quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Eu sou meu cérebro? Reflexões sobre liberdade e determinismo


As neurociências tem se apresentado, na atualidade, como um conjunto de conhecimentos capaz de explicar praticamente tudo: o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, o prazer e a dor, o preconceito e a tolerância, a saúde e a doença, os transtornos "mentais" (ou serão cerebrais?) e até mesmo o sucesso e o fracasso - vide o recém-lançado livro "O efeito vencedor: como a neurociência explica o sucesso (e o fracasso)". Outra questão importante sobre a qual os neurocientistas tem se debruçado há décadas é: como realizamos nossas escolhas? Mas eis que alguns pesquisadores chegaram à inesperada conclusão de que nós não escolhemos. Quem escolhe é nosso cérebro! (Saiba mais aqui) Diante desta "descoberta" intrigante, algumas reflexões se fazem necessárias: se é o cérebro que toma as decisões, qual o nosso papel no processo de escolha? Existe um “eu” que escolhe? Ou será o livre-arbítrio apenas uma ilusão? Somos agentes de nossas ações? Ou somos simplesmente manipulados por nosso cérebro, que é "aquele" que, em última instância, toma todas as decisões? Afinal, quem está no comando, ele ou nós? Ou ele e nós, juntos?



O confronto liberdade versus determinismo é antigo e já se manifestou de diferentes formas no decorrer do tempo. O que há de novo - aliás, nem tão novo assim - é a afirmação de alguns neurocientistas de terem provado experimentalmente a perspectiva determinista. Em um experimento clássico conduzido na década de 80, Benjamin Libet demonstrou que regiões do cérebro responsáveis pela ação motora eram ativadas uma fração de segundos antes da decisão consciente ser tomada e de a ação ser realizada. Este achado foi utilizado para demonstrar o quanto o processo volitivo é, pelo menos, iniciado de forma inconsciente, tornando-se consciente posteriormente. Outras interpretações apontaram para a total determinação cerebral das nossas escolhas, sendo o livre-arbítrio e a noção de um “eu” que toma decisões considerados apenas ilusões. Estudos posteriores apontaram, na mesma direção, que a atividade cerebral precede e determina nossas escolhas conscientes. No entanto, tais experimentos suscitaram inúmeras críticas, desde relativas à metodologia utilizada, até críticas epistemológicas. Klemm, por exemplo (neste artigo), afirma que “não é porque escolhas subconscientes são feitas antes da consciência em uma tarefa, que temos a prova de que toda a vida mental é governada desta maneira". Já para o filósofo João Fernandes Teixeira, no recém-lançado "Filosofia do cérebro", o experimento de Libet contribui muito pouco com o debate liberdade-determinismo. Para ele, “as conclusões que ele quer extrair de seu experimento extrapolam o que ele efetivamente pode comprovar. Na verdade, seu experimento só nos permite concluir, no máximo, que podemos reconstruir uma história causal entre uma ação, o evento que a precede no cérebro e seu relato posterior”. No entanto, tal história causal não permite uma associação determinista entre evento cerebral, intenção, ação.




Esta noção de que é o cérebro que está no comando tem se disseminado. Não é incomum, atualmente, encontrar em sites, revistas e livros voltados para o público leigo, expressões que antropomorfizam o cérebro como “o cérebro escolhe”, “o cérebro faz”, “o cérebro pensa”, “o cérebro aprende”, etc, como se o cérebro tivesse vida própria e tomasse as próprias decisões, a despeito de seu “dono”. Um sujeito postou estes dias no Twitter uma frase que expressa bem essa idéia: "Vocês sabiam que o cérebro é o único órgão do corpo que escolheu seu próprio nome?". Nota-se uma completa identificação do que somos com o nosso cérebro: é o cérebro que escolheu seu próprio nome, não nós (critico desta visão, o neurocientista Steven Rose afirma que falar que o "cérebro pensa" é equivalente a dizer "a perna anda". Para ele, "nós" pensamos através do cérebro, assim como andamos "com" nossa perna). Conforme aponta o filósofo Francisco Ortega, o cérebro vem se tornando, mais do que um simples pedaço de carne, um verdadeiro ator social configurando-se, na cultura ocidental contemporânea, como o órgão central na definição de nossa identidade pessoal, fenômeno chamado pelo antropólogo Rogério Azize de “cerebralismo”, face específica de um mais amplo “fisicalismo”. Este processo culmina no entendimento reducionista de que “eu sou o meu cérebro”. Segundo Ortega, tal afirmação tornou-se auto-evidente em função de um contexto em que emerge uma verdadeira neurocultura, na qual explicações cerebrais tem privilégio sobre outras formas de compreensão da realidade. Para Ortega, neste contexto, há a surgimento do que ele e outros autores denominam de sujeito cerebral, “figura antropológica que incorpora a crença de que o ser humano é essencialmente reduzível a seu cérebro”. Neste sentido, sendo o cérebro considerado o órgão central de nossa identidade e, além disso, o responsável por todas as nossas decisões e comportamentos, caberia ainda a noção de um “eu” livre e que toma decisões?




Segundo outro filósofo, o Slavoj Zizek, no livro "Visão em Paralaxe", toda decisão tem causas, sejam motivações internas ou causas naturais, mas o que indica a liberdade de uma ação não é a lacuna entre estas causas e minha escolha consciente, mas a capacidade de escolher retroativamente quais causas irão me determinar. E mais, para o autor, liberdade não significa liberdade de se fazer o que quiser irrestritamente, mas fazer o que não se quer, frustrando a “realização ‘espontânea’ de um ímpeto". Um ato é livre quando não é espontâneo, “natural”, intuitivo. Para ele, fazer o que se pede é obediência, fazer o que não se pede ou o que não se quer fazer é liberdade. A verdadeira liberdade, para Zizek, consiste em um ato negativo de dizer não, interrompendo a execução de uma decisão, bloqueando “nossa tendência direta". 




De uma forma ampla, e a partir da perspectiva hegeliana, o autor entende liberdade como autolimitação ativa (autodeterminação), oposta à uma limitação externa (ser-determinado-pelo-outro). Em seu aspecto mais radical, aponta Zizek, a questão da liberdade é a questão de como se pode escapar do “círculo fechado do destino”. Uma possibilidade é entender que tal círculo não está completamente fechado e buscar brechas. Mas a saída, para o autor, é aceitar o destino como inevitável, renunciando a qualquer tentativa de escapar de seus designos. Paradoxalmente, aceitar o destino faz com que possamos escapar dele. Da mesma forma, para escaparmos da programação genética/cerebral devemos não nos opor à ela ou violá-la, mas aceitá-la. Só aceitando que a liberdade é “programada” podemos nos tornar livres. De certa forma, para sermos livres temos que estar conscientes de que não somos totalmente livres e que somos em grande parte determinados por questões que não controlamos e nem podemos controlar. Na contramão da máxima behaviorista de que “sou livre na medida em que controlo as condições que me controlam”, é como se Zizek dissesse: “Sou livre na medida em que NÃO controlo as condições que me controlam” ou “Sou livre na medida em que me abstenho de controlar as condições que me controlam”. Gosto desta perspectiva: ao aceitarmos que somos determinados nos tornamos livres. 


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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Psicofobia ou psiquiatriafobia?


Segundo matéria publicada anteontem na Folha de S. Paulo, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) está se mobilizando com o objetivo de criminalizar a Psicofobia. Mas o que é Psicofobia? Primeiro, vamos à explicação oficial, da ABP. Para eles, Psicofobia designa o preconceito contra portadores de doenças ou transtornos mentais. Trata-se de um neologismo, provavelmente criado pela associação. De acordo com a proposta de alteração do Código Penal, encampada pelo Senador Paulo Davim a partir da mobilização da ABP, será considerado crime, com pena de 2 a 4 anos, qualquer ação que dificulte ou impossibilite o acesso ao trabalho e à educação aos portadores de transtornos ou deficiências mentais. De uma forma mais ampla, a proposta criminaliza qualquer atitude preconceituosa e discriminatória com relação aos "doentes mentais". 

Colocando as coisas desta maneira, quem se colocaria contra tal proposta? Acredito que ninguém, pois acho difícil alguém, com um mínimo de bom senso, se colocar a favor do preconceito aos portadores de transtornos mentais. No entanto, a coisa é mais complexa. Analisando a definição de Psicofobia da ABP surgem, de cara, duas questões essenciais: o que é um transtorno mental? Quem são os portadores de transtornos mentais? Aqueles que já leram um pouco sobre a história das classificações psiquiátricas, sabem que o que é definido oficialmente como transtorno mental já mudou diversas vezes. Vários comportamentos que eram encarados e tratados como transtornos o deixaram de ser enquanto outras questões passaram a ser consideradas patologias. O DSM-5 vem aí em 2013 pra modificar ainda mais o que hoje é considerado transtorno mental. Tendo em vista esta característica metamórfica das categorias psiquiátricas, um questionamento se faz necessário: o que os defensores da criminalização da Psicofobia entendem por transtorno mental? 

Em um artigo denominado “O código penal e a psicofobia”, o presidente da ABP Antônio Geraldo da Silva aponta que cerca de 20% da população brasileira (mais de 40 milhões de pessoas) é portadora de algum transtorno mental, como a “esquizofrenia, bipolaridade, dislexia, autismo, ansiedade, transtornos alimentares e síndrome de Down”. Percebe-se que o que é entendido por “transtorno mental” engloba um amplo espectro de “problemas”, que vão desde a ansiedade e a dislexia até o autismo e a Síndrome de Down. Mesmo um leigo é capaz de compreender que são problemas muito diferentes, em vários sentidos. Uma Síndrome de Down é completamente diferente de uma Síndrome do Pânico, muito embora os psiquiatras biológicos modernos tendam a considerar ambas como distúrbios genéticos e cerebrais. Mas convenhamos: existem diferenças significativas entre os dois problemas. Chamar ambos de "transtorno mental" implica ignorar significativas distinções entre estas categorias. Mas isto é assunto para outro post.

Em outro artigo (“Psicofobia é crime”), publicado no jornal O Globo, Antônio Geraldo da Silva aponta para um crescimento tanto da incidência dos transtornos mentais quanto do preconceito com relação à seus portadores Segundo ele, combater o preconceito contra doentes mentais é tão necessário hoje, afirma, quanto o enfrentamento do preconceito contra negros, homossexuais e mulheres. Para ele, “se não se deve debochar ou subestimar de doenças como o câncer (...) também não há razão para as doenças mentais não serem encaradas com a seriedade que elas pedem e seus portadores exigem". Aponta ainda para a existência de "várias formas de preconceito, entre elas a própria negação da doença como algo menor ou passageiro”.

É este aspecto da criminalização da Psicofobia que realmente me preocupa. A indefinição do que é transtorno mental é "café pequeno" diante da possibilidade de se criminalizar o questionamento à Psiquiatria. Este aspecto da questão fica evidente no final da 
"Carta de Esclarecimento à Sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e tratamento" (analisada aqui), quando a ABP, referindo-se àqueles que questionam a existência e legitimidade do diagnóstico de TDAH, afirma  que "fornecer informações equivocadas e ocultar dados científicos bem documentados é dificultar. ou retardar o acesso da população ao diagnóstico ou a tratamento, é a expressão de uma das mais perversas formas de discriminação social: a Psicofobia". A expressão "informações equivocadas", no caso, parece se referir à informações discordantes ou alternativas à Psiquiatria oficial.


A utilização da expressão Psicofobia no contexto desta Carta aponta, na minha opinião, para um outro objetivo, mais oculto e não tão nobre, da cruzada em prol da criminalização da Psicofobia. Podemos entendê-la como uma estratégia da ABP de enquadrar todos aqueles que questionam certas categorias e as classificações psiquiátricas de uma forma geral, como preconceituosos com relação aos portadores. Neste  sentido, a Psicofobia se converteria numa Psiquiatriafobia e o que estaria em jogo não seria propriamente o preconceito com relação aos portadores, mas o "preconceito" com relação à Psiquiatria oficial. Talvez, com todo esse movimento, a associação pretenda eliminar, se não através do debate, mas via legislação penal, qualquer questionamento ou controvérsia com relação às classificações psiquiátricas. 


Enfim, se esta proposta de criminalizar a Psicofobia servir estritamente para punir aqueles que impedem ou dificultam o acesso ao trabalho ou à educação aos portadores de transtornos mentais, podem contar com o meu apoio. Ainda que questione a utilização vaga da expressão "transtornos mentais", não teria grandes motivos para me colocar contra. No entanto, se tal proposta implicar na blindagem da Psiquiatria oficial contra qualquer crítica, como se criticá-la significasse desmerecer o sofrimento das pessoas, aí não tenho como ser a favor. Afinal, a Psiquiatria, como a Psicologia, é um campo repleto de incertezas, desconfianças, controvérsias e disputas. Colocar os "pacientes" como se fossem coletes à prova de balas, indica talvez mais um medo de ser atingido do que um desejo de proteger aqueles que precisam. É claro que eu posso estar enganado, mas se estiver não me critiquem, ou estarão cometendo uma das formas mais cruéis de Psicofobia, que é o preconceito contra psicólogos...



quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Reducionismo cerebral


Esta imagem me lembrou a famosa frase ultra-reducionista do biólogo inglês Frances Crick (1916-2004), em seu livro A hipótese espantosa: "Você, suas alegrias e tristezas, suas lembranças e ambições, seu senso de identidade pessoal e livre-arbítrio, não são mais do que o comportamento de um imenso conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas. Como diria a Alice de Lewis Carroll, 'você não passa de um baralho de neurônios'". Será que somos somente isso?

Reducionismo genético


Encontrei este cartum neste artigo.