quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Melhor filme de 2020: "O som do silêncio"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor filme de 2020 vai para... "O som do silêncio". Dentre os inúmeros filmes que assisti esse ano - e eu assisti muitos - penso que este filme, além de todo o primor técnico e artístico, condensa e simboliza muito bem o momento em que vivemos. Lançado em agosto pela Prime Video, este filme conta a história de um baterista de uma banda de heavy metal que perde a audição e busca apoio em uma comunidade de surdos nos Estados Unidos. Um dos aspectos técnicos mais notáveis do filme é que ele leva o espectador a vivenciar a experiência do sujeito com os sons - e também com o silêncio (de forma semelhante ao que foi feito, com o sentido da visão, no filme O escafandro e a borboleta). Eu destacaria ainda a atuação brilhante - ao mesmo tempo intensa e delicada - do ator anglo-paquistanês Riz Ahmed, que merece todos os prêmios possíveis. Acho bastante interessante também a discussão trazida pelo filme sobre como a comunidade surda (ou parte dela) enxerga os tratamentos ou curas para a surdez. Mas o motivo que considero este o filme símbolo deste momento é que ele traz uma narrativa sobre um sujeito que vive uma transformação radical e avassaladora em sua vida (um músico que deixa de escutar, imaginem só!) e que passa a ter, então, duas escolhas para lidar com esta nova situação: tentar (em vão) retornar à sua vida anterior - o que ele faz inicialmente - ou aceitar que a vida nunca mais será a mesma. De certa forma, este é o dilema que cada um de nós teve de lidar em 2020: sonhar com o "velho normal" e fingir que as coisas continuam iguais (como fizeram os "negacionistas") ou então aceitar o tal "novo normal" e tocar a vida tendo em vista que o mundo se alterou provavelmente de forma irreversível. "O som do silêncio" coloca o protagonista em situação análoga à que vivemos neste ano maluco, enquanto indivíduos e enquanto sociedade - e por isso, e também pelo conjunto da obra, considero este o melhor filme de 2020.

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

Melhor livro de não-ficção de 2020: "Talvez você deva conversar com alguém"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor livro de não-ficção de 2020 vai para... "Talvez você deva conversar com alguém", da psicoterapeuta norte-americana Lori Gottlieb. Fiquei curioso para ler esse livro quando vi, na contracapa, uma recomendação do psiquiatra e psicoterapeuta Irvin Yalom, autor que admiro muito e que consegue, como poucos, descrever a complexidade do encontro terapêutico (algo que os livros técnicos raramente conseguem). Pois Lori também é muitíssimo bem-sucedida nesta empreitada. Ouso dizer que ela supera Yalom, pois além de descrever com enorme verossimilhança e sensibilidade alguns atendimentos que realizou ao longo dos anos, Lori ainda conta a sua própria história, com uma sinceridade admirável, por vezes rasgante. Nunca antes tinha lido um livro no qual o/a terapeuta expõe suas dores, seus medos, suas inseguranças - e também suas alegrias e forças - com tanta verdade e sensibilidade como neste livro, cuja narrativa mescla tocantes histórias de pacientes atendidos por Lori com histórias dela própria, muitas passadas ou relatadas no consultório de seu terapeuta. Vemos, assim, os dois lados da moeda: a Lori terapeuta e a Lori paciente. Mas curiosamente, ao expor estas duas facetas, ela consegue um feito admirável: ao mesmo tempo em que mostra a realidade e os bastidores de uma terapia ela consegue demonstrar também o sentido e o valor do processo terapêutico. Ao retirá-lo da torre de marfim, mostrando que terapeutas também são pessoas, ela acaba por mostrar que está justamente aí - no fato de todos serem pessoas - a força do processo, que continua fazendo sentido, apesar de todos os tratamentos farmacológicos disponíveis. Acho bastante difícil resumir esse livro, que traz tantos ensinamentos, tanta verdade e tanta esperança (sem ser piegas e sem flertar com a autoajuda) que eu não tenho como não recomendá-lo para todo mundo, especialmente para psicólogos. Sem dúvida o melhor livro que li esse ano e um dos melhores sobre psicoterapia que já li na vida - muito embora rotulá-lo como um "livro de psicoterapia" seja extremamente equivocado e reducionista: trata-se de um livro sobre a vida e seus enormes e eternos desafios.

Trecho do livro: "Obviamente, os terapeutas lidam com os desafios diários existenciais, como qualquer pessoa. Essa familiaridade, de fato, está na raiz da conexão forjada por nós com estranhos que nos confiam suas mais delicadas histórias e segredos. Nossa formação nos ensinou teorias, ferramentas e técnicas, mas pulsando sob nossa competência adquirida a duras penas está o fato de sabermos o quanto é difícil ser um indivíduo. O que equivale a dizer: continuamos indo trabalhar diariamente sendo nós mesmos, com nosso próprio conjunto de vulnerabilidades, nossos próprios anseios e inseguranças, bem como nossas próprias histórias. De todas as minhas credenciais como terapeuta, a mais significativa é eu ser membro de carteirinha da raça humana".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Racismo sem fim: uma resenha do livro "Eu, Tibuba: bruxa negra de Salem"

Acabei de ler "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", da escritora francesa Maryse Condé (ed. Rosa dos tempos, 2020). E gostei muitíssimo. A obra reconstitui ficcionalmente a trajetória de Tituba, mulher negra escravizada, nascida na Ilha de Barbados e transportada posteriormente aos Estados Unidos, e que foi uma das mulheres julgadas como bruxas nos famosos julgamentos de Salem, ocorridos em 1692 - e que inspiraram o famoso filme Bruxas de Salem, que traz Tituba como uma das personagens secundárias. A ideia da autora foi dar voz à esta personagem marginalizada e esquecida pela história, narrando em primeira pessoa não apenas os acontecimentos de Salem mas também sua vida pregressa e subsequente, desde sua concepção (consequência de um estupro) até sua morte. O que achei mais interessante (e triste) no livro é a forma como a autora, negra, retrata o absurdo que foi a escravidão. Aliás, eu acho sempre chocante lembrar como até bem pouco tempo atrás alguns seres humanos se julgaram superiores ao ponto de se considerarem donos de outros seres humanos. "Eu, Tituba" narra em detalhes toda a humilhação e violência sofridas pela personagem e por outras pessoas escravizadas, expondo de forma terrivelmente dolorosa o racismo dominante naquele momento - e que infelizmente persiste na atualidade. Eu destacaria também a forma como a autora retrata as relações de Tituba com os mortos e com as plantas e os animais, relações estas que eram frequentemente encaradas pelos brancos como provas de sua atividade como bruxa. O livro trata ainda de muitos outros temas e questões, sempre de uma forma sensível e poética. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Eu urrava, e, quanto mais eu urrava, mais eu tinha o desejo de urrar. De urrar meu sofrimento, minha revolta, minha raiva impotente. Que mundo era aquele que tinha feito de mim uma escravizada, uma órfã, uma pária? Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam minha religião, num país feio, nada agradável?"

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O cérebro cria a a realidade? Uma resenha crítica do livro O verdadeiro criador de tudo

Li há alguns meses "O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos", novo livro do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor e pesquisador na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Minha avaliação da obra é que ela começa muito bem e se perde completamente da metade em diante. Quando discorre sobre a abordagem distribuída do cérebro - oposta à localizacionista, prevalente na neurociência contemporânea - e também sobre a interessante Teoria do Cérebro Relativístico, Nicolelis se sai muitíssimo bem e traz contribuições relevantes para o entendimento do cérebro humano - muito embora ele já tenha apresentado tais visões em duas obras anteriores: "Muito além do nosso eu" e "O cérebro relativístico", escrito em parceria com o matemático Ronald Cicurel. Gosto especialmente de sua visão do cérebro como um sistema integrado, dinâmico e complexo que não pode e jamais poderá ser simulado ou reproduzido digitalmente - questão que já discuti anteriormente no post Em busca da imortalidade da mente, no qual cito, inclusive, os argumentos de Nicolelis para a impossibilidade de um upload mental. Na visão do neurocientista o cérebro, sendo um "computador orgânico", funciona de forma completamente distinta de um "computador digital", possuindo propriedades (como a plasticidade) que nunca poderiam ser simuladas por algoritmos digitais, concepção que simplesmente coloca por terra alguns dos estranhos sonhos dos chamados transhumanistas. Por outro lado, quando resolve apresentar sua visão cerebrocêntrica - também chamada de "cosmologia centrada no cérebro" - Nicolelis acaba por se perder. Na visão do neurocientista o cérebro humano está no centro do universo na medida em que ele próprio cria o universo. Sem dúvida, para existirem reflexões e estudos sobre o universo é necessário que existam humanos (com seus cérebros), mas daí dizer que o universo existe apenas na medida em que é concebido pelo cérebro humano - e pior: que o cérebro é o "verdadeiro criador de TUDO"  - trata-se, sem dúvida, uma extrapolação desmedida. Com tais afirmações, ainda que não pretenda, Nicolelis acaba por se vincular a uma perspectiva idealista, segundo a qual o mundo só existe enquanto construção mental - ou, no caso de Nicolelis, cerebral. Da metade do livro em diante o neurocientista, utilizando seu equivocado e frágil conceito de brainet - que seria uma espécie de sincronia entre os cérebros humanos - fala um pouco de tudo e se perde ainda mais. Em sua ânsia de explicar o universo, o mundo e até mesmo as sociedades através de sua teoria neurocientifica, Nicolelis acaba por se tornar vítima da própria ambição. Nos últimos capítulos Nicolelis chega ao cúmulo de pretender explicar as guerras e os genocídios pelo conceito de brainet - que, na verdade, poderia ser chamado de humanet, na medida em que aponta para relações e sincronias entre humanos e não entre cérebros isolados. Como Antonio Damásio em seu último livro A estranha ordem das coisas, Nicolelis pretende explicar o social pelo biológico, proposta extremamente equivocada - e, em última instância, reducionista. Enfim, um livro que começa muito bem e termina muito mal.

Quando o cérebro falha: uma resenha do livro No labirinto do cérebro

Li esta semana o livro No labirinto do cérebro, recém-lançado pela editora Companhia das Letras. Achei bom, não excelente. Escrito pelo neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho (filho do também neurocirurgião Paulo Niemeyer e sobrinho do famoso arquiteto Oscar Niemeyer) este livro tem um duplo objetivo: divulgar para um público amplo o conhecimento atual do sistema nervoso humano e, ao mesmo tempo, relatar situações vividas pelo autor em seus muitos anos como neurocirurgião. Quando se foca na divulgação científica o livro não empolga (ou melhor, não me empolgou), pois traz informações já exaustivamente tratadas em inúmeros outros livros de neurociência - pense, por exemplo, nas clássicas histórias dos pacientes HM, Phineas Gage, etc. Por outro lado, o filé mignon do livro são seus relatos de doença e cirurgia que, infelizmente, ocupam, se muito, 10% das páginas. Uma pena, já que o que eu esperava de um livro escrito por um neurocirurgião seriam histórias de sua prática - tal qual fez com brilhantismo o neurocirurgião inglês Henry Marsh na já clássica obra "Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia", lançada no Brasil em 2016 (e sobre a qual já escrevi anteriormente). Em comparação com o livro de Marsh, falta também à Paulo Niemeyer profundidade emocional em seus relatos. Em geral as histórias clínicas são contadas de forma muito rápida e objetiva, sem que o autor relate sua própria vivência. Ainda assim - o que considero um ponto positivo - Niemeyer relata não apenas casos "bem sucedidos" mas também "fracassos", isto é, casos que não resultaram em melhora ou, pelo contrário, que resultaram em piora ou morte. De uma forma geral considero uma boa obra, que ao mesmo tempo informa sobre a estrutura e o funcionamento cerebral e ainda traz relatos do autor, um experiente neurocirurgião.

Trecho do livro: "Os cirurgiões parecem ter chegado ao limite do que é possível, com uma técnica baseada no conhecimento anatômico e na habilidade manual. Hoje, já não existem áreas do cérebro que sejam inalcançáveis. Podemos atingir qualquer ponto, o que não significa que possamos remover ou corrigir todas as lesões. Os limites agora são características biológicas das doenças. Como curar um tumor maligno que infiltra o cérebro? Certamente, não será pela cirurgia".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

Com o cérebro em mente: uma resenha do livro Mentes, cérebros, almas e deuses

Muito embora eu não seja uma pessoa religiosa - considero-me agnóstico - decidi dar uma chance para este livro, publicado em 2016 pela editora cristã Ultimato e escrito por um cientista católico, o psicólogo britânico Malcolm Jeeves. O livro traz um longo diálogo (imaginário, creio eu) entre Jeeves e um estudante de psicologia cristão em crise com seu curso - na verdade em conflito entre suas crenças religiosas e algumas visões pretensamente científicas que ele se deparou no curso. Os temas discutidos são variados mas passam por muitas questões de interface entre o campo científico e o religioso - os títulos de alguns capítulos, em geral sob a forma de perguntas, ilustram muito bem os tópicos discutidos: "Qual a relação entre mente e cérebro?", "Até que ponto sou livre?", "Mas será que tudo está no cérebro?", "Será que meu cérebro tem um 'módulo de Deus?", "A ciência seria capaz de invalidar a religião?". E qual não foi minha surpresa ao descobrir um excelente livro, que discute com muita ponderação e clareza temas espinhosos ligados tanto à ciência quanto à religião - e ele faz isso sem exaltar ou desmerecer desmedidamente nem uma nem outra. Gostei especialmente da visão critica do autor aos reducionismos e determinismos de toda ordem - em especial aos reducionismos e determinismos biológicos e neurocientificos. Durante todo o livro o autor critica as "simplificações grosseiras" cometidas tanto por cientistas quanto por jornalistas científicos na interpretação de certos resultados científicos e ainda defende uma visão integral do ser humano, entendido por ele como uma "unidade psicobiológica". O autor, que se define como um "monista de aspecto dual" no que diz respeito à relação mente-cérebro defende que "não podemos reduzir o mental ao físico no mesmo grau em que não podemos reduzir o físico ao mental". Por esta e por outras visões considero este um livro precioso, que precisa ser lido não apenas por cristãos mas por todos aqueles que se interessam pelos grandes temas e dilemas filosóficos e científicos dos nossos tempos - e de todos os tempos.

Trecho do livro: "Ao falar sobre a relação mente-cérebro, é preciso ser muito cauteloso com aqueles que usam analogia - por exemplo, o cérebro como computador com seu hardware e software -, como se assim de fato resolvessem o problema mente-cérebro, quando na realidade não fizeram nada além de descrevê-lo de outra maneira".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram- me segue lá: @felipestephan 

Remediando a vida: uma resenha do livro Meu ano de descanso e relaxamento

Em meu esforço de ler mais ficção acabei de finalizar mais um livro: "Meu ano de descanso e relaxamento", da escritora norte-americana Ottessa Moshfegh. A obra, que gostei muito, tem como protagonista e narradora uma mulher de quase 30 anos que, após a morte dos pais e o fim de um relacionamento, decide tirar um ano de "descanso e relaxamento", ou melhor, um ano de luto, depressão e intoxicação medicamentosa. Neste ano "sabático" ela planeja basicamente se isolar de tudo e de todos, se entupir de remédios psiquiátricos - receitados por uma psiquiatra terrivelmente antiética e picareta - e simplesmente dormir, isolando-se em si e também de si mesma. Seu plano original era dormir o tempo todo durante um ano, o que, em sua visão distorcida, a faria acordar deste processo renovada e pronta para encarar os desafios da vida. A questão é que seu plano não sai exatamente como planejado, ao menos inicialmente. A narrativa não é, em grande parte, focada na ação da personagem, já que ela se encontra constantemente num estado de quase completa inação e letargia. O foco está nas lembranças, pensamentos e devaneios desta jovem que não consegue ver nada muito claramente - especialmente devido aos efeitos dos inúmeros remédios que ela toma dia e noite, muitas vezes misturados com álcool. O que acho mais interessante no livro é como ele retrata a forma como muitas pessoas lidam com o sofrimento em nossa sociedade - e, em especial, na sociedade norte-americana. Como a personagem, muitas e muitas pessoas têm recorrido a medicações psiquiátricas e outras drogas com o intuito (ilusório) de eliminar sofrimentos que não conseguem ou não querem lidar - e comumente ignoram ou não prestam a devida atenção nos significativos efeitos colaterais, que muitas vezes acrescentam sofrimentos e problemas às suas já complicadas vidas. Enfim, a obra capta muitíssimo bem esse zeitgeist da relação dos sujeitos contemporâneos com o sofrimento e as medicações psiquiátricas. Recomendo fortemente!

Trecho do livro: "E foi durante essa calmaria no drama do sono que entrei numa realidade desconhecida e menos certa. Os dias se arrastavam, havia pouco a ser lembrado, a não ser o entalhe familiar das almofadas do sofá e uma espuma na pia do banheiro que parecia uma paisagem lunar, suas crateras borbulhando sobre a porcelana quando eu lavava o rosto ou escovava os dentes. Mas era apenas isso que acontecia. E talvez eu tivesse sonhado com espuma. Nada parecia real de verdade. Dormindo, acordada, tudo colidia numa viagem cinzenta e monótona de avião por entre as nuvens. Eu não conversava mentalmente comigo mesma. Não tinha muito o que dizer. Foi assim que soube que o sono estava fazendo efeito: estava ficando cada vez menos apegada à vida. Se continuasse, pensei, desapareceria por completo, depois reapareceria sob alguma outra forma. Essa era a minha esperança. Esse era o sonho".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

O preço da "inteligência": uma resenha do livro Flores para Algernon

Há tempos não me empolgava tanto com um livro de ficção como ocorreu com Flores para Algernon, clássico de ficção científica do escritor norte-americano Daniel Keyes, lançado originalmente em 1966. O livro conta a história de Charlie Gordon um jovem com deficiência intelectual severa que é submetido a uma cirurgia cerebral experimental que faz com que sua inteligência cresça exponencialmente - aliás, acho mais correto afirmar que ocorre um aumento de sua compreensão do mundo e de si mesmo, já que "inteligência" é um termo bastante impreciso e controverso. O mais interessante do livro é que acompanhamos este crescimento intelectual através de um diário escrito pelo próprio Charlie. Inicialmente redigido de uma forma simples e com inúmeros erros linguísticos, tal relato se torna, aos poucos, super bem-escrito e até mesmo sofisticado, à medida em que Charlie vai adquirindo compreensão sobre o mundo e sobre si mesmo. Ao mesmo tempo, à medida em que se torna mais e mais esclarecido, Charlie se torna mais e mais confuso, inseguro e solitário. O livro aponta, nesse sentido, para os efeitos colaterais da "inteligência" - que inclui, no caso específico de Charlie, o questionamento de sua função como cobaia de um experimento científico. Após se identificar com Algernon - um ratinho de laboratório superinteligente utilizado no experimento que serviu de base para a cirurgia que ele foi submetido - Charlie busca se libertar da condição de objeto experimental, tornando-se sujeito de sua vida e de seu destino. "Flores para Algernon" trata de todos estes temas e questões - e muitos outros - com brilhantismo e delicadeza. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Sou um gênio? Acho que não.  Ainda não, de qualquer forma. Como Burt diria, rindo dos eufemismos do jargão educacional, sou excepcional – um  termo democrático usado para  evitar os malditos rótulos de  talentoso e incapaz (que  costumavam  dizer  brilhante  e  retardado), e, assim que excepcional começar a significar algo para alguém, vão mudá-lo.  A ideia parece ser: use uma expressão enquanto ela não significar nada  para ninguém. Excepcional se refere aos dois finais do espectro, então eu fui excepcional a vida inteira. (...) Estranho sobre aprender; quanto mais longe eu vou, mais vejo o que nunca soube que sequer existia. Algum tempo atrás, tolamente imaginei que poderia aprender tudo, todo o conhecimento existente. Agora espero apenas ser capaz de saber de sua existência e entender um mínimo disso”.

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

domingo, 20 de setembro de 2020

O seu smartphone é uma extensão da sua mente?

Dando continuidade à discussão introduzida no post anterior, compartilho abaixo a tradução que fiz do ensaio 
Are ‘you’ just inside your skin or is your smartphone part of you? publicado no dia 26 de Fevereiro de 2018 no site AEON pela Karina Vold, pesquisadora do Leverhulme Centre for the Future of Intelligence da Universidade de Cambridge.

Em novembro de 2017, um homem armado entrou em uma igreja em Sutherland Springs, no Texas, e matou 26 pessoas, ferindo outras 20. Ele fugiu em seu carro, com policiais e moradores no seu encalço, antes de perder o controle do veículo e cair em uma vala. Quando a polícia chegou ao carro, ele já estava morto. Esse episódio já seria terrível o suficiente sem sua conclusão perturbadora: no decorrer de suas investigações, o FBI supostamente pressionou o dedo do atirador no recurso de reconhecimento de impressão digital de seu iPhone para tentar desbloqueá-lo. Independentemente de quem foi afetado, é inquietante pensar na polícia usando um cadáver para invadir a vida digital de uma pessoa após sua morte.

A maioria das constituições democráticas nos protege de violações indesejadas em nosso cérebro e corpo. Elas também consagram nosso direito à liberdade de pensamento e privacidade mental. É por isso que drogas neuroquímicas que interferem no funcionamento cognitivo não podem ser administradas contra a vontade de uma pessoa, a menos que haja uma justificativa médica clara. Da mesma forma, de acordo com o entendimento acadêmico, os responsáveis pela aplicação das leis não podem obrigar alguém a fazer um teste de detector de mentiras, porque isso seria uma invasão de privacidade e uma violação do direito de permanecer em silêncio.

Mas na atual era de tecnologia onipresente, os filósofos estão começando a se perguntar se a anatomia biológica realmente captura a totalidade de quem somos. Dado o papel que desempenham em nossas vidas, nossos dispositivos merecem as mesmas proteções que nossos cérebros e corpos?

Afinal de contas, seu smartphone é muito mais do que um telefone. Ele pode contar uma história mais íntima sobre você do que seu melhor amigo. Nenhum outro dispositivo na história, nem mesmo o seu cérebro, contém a qualidade ou a quantidade de informações contidas no seu smartphone: ele 'sabe' com quem você fala, quando fala, o que você disse, onde você esteve, suas compras, fotos, dados biométricos, até mesmo suas anotações para você mesmo - e ele faz tudo isso já há alguns anos.

Em 2014, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos usou essa observação para justificar a decisão de que a polícia deve obter um mandado antes de vasculhar nossos smartphones. Esses dispositivos "são agora uma parte tão arraigada da vida cotidiana que um visitante de Marte poderia concluir que eles são uma característica fundamental da anatomia humana", observou o presidente do tribunal John Roberts em sua decisão.

O presidente do tribunal provavelmente não estava se utilizando de um argumento metafísico - mas os filósofos Andy Clark e David Chalmers o fizeram quando argumentaram em 'The Extended Mind' (1998) que a tecnologia é, na verdade, parte de nós. De acordo com a ciência cognitiva tradicional, 'pensar' é um processo de manipulação de símbolos ou computação neural, que é executado pelo cérebro. Clark e Chalmers aceitam amplamente essa teoria computacional da mente, mas afirmam que certos dispositivos podem se integrar perfeitamente à maneira como pensamos. Objetos como smartphones ou blocos de notas são muitas vezes tão funcionalmente essenciais para nossa cognição quanto as sinapses disparando em nossas cabeças. Eles aumentam e estendem nossas mentes ao ampliar nosso poder cognitivo e libertar nossos recursos internos.

Se aceita, a tese da mente estendida [
extended mind] ameaça algumas suposições culturais arraigadas sobre a natureza inviolável dos nossos pensamentos, que estão no cerne da maioria das normas legais e sociais. Como a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou em 1942: "a liberdade de pensamento é absoluta por sua própria natureza; mesmo o governo mais tirânico não tem o poder de controlar o funcionamento interno da mente". Essa visão tem sua origem em pensadores como John Locke e René Descartes, que argumentaram que a alma humana está presa em um corpo físico, mas que nossos pensamentos existem em um mundo imaterial, inacessível a outras pessoas. A vida interior de uma pessoa, portanto, precisa ser protegida apenas quando é externalizada, por exemplo, por meio da fala. Muitos pesquisadores da ciência cognitiva ainda estão apegados a essa concepção cartesiana - com a diferença de que, atualmente, entendem o domínio privado do pensamento como algo relacionado à atividade cerebral.

As instituições jurídicas atuais, contudo, estão lutando contra esse conceito estreito da mente. Estão tentando entender como a tecnologia está mudando o que significa ser humano e criar novos limites normativos para lidar com esta realidade. O juiz Roberts pode não conhecer a ideia da mente extendida, mas ela corrobora sua irônica observação de que os smartphones se tornaram parte de nosso corpo. Se nossas mentes agora incluem nossos telefones, então somos essencialmente ciborgues: parte-biologia e parte-tecnologia. Levando-se em conta como nossos smartphones assumiram o que antes eram funções de nossos cérebros - lembrar datas, números de telefone, endereços - talvez os dados que eles contêm devam ser tratados da mesma forma que as informações que temos em nossas cabeças. Portanto, se a lei visa proteger a privacidade mental, seus limites precisariam ser estendidos para garantir à nossa anatomia ciborgue as mesmas proteções que nossos cérebros.

Essa linha de raciocínio leva a algumas conclusões potencialmente radicais. Alguns filósofos argumentaram que, quando morremos, nossos dispositivos digitais devem ser tratados como restos mortais: se seu smartphone faz parte de quem você é, então talvez ele deva ser tratado mais como um cadáver do que como um objeto qualquer. Da mesma forma, pode-se argumentar que danificar o smartphone de alguém deveria ser entendido como uma forma "estendida" de agressão, isto é, como algo equivalente a um golpe na cabeça ao invés de simplesmente um dano à uma propriedade. Se suas memórias são apagadas porque alguém o atacou com um porrete, o tribunal não teria problemas em caracterizar o episódio como um incidente violento. Da mesma forma, se alguém quebrar seu smartphone e limpar seu conteúdo, talvez o agressor deva ser punido como ele seria se tivesse causado um traumatismo craniano.

A tese da mente estendida também desafia o papel da lei na
proteção tanto dos conteúdos quanto das formas de pensamento - isto é, no resguardo do que e como pensamos a partir de influências indevidas. A legislação impede a interferência não consensual em nossa neuroquímica (por exemplo, por meio de drogas), porque isso interfere no conteúdo de nossa mente. Mas se a cognição engloba dispositivos, então, sem dúvida, eles deveriam estar sujeitos às mesmas proibições. Talvez algumas das técnicas que os anunciantes se utilizam para capturar nossa atenção online, de modo a influenciar nossa tomada de decisão ou manipular resultados de pesquisa, devam contar como intrusões em nosso processo cognitivo. De maneira semelhante, em locais onde a lei protege as formas de pensamento, pode ser necessário garantir o acesso a ferramentas como smartphones - da mesma forma como a liberdade de expressão protege o direito das pessoas não somente para escrever ou falar, mas também para utilizar computadores e disseminar discursos pela internet.

Os tribunais ainda estão longe de chegar a essas decisões. Além dos casos de atiradores em massa que estão nas manchetes, há milhares de casos a cada ano no qual as autoridades policiais tentam obter acesso a dispositivos criptografados. Embora a Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos proteja o direito dos indivíduos de permanecerem calados (e, portanto, de não fornecerem suas senhas), juízes em diversos estados decidiram que a polícia pode forçar o indivíduo a fornecer suas impressões digitais para desbloquear o telefone (Com o novo recurso de reconhecimento facial do iPhone X, a polícia pode fazer a pessoa simplesmente olhar para o telefone). Essas decisões refletem o conceito tradicional de que os direitos e liberdades de um indivíduo vão até o limite de sua pele.

No entanto, o conceito de direitos e liberdades pessoais que norteia nossas instituições jurídicas está desatualizado. Ele foi construído com base no modelo de um indivíduo livre que desfruta de uma vida interior intocável. Agora, porém, nossos pensamentos podem ser invadidos antes mesmo de serem desenvolvidos - e de certa forma, talvez isso não seja nada novo. O físico, vencedor do Prêmio Nobel, Richard Feynman costumava dizer que pensava com seu caderno. Sem uma caneta e um lápis, muitas reflexões e análises complexas nunca teriam sido possíveis. Se a visão da mente estendida estiver certa, então mesmo tecnologias simples como essas mereceriam reconhecimento e proteção como partes do kit de ferramentas essencial da mente.

sábado, 19 de setembro de 2020

A mente não está presa no cérebro e se estende para muito além dele

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The mind isn’t locked in the brain but extends far beyond it, publicado no site AEON no dia 7 de Julho de 2016 pelo filósofo e escritor Keith Frankish.

Onde está sua mente? Onde seu pensamento ocorre? Onde estão suas ideias? René Descartes pensava que a mente era uma alma imaterial, alojada na glândula pineal perto do centro do cérebro. Hoje em dia, pelo contrário, tendemos a identificar a mente com o cérebro. Sabemos que os processos mentais dependem dos processos cerebrais e que diferentes regiões cerebrais são responsáveis ​​por diferentes funções. No entanto, ainda concordamos com Descartes em uma coisa: ainda pensamos na mente como sendo (em uma expressão cunhada pelo filósofo da mente Andy Clark) limitada pelo cérebro [brainbound], isto é, como algo trancado na cabeça e que se comunica com o corpo e com o mundo, mas que se mantém separada destes. E isso pode estar muito errado. Eu não estou sugerindo que a mente não seja física ou duvidando que o cérebro seja central para sua existência; mas pode ser que (como Clark e outros argumentam) a mente se estenda para além do cérebro.

Para começar, há fortes motivos para se pensar que muitos processos mentais são essencialmente corporificadosA visão da mente como limitada ao cérebro [brainbound] retrata o cérebro como um poderoso executivo, planejando cada aspecto do comportamento e enviando instruções detalhadas aos músculos. Mas, como o trabalho em robótica demonstrou, existem maneiras mais eficientes de fazer as coisas, que a natureza quase certamente emprega. Os robôs mais biologicamente realistas já concebidos executam padrões básicos de movimento natural em virtude de sua dinâmica passiva, sem o uso de motores e comandos. O controle inteligente é alcançado através do monitoramento e da melhoria contínuos desses processos corporais, dividindo a tarefa de controle entre o cérebro e o corpo. De forma semelhante, ao invés de coletar passivamente informações para construir um modelo interno detalhado do mundo externo, é mais eficiente para o sistema de controle continuar ativamente sondando o mundo (para "usar o mundo como seu próprio modelo", aponta o roboticista Rodney Brooks), coletando apenas informações suficientes a cada momento para avançar na tarefa em questão. Essa estratégia depende essencialmente da atividade corporal.

Além de incorporados, os processos mentais também podem ser estendidos, de forma a incorporarem artefatos externos. Clark e seu colega David Chalmers, ambos filósofos da mente, propõem o que desde então ficou conhecido como Princípio da Paridade, que diz que se um artefato externo desempenha uma função que consideraríamos mental se ocorresse dentro da cabeça, então o artefato é (temporariamente) uma parte genuína da mente do usuário. Para ilustrar isso, Clark e Chalmers descrevem duas pessoas, cada uma tentando descobrir onde várias peças se encaixam em um quebra-cabeça. Uma delas faz isso em sua cabeça, formando e girando imagens mentais das peças, enquanto a outra pressiona um botão para girar as peças em uma tela. Como o primeiro processo é entendido como mental, o segundo também deveria ser, argumentam Clark e Chalmers. O que importa é o que o objeto faz, não onde ele está localizado. (Compare com uma máquina de diálise portátil, que se torna parte do sistema excretor de uma pessoa). A lógica é a mesma daquela usada para identificar a mente com o cérebro - e não com a alma; a mente é tudo o que executa funções mentais.

A linguagem é um meio particularmente poderoso de extensão e aprimoramento, servindo, nas palavras de Clark, como um andaime que permite ao cérebro biológico realizar coisas que ele não poderia fazer por conta própria. Os símbolos linguísticos fornecem novos focos de atenção, permitindo-nos registrar características do mundo que de outro modo não conseguiríamos fazer, e também fornecem sentenças estruturadas que revelam relações lógicas e semânticas, permitindo-nos desenvolver novos e mais abstratos procedimentos de raciocínio. Com uma caneta ou um notebook, podemos construir esquemas aprofundados de pensamento e raciocínio que nunca poderíamos conceber somente com nossos cérebros. Ao escrever, não estamos simplesmente registrando nossos pensamentos, mas construindo nossos pensamentos. (Como o físico Richard Feynman observou certa vez: 'Eu de fato fiz o trabalho no papel.').

Clark e Chalmers propõem que os 
estados mentais
, como as ideias, também podem ser localizados externamente. Eles imaginam um personagem, Otto, que tem a Doença de Alzheimer e usa um caderno para registrar as informações de que precisa para orientar suas atividades diárias. Quando precisa se lembrar de um endereço, Otto consulta seu caderno ao invés de sua memória biológica - e Clark e Chalmers sugerem que o caderno literalmente contém sua ideia sobre o endereço. O caderno funciona como uma memória externa (tal qual um pen drive) conectada ao resto da mente de Otto por meio de uma relação perceptiva. Clark e Chalmers enfatizam que esta conexão deve ser suficientemente forte para que o caderno tenha este status: Otto deve carregar o caderno constantemente consigo, deve poder acessar seu conteúdo facilmente e deve confiar no que está escrito nele (desta maneira, os conteúdos dos livros guardados nas prateleiras da casa de Otto não podem ser entendidos como ideias de sua mente). 
Claro, as ideias armazenadas no caderno de Otto não são conscientes (até que Otto as consulte), mas nem o são as ideias armazenadas em nossos cérebros até que as convoquemos à mente.

Como observa o filósofo da mente Daniel Dennett, muitos idosos estão na posição de Otto, contando com uma série de dicas espalhadas pela casa para orientá-los em suas rotinas diárias, lembrando-os do que fazer, quando e como. À medida que suas memórias falham, eles transferem esse trabalho para o ambiente externo, e retirá-los de suas casas, como Dennett afirma no livro Tipos de mentes (1996), "é literalmente separá-los de grandes partes de suas mentes - [algo] potencialmente tão devastador como sofrer uma cirurgia cerebral".

Você talvez esteja se perguntando por que devemos pensar em mentes 
que se extendem para corpos e artefatos, ao invés de meramente dizer que as mentes interagem com eles. Isso faz alguma diferença? Uma resposta possível é que, nos casos descritos, cérebro, corpo e mundo não estão agindo como sistemas interativos separados, mas como um único sistema acoplado, fortemente entrelaçado por complexas relações de feedback, e que precisamos olhar para o todo a fim de compreender como o processo se desenrola (é importante notar, também, que o próprio cérebro é uma coleção de subsistemas acoplados).

Naturalmente, pensamos que estamos situados em nossas cabeças. Mas isso é por causa de como nossos sistemas perceptivos modelam o mundo e nossa localização nele (refletindo a localização de nossos olhos e ouvidos), mas não porque nossos cérebros estejam lá. Imagine (se não for muito assustador) ter seu cérebro vivo removido temporariamente do crânio, mantendo-se as conexões nervosas intactas, de forma que você possa segurá-lo e olhá-lo. Você [isto é, o seu "eu] ainda pareceria estar em sua cabeça, embora seu cérebro estivesse em suas mãos.

Se a mente não é limitada pelo cérebro ou pela pele, até onde ela vai? Qual é seu limite? A resposta curta é que não existe um limite - pelo menos não um limite estável. A mente se expande e se encolhe. Às vezes (no pensamento silencioso, por exemplo) a atividade mental está confinada ao cérebro, mas frequentemente ela se espalha pelo corpo e pelo mundo externo. A mente é uma coisa escorregadia, que não pode ser contida.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Reconhecer nossa humanidade em comum pode não ser suficiente para impedir o ódio

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo Recognising our common humanity might not be enough to prevent hatred, publicado no site Psyche no dia 2 de Setembro pela professora de psicologia da York University Harriet Over.

Ontem à noite, minha filha e eu nos enrolamos debaixo de um cobertor e lemos Under the Same Sky [Debaixo do mesmo céu] (2017), escrito pela Britta Teckentrup. É um lindo livro, ilustrado, sobre como somos fundamentalmente semelhantes uns aos outros. Ele começa assim: 'Vivemos sob o mesmo céu, em terras próximas e distantes. Vivemos sob o mesmo céu, onde quer que estejamos. Sentimos o mesmo amor no gelo frio e na neve. Sentimos o mesmo amor onde crescem prados delicados... '.

Oitenta anos atrás, uma mãe e uma filha alemãs poderiam muito bem ter se enrolado sob um cobertor da mesma maneira, mas com um livro infantil muito diferente, Der Giftpilz (1938), de Julius Streicher, - que poderia ser traduzido como "O cogumelo venenoso". Enquanto a capa do livro de Teckentrup traz duas raposas amorosas, a capa de Streicher apresenta horríveis caricaturas de homens judeus na forma de cogumelos e, no texto, ele descreve os judeus como uma praga e como demônios.

"O cogumelo venenoso" é frequentemente citado como um exemplo de desumanização - uma tendência de ver aqueles de fora do grupo [outsiders] como menos humanos. De acordo com a opinião consensual entre psicólogos e outros especialistas, membros de grupos externos são freqüentemente vistos como mais próximos de animais ou máquinas do que de outros seres que merecem cuidado. Além disso, esses especialistas acreditam que a desumanização está no cerne dos danos intergrupais. Argumentam que os nazistas nunca poderiam ter enviado homens, mulheres e crianças a Auschwitz se tivessem reconhecido sua humanidade em comum.

É uma ideia intuitivamente atraente. Quando os defensores da [ideia de] desumanização citam exemplos, como o do "O cogumemelo venenoso", que são tão poderosos e tão emocionalmente evocativos, é difícil questioná-los. Em seu livro Less Than Human (2012), o filósofo David Livingstone Smith reuniu inúmeros casos históricos semelhantes, onde os perpetradores de danos intergrupais extremos descreveram suas vítimas como menos humanas, incluindo o genocídio Hutu dos Tutsis em Ruanda em 1994 e a opressão de negros americanos por brancos sob o regime de escravidão no sul dos Estados Unidos.

Nenhum de nós está isento dessas forças. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, não é incomum ouvir os imigrantes serem chamados de 'enxame' ou 'infestação'. A pesquisa psicológica também sugere que a desumanização não ocorre apenas dentre os extremistas. Quando voluntários são solicitados a avaliar as qualidades de diferentes grupos, mesmo aqueles que sustentam visões políticas moderadas frequentemente negam sutilmente aos grupos externos [outgroups] qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, racionalidade e refinamento. Em estudos de percepção de emoção, nos quais voluntários são solicitados a avaliar as experiências emocionais de outras pessoas, eles relatam que os membros de grupos externos ao seu experimentam emoções humanas complexas, como orgulho, admiração e culpa, em menor grau do que membros do seu próprio grupo [ingroup].

No entanto, observe mais de perto as evidências, e a alegação de que grupos externos são desumanizados perde um pouco, talvez a maior parte, de seu valor explicativo. Existem dois problemas principais. Primeiro, não está claro se os grupos externos realmente são percebidos como menos humanos do que os internos. Em segundo lugar, mesmo que grupos externos sejam percebidos como menos humanos, não está claro por que isso aumentaria o risco de danos contra eles.

Conforme observado por outros autores, incluindo a filósofa Kate Manne e o psicólogo Paul Bloom, quando as pessoas depreciam os membros do grupo externo, elas geralmente os descrevem de maneiras que só fazem sentido quando aplicadas a humanos. No livro "O cogumelo venenoso", por exemplo, os judeus são descritos como mentirosos, vigaristas e estupradores. A propaganda nazista está repleta de exemplos semelhantes. Faz sentido chamar outro ser humano de vigarista, mas não faz sentido se referir a um animal ou a uma máquina dessa forma.

Além disso, embora membros de grupos externos sejam freqüentemente descritos como semelhantes a entidades não humanas, também o são membros de grupos internos. Olhe além da capa e o texto de "O cogumelo venenoso" revela que este é o caso: 'Os seres humanos neste mundo são como os cogumelos na floresta. Existem bons cogumelos e existem boas pessoas. Existem cogumelos venenosos e ruins e existem pessoas ruins'. Os judeus são comparados aos cogumelos, mas o povo alemão também o é.

A pesquisa psicológica que mostra evidências de desumanização também enfrenta desafios conceituais. Os modelos atuais sugerem que, quando as pessoas desumanizam sutilmente os grupos externos, negam-lhes qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, refinamento e racionalidade. Isso pode muito bem ser verdade, mas e quanto às qualidades humanas mais anti-sociais? Os humanos podem ser civilizados, refinados e racionais, mas também podem ser mesquinhos, rancorosos e arrogantes. Em uma pesquisa em andamento em meu laboratório, nós perguntamos a voluntários sobre essas qualidades negativas e descobrimos que eles as consideram exclusivas dos seres humanos. Além disso, eles atribuem essas qualidades exclusivamente humanas mais fortemente aos grupos externos do que ao seu próprio grupo. Meus colegas e eu levantamos a hipótese de que o que parece ser uma evidência para a desumanização pode na verdade ser uma evidência para um processo mais básico de preferência intragrupal [ingroup preference] - que significa acreditar que seu próprio grupo possui qualidades humanas mais positivas e que outros grupos têm qualidades humanas mais negativas.

Existem também desafios para a pesquisa neurocientífica que pretende mostrar evidências de desumanização. Em um artigo amplamente citado, publicado em 2006, os pesquisadores Lasana Harris e Susan Fiske argumentaram que, quando as pessoas desumanizam grupos externos, elas pensam que eles carecem de estados mentais, como desejos, crenças e objetivos. Aparentemente corroborando essa visão, a dupla relatou que quando seus voluntários de pesquisa viram fotos de membros de grupos externos, como moradores de rua ou dependentes de drogas, eles exibiram menos ativação em áreas do cérebro associadas à mentalização, particularmente no córtex pré-frontal medial. No entanto, a caracterização de desumanização de Harris e Fiske é enfraquecida por exemplos supostamente prototípicos de desumanização extrema nos quais os perpetradores parecem fazer inferências do estado mental sobre suas vítimas. Por exemplo, a propaganda nazista está repleta de referências às supostas mentiras e conspirações dos judeus para atingirem seus objetivos. Essas referências às crenças e planos do povo judeu eram imprecisas e cheias de intenções maliciosas, mas eram, de toda forma, inferências de estado mental - acusar uma pessoa de mentir é fazer uma inferência sobre o que ela está pensando.

O que dizer então da alegação de que a desumanização dos grupos externos contribui para a disposição para prejudicá-los? Também aqui há razão para ser cético. Muitas pesquisas nesta área baseiam-se no pressuposto de que, ao minar o nosso reconhecimento uns dos outros como semelhantes, a desumanização corrói a inclinação natural que temos de cuidar uns dos outros. No entanto não é sensato colocar muita fé no desejo humano de proteger e cuidar de outros humanos. Na verdade, os membros de grupos externos às vezes são prejudicados por causa de sua humanidade percebida. Afinal, apenas humanos podem ser assassinos, traidores e inimigos - e assassinos, traidores e inimigos são vistos como alvos legítimos para tratamento negativo.

Uma segunda razão para duvidar do suposto papel causal da desumanização no dano intergrupal é que muitas pessoas têm um poderoso instinto de tratar animais não-humanos com muito cuidado. Os animais de estimação, por exemplo, são obviamente "menos que humanos" e mesmo assim as pessoas dispensam cuidado, atenção e dinheiro com eles. Ver um grupo como menos do que humano, então, não parece nem necessário nem suficiente para prejudicá-los.

Minha crítica à desumanização como uma explicação para os danos intergrupais tem implicações que vão além do debate acadêmico. Inspirados por trabalhos nesta área, alguns pesquisadores começaram a desenvolver intervenções voltadas para a mudança social que pretendiam reduzir a desumanização. Embora bem intencionados, esses esforços podem estar sendo mal direcionados. Minha análise sugere que as tentativas de fomentar uma sociedade mais inclusiva e igualitária poderiam ser melhor direcionadas caso se focalizassem em outros processos psicológicos já bem estabelecidos, como a tendência humana de estereotipar e depreciar as pessoas de fora do grupo [outsiders].

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Considerações sobre a campanha Setembro Amarelo

Setembro é o mês da campanha Setembro Amarelo, criada em 2015 pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) juntamente com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Desde então, neste mês são organizados eventos e discussões por todo o país sobre saúde mental com foco na prevenção do suicídio. A ideia que embasa a campanha é que falar sobre suicídio - e, mais amplamente sobre saúde mental - de alguma forma contribuiria, direta ou indiretamente, para a redução dos casos. A grande questão é que esta ideia não está comprovada de forma alguma - existe a possibilidade, inclusive, de que a ampla discussão sobre o tema possa contribuir para o aumento nos casos de suicídio. Um estudo publicado este ano avaliou os índices de suicídio no Brasil antes e após o início da campanha, em 2015. E a conclusão dos autores é que houve um aumento - mesmo resultado obtido por um outro estudo, publicado em 2018, que analisou os índices de suicídio antes e após a implementação da campanha Setembro Amarelo no Estado de Santa Catarina. Não se pode inferir destes resultados, contudo, que foi ou teria sido a campanha a responsável por tais aumentos, mas é possível sugerir que a campanha não foi tão útil na prevenção do suicídio como se imaginava e se pretendia. Certamente o suicídio tem relação com muito mais questões do que a campanha, logo não dá para apontar qualquer relação de causalidade, apenas correlações. Mas para além de sua eficácia ou ineficácia, meu principal incômodo com a campanha Setembro Amarelo está na visão, amplamente disseminada, de que a "prevenção do suicídio" diz respeito basicamente à contribuir para que as pessoas procurem apoio psicológico e (especialmente) psiquiátrico. O problema do suicídio é bem mais profundo e complexo do que o problema de como incentivar as pessoas em sofrimento a buscar ajuda ou tratamento, pois ele diz respeito à indagação fundamental de se a vida vale ou não a pena ser vivida. E esta indagação é sempre atravessada por inúmeras questões, tanto individuais como sociais. "Mas então" - alguém pode estar se perguntando - "você propõe que não se faça nada e que apenas observemos passivamente o aumento nas taxas de suicídio?". De forma alguma. Apoio totalmente ações e eventos voltados para a discussão da saúde mental - sem o foco no suicídio e também sem aquele viés patologizante e medicalizante típico de grande parte das iniciativas - assim como o incentivo à procura por apoio profissional, que mesmo não sendo uma panaceia pode contribuir para minimizar o problema. E penso que estas ações deveriam ocorrer ao longo de todo o ano, e não concentradas em um único mês. Mas também acredito que outras iniciativas deveriam vir junto, como o apoio à políticas de emprego e renda, à políticas ampliadas e não-excludentes de saúde mental, à políticas de proteção dos direitos humanos e de combate às opressões, dentre muitas outras políticas voltadas para a melhoria das condições de vida e saúde da população. Da mesma é fundamental se opor com veemência à políticas de facilitação do acesso a armas de fogo - que comprovadamente contribuem para o aumento nas taxas de suicídio - e à tantas outras necropolíticas que tem se multiplicado pelo Brasil nos últimos anos. Na minha visão, fazer cartazes com frases motivacionais e organizar palestras sobre saúde mental terá sempre um efeito muito pequeno, talvez nulo, se tais iniciativas não vierem acompanhadas de políticas e ações concretas que contribuam para que a vida realmente valha a pena ser vivida.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

O tempo e o vazio: reflexões sobre o tédio

Algumas pessoas que tem a possibilidade de estar em quarentena neste momento tem experimentado um constante ou intermitente estado de tédio. Mas o que, afinal de contas, é o tédio? Trata-se de um sentimento comum, que todos provavelmente já experimentaram ao menos uma vez na vida e, ao mesmo tempo, de algo bastante difícil de definir. Seria possível dizer do tédio aquilo que a poetisa Cecília Meirelles disse, certa vez, da liberdade: trata-se de uma expressão "que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda". No entanto, mesmo que não seja possível construir um entendimento completo do tédio - haja vista que as pessoas experimentam cada um dos sentimentos de uma forma muito particular e única - certamente é possível analisá-lo levando-se em conta alguns aspectos gerais da experiência. É o que fez o filósofo norueguês Lars Svendsen no livro Filosofia do tédio, talvez a melhor e mais ampla análise sobre o tema disponível em português. Nesta obra incrível, Svendsen faz uma retrospectiva histórica e filosófica da forma o tédio foi tratado por inúmeros pensadores ao longo do tempo. 

Um primeiro apontamento do autor é que o tédio seria, em sua visão, um fenômeno moderno. Para Svendsen "o tédio só passou a ser um fenômeno cultural central há cerca de dois séculos. É impossível, claro, determinar quando ele surgiu. Ademais, naturalmente teve precursores. Mas ele se destaca como um fenômeno típico da modernidade". Não é muito difícil entender o porquê. O tédio, tal como ele se manifesta em cada um de nós, tem relação com o excesso de opções e estímulos típico da vida moderna. Em contextos mais simples, menos agitados e estimulantes - tente imaginar, por exemplo, a vida de um agricultor na zona rural de uma pequena cidade do interior - é provável que as pessoas experimentem o sentimento de tédio com menor frequência e intensidade do que aquelas que vivem em contextos mais atribulados e frenéticos, como aqueles típicos das grandes cidades modernas. E o motivo é que a relação com o tempo, nos dois casos, é completamente diferente. No primeiro caso, não há a cobrança - e a autocobrança - de que todo o tempo seja utilizado de uma maneira significativa e útil. Um certo ócio contemplativo após o período de trabalho é visto como algo saudável e mesmo necessário. O passar do tempo, nesse caso, tende a ser experimentado de forma mais lenta - sem que isso seja visto como algo incômodo e entendiante. Já no segundo caso, isto é, no contexto de frenesi que muitos de nós vivemos, há a cobrança - e a autocobrança - de que todo o tempo seja utilizado de uma maneira útil. O ócio e a contemplação, de uma forma geral, são vistos como empecilhos para uma vida significativa. O problema é que é muito difícil utilizar todo o tempo que dispomos de um forma significativa e útil - e o tédio costuma aparecer justamente quando não conseguimos ver sentido, significado e utilidade naquilo que estamos fazendo em determinado momento. O tédio normalmente se manifesta quanto temos muitas opções de coisas para fazer mas não queremos fazer nada - ou melhor, não vemos sentido em nada. Como afirma Svendsen, o tédio deve ser entendido basicamente como uma ausência, "uma ausência de significado pessoal". Quando estamos entediados, nada faz sentido, nem as opções que temos diante de nós e nem a própria vida.

O tédio é caracterizado, em geral, por uma sensação de vazio. E o que fazemos, muitas vezes, diante desta sensação? Buscamos preencher o vazio, completando aquilo que falta. Esta busca, aliás, está na base de muitas das coisas que as pessoas fazem para afastar o tédio - na verdade, para tentar afastar o tédio. Neste período de quarentena, em especial, tem circulado muitas reportagens e textos com dicas para "combater" ou "afastar" o tédio durante o isolamento social. Por exemplo, na reportagem "O que fazer no tédio - 32 dicas para ajudar na passagem do tempo" o jornalista sugere a seus leitores o engajamento em atividades como ler, pintar, colorir, fazer listas, escrever, se exercitar, etc. - tudo para "passar o tempo". Muitas outras reportagens tem apresentado "dicas" ou "sugestões" de filmes, séries, livros, cursos ou jogos para se "vencer o tédio". E de fato as pessoas tem se engajado em inúmeras atividades para escapar deste sentimento, amplamente visto e entendido como algo a ser evitado, afastado, combatido. O tédio é um inimigo a ser vencido - e vencer o tédio só é possível, segundo tais reportagens, ao nos envolvermos em atividades que façam o tempo "passar". É interessante perceber, aliás, que esse objetivo de "passar o tempo" (base da ideia de passatempo) tem tudo a ver com o tédio na medida em que "passar" o tempo implica, na verdade, em não perceber a passagem do tempo e o tédio tem relação justamente com o dar-se conta desta passagem - dizendo de outra forma: quando estamos entendiados o tempo parece durar uma eternidade, ao passo que quando estamos envolvidos com alguma atividade o tempo parece passar muito mais rapidamente. De toda forma, a busca da pessoa entendiada não é somente que o tempo passe e ela não perceba. Ela quer e deseja acima de tudo novidades. Um exemplo bizarro que ilustra bem a relação entre tédio e desejo por novidade pode ser encontrado no clássico filme do diretor David Cronenberg Crash: estranhos prazeres, lançado em 1996, que retrata um grupo de pessoas entendiadas com suas vidas e relações amorosas que encontram prazer sexual (num sentido ampliado da ideia de sexualidade) ao observarem ou participarem de acidentes de carro. Tais pessoas desejam ardentemente alguma novidade que as tirem momentaneamente de suas vidas cinzas e acabam por encontrar tal novidade nos acidentes de carros. Ainda que tal desejo possa ser visto como algo bizarro e extraordinário, ele aponta para algo comum, que é o desejo por novidades, isto é, por tudo aquilo que retire as pessoas do tédio e as devolvam a vontade e o sentido de viver. 

Mas a grande questão é saber se esta busca por novidades e atividades de fato funciona para se fugir do tédio - ou se, pelo contrário, não há fuga possível e estamos fadados a voltar ao tédio tal qual Sísifo acaba por sempre retornar à base da montanha. E a resposta mais plausível é que, de forma temporária, é sim possível escapar do tédio. Quando nos envolvemos em determinadas atividades - ou mais precisamente naquilo que Svendsen chama de "corrida desordenada às diversões e ao lazer" - conseguimos às vezes e por algum tempo escapar do vazio e da falta de sentido que caracterizam o tédio - como afirma o psicanalista Erich Fromm no livro Do amor à vida (1986), "podemos temporariamente varrer o nosso tédio para debaixo do tapete tomando um tranquilizante, ou bebendo, ou indo ao coquetel após o outro, ou brigando com nossas mulheres, ou recorrendo aos meios de comunicação de massa em busca de diversão, ou devotando-nos à atividade sexual". Mas a questão é que não conseguimos e não conseguiremos escapar definitivamente do tédio. E o motivo é que se são as novidades (algumas novidades) que nos tiram momentaneamente do tédio, em pouco tempo a novidade deixa de ser novidade e o tédio retorna. Como aponta Svendsen, "quando nos jogamos sobre tudo que é novo, é na esperança de que o novo seja capaz de ter uma função individualizante e de dotar a vida de um significado pessoal; mas tudo que é novo logo se torna velho, e a promessa de significado pessoal nem sempre é cumprida – pelo menos, não mais que apenas no momento presente. O novo sempre se transforma rapidamente em rotina, e, então, também o novo entedia, pois é sempre o mesmo" Na visão do autor não há propriamente um remédio ou uma cura para o tédio, apenas sua aceitação. Como bem aponta Svendsen ao final do livro, "é preciso aceitar o tédio como um dado incontornável, como a própria gravidade da vida. Não é uma solução grandiosa - mas não há solução para o tédio".