistente, acredito que há algo do humano que resiste, que não é calado e que grita, ainda que dopado. É por isso que a conta não fecha. Porque, por mais que se divulgue a crença – e é neste momento que a ciência se coloca no lugar da religião – de que é possível controlar o sofrimento e garantir a felicidade, a humanidade que mora em nós desmascara essa ilusão dia após dia. E por isso é preciso encontrar uma nova panaceia para dar conta de cada novo “transtorno”. 

Se a dor é inerente à vida, ela necessariamente não é algo ruim, mas algo que nos impele a buscar um jeito de viver que faça mais sentido para nós. Se a confusão pode ser infernal no cotidiano, com todas as dúvidas que ela traz, não há como achar algo ou a si mesmo sem ela, para em seguida nos perdermos de novo, porque é assim que alcançamos outros mundos também dentro de nós. A angústia não deve ser silenciada, mas ouvida, porque está nos dizendo algo que nos diz respeito. E, se você for pai ou mãe, é sua a responsabilidade de lidar com as questões trazidas por seus filhos, sejam em forma de palavras, de gestos ou de comportamento. É sua – e não dos médicos – desde que você escolheu ser pai ou mãe – e até que suas crianças progressivamente assumam a responsabilidade pelos rumos da própria vida. E, acredite, a melhor forma de lidar ainda começa por escutar. Escutar de verdade. 

É na incompletude, que não se fecha com nenhuma pílula, que talvez possamos, individual e coletivamente, empreender uma busca sem nenhuma garantia, como são todas as buscas, que nos leve a criar uma vida que ainda possa fazer um robô aspirar a uma existência humana.