terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sobre o Big Brother e o poder das circunstâncias

Já que está todo mundo falando de Big Brother, eu gostaria de falar também. Mas como eu não acompanhei sistematicamente nenhuma edição - nem mesmo a atual - pretendo fazer aqui apenas algumas considerações gerais sobre o programa, pensando nele como uma espécie de experimento nada ortodoxo de psicologia social - um experimento que, cabe apontar, não seria jamais aprovado por qualquer Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. De toda forma, é fato que muitos experimentos clássicos em psicologia social se assemelham imensamente a "pegadinhas" e a "reality shows" na medida em que que buscam analisar reações espontâneas dos participantes diante de determinadas situações artificialmente concebidas - e uma questão importante sobre os reality shows que já vale à pena apontar é que por mais artificiais que sejam as situações criadas pela direção do programa, de fato há sempre algo de "reality" em jogo, já que seria impossível aos participantes agir de forma totalmente autocontrolada ou dissimulada 24 horas por dia, especialmente após algum tempo de confinamento. Uma outra questão, amplamente demonstrada por inúmeros experimentos em psicologia social, é que todos somos profunda e continuamente influenciados pelas circunstâncias - e isto vale tanto para os participantes do Big Brother quanto para cada um de nós. A principal diferença, nesse caso, é que eles, ao contrário de nós, estão vigiados todo o tempo por dezenas, talvez centenas de câmeras que captam (quase) tudo o que falam e fazem e que transmitem todo esse imenso conteúdo para quem quiser assistir. Mas com relação ao poder das circunstâncias de influenciar e, de fato, moldar o nosso comportamento, estamos todos no mesmo barco. Como bem afirma o psicólogo social Sam Sommers no sensacional livro O poder das circunstâncias, "o mundo que nos rodeia está constantemente nos influenciando, colorindo a forma como pensamos e orientando como nos comportamos. No entanto, raramente notamos".

E nós raramente notamos as circunstâncias que nos influenciam pelo mesmo motivo pelo qual se imagina que os peixes não notem a água ao seu redor: devido a um processo quase inevitável de naturalização das forças que nos envolvem. Como afirma Sommers "nosso esquecimento típico sobre o poder das circunstâncias surge porque a maior parte de nossa existência diária ocorre em ambientes familiares, nos limites da rotina conhecida. É preciso o choque do desconhecido para lembrar o quão cego você é ao seu ambiente de sempre". O Big Brother, neste sentido, se constitui como um ambiente novo - e, portanto desconhecido - para seus participantes e, justamente, por isso, revela de uma forma bastante singular o poder das circunstâncias de moldar o self e o comportamento. É muito comum, nesse contexto atípico, que as pessoas ajam de uma forma diferente de como gostariam de agir e também de como agiram no passado em suas vidas cotidianas - algumas chegam a se surpreender, depois que saem da casa, com o que fizeram e falaram enquanto estavam lá. E o motivo é que tais comportamentos faziam sentido naquela circunstância específica, mas não em outras circunstâncias. Isto significa também que a ideia, amplamente disseminada, de que os participantes mostram no programa sua "verdadeira face" não faz muito sentido já que nós agimos de diferentes formas em diferentes contextos. Pense por exemplo na forma como você se comporta - isto é, o que você faz e fala e o que não faz e não fala - com seus amigos, com sua família e com seus colegas de trabalho. Muito provavelmente - e os experimentos em psicologia social demonstram isso - você age de formas distintas em cada um destes grupos e a razão é que nós não temos apenas um único e coerente "eu" mas múltiplos, a depender, é claro, das circunstâncias. Como afirma Sommers, nós somos "facilmente seduzidos pela teoria do caráter estável", quando, na verdade, "boa parte do que somos, de como pensamos e do que fazemos é motivada pelas situações em que nos encontramos". Isto não quer dizer que as pessoas não tenham uma personalidade mas sim que aquilo que chamamos de personalidade engloba múltiplas e contraditórias características que afloram (ou não afloram) de acordo com as circunstâncias específicas. Assim, uma mesma pessoa pode manifestar um comportamento mais introvertido em uma situação e um comportamento mais extrovertido (ou menos introvertido)  em outra. Isto não significa, contudo, que a pessoa não tenha uma personalidade mais introvertida mas que em determinadas situações - por exemplo, na presença de pessoas conhecidas - essa característica se aflora menos, dando espaço temporariamente a uma outra faceta. Todos nós, aliás, temos inúmeras facetas que manifestamos ou não manifestamos em circunstâncias específicas. Na casa do Big Brother, por exemplo, os participantes manifestam entre si variadas e, por vezes, contraditórias facetas. No entanto a edição do programa reduz toda esta complexidade ao transformá-los em personagens de uma certa narrativa que a direção pretende vender para o público. E é justamente nessa narrativa ultrasimplificadora da realidade que se encontra o elemento de show do reality show.

Toda esta discussão me traz a uma outra questão: se somos fortemente influenciados pelas circunstâncias isto significa que não somos responsáveis por nossas ações e que a "culpa" de nos comportarmos de determinada maneira é apenas do contexto? É claro que não! Como já deixei claro em diversas ocasiões defendo a existência do livre-arbítrio ainda que entenda que somos contínua e profundamente influenciados por inúmeros fatores que fogem ao nosso controle pessoal. Se não houvesse algum livre-arbítrio, não poderíamos jamais ser responsabilizados e responsabilizar alguém por nada. Como afirma Steven Pinker no livro Tábula Rasa, "se o comportamento não é totalmente aleatório, há de ter alguma explicação; se o comportamento fosse totalmente aleatório, não poderíamos responsabilizar a pessoa em nenhum caso. Portanto, se alguma vez responsabilizarmos pessoas por seu comportamento, terá de ser a despeito de qualquer explicação casual que julguemos cabível, independente de ela invocar genes, cérebro, evolução, imagens da mídia, dúvida sobre si mesmo, criação ou convívio com mulheres briguentas". Tudo isto significa que os participantes do Big Brother são sim responsáveis por tudo o que fazem e falam enquanto estão confinados na casa, ainda que sejam fortemente influenciados por circunstâncias específicas. Penso, nesse sentido, que devemos sempre levar em conta, em nossas análises e opiniões, tanto os comportamentos individuais dos participantes quanto as forças sociais a que eles estão sujeitos - e que influenciam fortemente seus comportamentos embora, repito, não os desresponsabilizem. Como desconsiderar, por exemplo, o efeito da competitividade que permeia todo o programa? Se os participantes são instigados a competir todo o tempo uns com os outros (por pequenos "prêmios" e, especialmente, pelo prêmio principal) como esperar que a regra seja a colaboração? Se o que vale é a racionalidade do cada um por si (pois apenas um vencerá) como esperar que as pessoas ajam de uma outra forma que não atacando com força seus oponentes? E vejam bem que eu não estou negando que haja espaço para colaboração - pois há; estou apenas apontando que a lógica central deste jogo (e de quase todos os jogos) é a da competitividade. E esta lógica certamente influencia o comportamento dos participantes, que tendem a se juntar em grupos especialmente para derrotar outros grupos - o que, curiosamente, os fortalece como indivíduos. E isto, por sua vez, leva o participante à um processo de conformidade e obediência ao grupo ao qual ele se vinculou e também, como consequência, a uma grande animosidade com relação aos indivíduos de fora do seu grupo. Não é de se estranhar, portanto, que ocorram tantas brigas entre indivíduos de grupos "rivais". E o motivo é que eles são - e todos somos - seres fundamentalmente sociais e, exatamente por isso, todas nossas ações e decisões são profundamente influenciadas pelas circunstâncias que nos envolvem.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

"O peso do pássaro morto" e as dores de um vida

Em meu projeto de ler mais ficção, descobri no final do ano passado o livro "O peso do pássaro morto", da escritora brasileira Aline Bei, e o li integralmente de uma só vez, em apenas uma tarde. Com relação à forma, achei o livro bastante peculiar pois ele é uma espécie de romance em formato de poesia ou um romance-poético - ou eu poderia chamar simplesmente de poesia? Não sei - prefiro deixar estas definições para os especialistas em literatura. Já com relação ao conteúdo é possível dizer, sem revelar nada de significativo, que ele trata da vida de uma mulher desde sua infância até a idade adulta. Narrado pela própria protagonista, o livro trata de temas difíceis e dolorosos como a morte, o estupro, a rejeição, o desamor, a solidão e o esquecimento. Se você busca um livro alto-astral com um olhar positivo ou otimista sobre o mundo e a vida, fuja desse. Mas se você estiver disposto ou disposta a um olhar duro e melancólico sobre a vida (e sobre a morte) este livro é, certamente, uma boa pedida. Pessoalmente, gostei muito do livro, embora tenha ficado muito triste ao terminá-lo. Não é definitivamente um livro fácil - não devido ao estilo da autora, mas sim devido aos temas que trata. De toda forma, recomendo muito sua leitura.

Trecho do livro:

“Na escola
em casa
na cozinha
perguntei pra minha mãe:

– o que é morrer?

ela estava fritando bife pro almoço.

– o bife
é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que farão com a sua carne.
quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos, mas tentamos.


almoçamos a morte e foi calado.
enquanto minha mãe lavava louça fui até a casa do seu luís às escondidas, mas não exatamente
acho que minha mãe ouviu
a porta batendo e que era eu
saindo com os meus 8 anos atravessando a rua olhando
pros 2 lados que meu pai me ensinou Cuidado
e batendo na casa do seu luís
pra perguntar. minha mãe deixou eu ir, deve ser
porque morreu uma menina de oito anos e isso
transformou ter a minha idade em ser adulta”

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre "Devs" e a (in)existência do livre-arbítrio

Nós somos livres para fazer nossas escolhas ou aquilo que chamamos de escolha na verdade é determinado por causas anteriores, que fogem completamente ao nosso controle pessoal? Enfim, nós possuímos ou não livre-arbítrio? Tal questão, amplamente debatida no campo filosófico ao menos desde a Grécia Antiga, mais recentemente tem sido analisada também no campo científico - em especial pela física e pela neurociência. Neste último caso, como já apontei em outras ocasiões, tem crescido no interior do campo neurocientífico, especialmente a partir da década de 1980, um discurso que nega a existência do livre-arbítrio sob o argumento de que é o cérebro, no fim das contas, que toma todas as decisões. Segundo esta visão neuro-determinista nós não fazemos de fato qualquer escolha; na verdade aquilo que chamamos de escolha é apenas o resultado de uma série de atividades encadeadas de nossos neurônios e suas sinapses. Pois todas estas questões me trazem à fantástica série de ficção científica Devs, lançada em 2020 pelo canal FX - e infelizmente pouco vista, comentada e analisada no Brasil. Criada por ninguém mais e ninguém menos que Alex Garland, roteirista e diretor de dois clássicos sci-fi contemporâneos (Ex Machina, que já analisei anteriormente, e Aniquilação) Devs tem como protagonista Lily Chan, uma jovem funcionária da megaempresa de tecnologia Amaya, cujo noivo, Serguei, aparece morto, carbonizado, um dia após começar a trabalhar num setor especial e misterioso da empresa, chamado Devs. Lily desconfia que Serguei não ateou fogo em si mesmo, como teriam mostrado as imagens das câmeras de segurança da empresa, e decide investigar o que de fato ocorreu. E com isso ela se vê imersa em uma série de tramas envolvendo, especialmente, os objetivos ocultos da empresa Amaya e de seu criador, Forest - e eu recomendo que você só continue lendo esta análise caso já tenha assistido à primeira temporada da série (ALERTA DE SPOILER). 

Como descobrimos em certo momento, a máquina desenvolvida pela equipe do Devs, sob a coordenação de Forest, tem como um de seus principais objetivos visualizar o passado e o futuro como um filme. Concebida com base no princípio determinista segundo o qual todos os fenômenos da natureza estão conectados por rígidas relações de causalidade, tal máquina tem a capacidade de prever o futuro através de uma complexa - e, ao que parece, completa - análise causal do passado. Trata-se, enfim, de uma máquina capaz de ver (ou simular) tudo, tanto aquilo que ocorreu quanto aquilo que ocorrerá. Em relação ao comportamento humano esta máquina teria o poder, por exemplo, de mostrar o que você estará fazendo amanhã à tarde. Agora, vamos supor que ela mostrasse você matando uma outra pessoa neste horário (como enxergariam os precogs do filme Minority Report). Teria você a liberdade para agir de uma outra forma sabendo de tal previsão? Seguindo as leis deterministas, utilizadas para a elaboração da máquina, não existiria essa possibilidade. O futuro será conforme a previsão independente do que você faça - aliás, você não teria como agir de outra forma em nenhuma situação, o que é uma outra forma de dizer que não existe o livre-arbítrio, pois o futuro já estaria previamente determinado. Na série, esta teoria é colocada à prova quando a equipe do Devs enxerga, através da máquina, Lily atirando em Forest - e, com isso impedindo, por algum motivo que não consegui compreender, a previsão de eventos para além deste momento. Se a teoria determinista estivesse correta não seria possível fazer nada para impedir isso. E então, quase na hora prevista para tal incidente, Forest mostra para Lily a previsão do que ela supostamente fará em alguns instantes. Mas na hora H, contrapondo-se ao que foi previsto, ela age de uma forma ligeiramente diferente. Com isso a teoria determinista é refutada e o livre-arbítrio comprovado. E ainda que ela e Forest acabem morrendo - de uma forma diferente da prevista - a máquina continua funcionando e acaba por ser utilizada para um último objetivo: transportar a consciência de Forest (e também a de Lily) para uma realidade simulada na qual a filha de Forest (Amaya) estaria viva novamente. Neste momento descobrimos o propósito final da máquina de Devs (que significa, na verdade, Deus): mapear o passado e o futuro de forma a criar uma realidade alternativa simulada para a qual algumas consciências seriam transportadas e, assim, imortalizadas - tal como ocorre no episódio San Junipero da série Black Mirror (sobre o qual já comentei anteriormente). Nesta nova realidade, apenas teriam consciência da simulação - e também livre arbítrio para tomar as próprias decisões - Forest e Lily. Para todas as demais pessoas - que não são de fato pessoas, apenas simulações sem consciência de que são simulações - aquela seria a única realidade existente. Aliás, nós também levamos nossas vidas como se esta fosse a única realidade. Nem nos passa pela cabeça que tudo o que vemos e sentimos poderia ser "apenas" uma simulação criada por uma megaempresa de tecnologia. Você, por acaso, já parou para pensar nessa possibilidade?

PÓS-ESCRITO: Em um importante artigo publicado em 2018 pela revista AJOB Neuroscience - denominado The Impact of a Landmark Neuroscience Study on Free Will: A Qualitative Analysis of Articles Using Libet and Colleagues' Methods [que poderíamos traduzir como "O impacto de um estudo de referência em neurociência sobre o livre-arbítrio: uma análise qualitativa de artigos que usaram os métodos de Libet e colegas"] - os pesquisadores Victorio Saigle, Veljko Dubijevic e Eric Racine simplesmente colocaram por terra o argumento utilizado por alguns neurocientistas de que a neurociência já teria provado a inexistência do livre-arbítrio. Tais pesquisadores não provaram, contudo - e dificilmente teriam como provar - que o livre-arbítrio existe; eles apenas demonstram de uma forma bastante consistente que a neurociência ainda não conseguiu provar sua inexistência. Nesta mesma direção, o filósofo Mark Balaguer, na conclusão de sua obra "Livre-arbítrio", publicada pela Série Conhecimento Essencial (The MIT-Press), afirma que "os inimigos do livre-arbítrio costumam exagerar quando apresentam seus argumentos. A verdade é que eles estão longe de saber o suficiente sobre como o cérebro funciona para concluir, com qualquer grau de certeza, que nós não temos livre-arbítrio". E arremata: "A neurociência tem feito progressos verdadeiramente surpreendentes nas últimas décadas. Mas essa ciência ainda está em sua infância. Nós simplesmente não estamos prontos para responder agora a questão do livre-arbítrio". 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan: "Você não é seu cérebro!"

Ontem à noite eu tive a hora de ministrar a Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan, centro universitário sediado na cidade de São João Del-Rei, em Minas Gerais. O evento contou com a participação virtual de mais de 600 pessoas de diversas cidades e instituições do país. O tema que escolhi para minha palestra foi, não coincidentemente, o mesmo título do meu último livro: "Você não é seu cérebro!" e nela eu trago um olhar crítico/realista sobre o campo das neurociências. Caso tenha interesse em assistir minha palestra, ela está disponível na íntegra abaixo - ou diretamente no canal do Youtube do professor da Uniptan Luis Vinicius do Nascimento, a quem agradeço imensamente pelo convite.
 
PS: a palestra tem início aos 32 minutos e 45 segundos do video.

"Normal people" e a chatice das pessoas normais

Segundo o Dicionário Informal, a expressão reme-reme diz respeito à "algo que vai andando devagar, nem bem, nem mal, assim-assim, vai andando como de costume, como sempre, não melhora, nem piora, não acelera, nem para". Pois esta expressão é perfeita para descrever a série Normal people, lançada em 2020 pela plataforma Hulu - e distribuida no Brasil pela StarzPlay. Trata-se de um reme-reme infernal com 12 longos (embora curtos) episódios. Baseada no best-seller homônimo da escritora Sally Rooney - que não pretendo ler - a série acompanha os (poucos) encontros e os (muitos) desencontros dos jovens irlandeses Marianne e Connell, desde o ensino médio até o início vida adulta. A série tem um tom exageradamente triste e dramático, que me incomodou muito. Em certos momentos, diante do chove-não-molha interminável dos personagens, e dos infinitos olhares melancólicos de um para o outro, minha vontade era entrar na tela e gritar para eles: "Pelo amor de deus, fiquem juntos ou se separem logo. Acabem de uma vez com todo esse sofrimento". Mas o sofrência não acaba nunca e só se acentua, o que torna a experiência insuportável em vários momentos. E o que dizer da trilha sonora, que parece ter sido retirada da playlist "Músicas tristes para chorar até dormir", do Spotify? Pra coroar a desgraceira, todos os personagens da série são incrivelmente chatos e desinteressantes - e se eles são as tais "pessoas normais" do título, a única conclusão possível é que as pessoas normais são terrivelmente chatas e desinteressantes, o que faz muito sentido. Por sinal, acho o título da série (e do livro) excessivamente ambicioso e, justamente por isso, equivocado. Afinal de contas, o que raios é uma "pessoa normal"? Não consigo imaginar questão mais complexa e problemática que essa, mas a resposta da série (e, ao que parece, do livro) é que Marianne e Cornell seriam modelos arquetípicos dessa tal normalidade. Mas o meu ponto é: se esses personagens terrivelmente chatos são "pessoas normais" então deus me livre ser normal! 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

"I may destroy you" e machismo nosso de cada dia

Por ser um homem branco, heterossexual e cisgênero eu jamais vivenciei sequer uma vislumbre do preconceito, da discriminação e da violência sofridos todos os dias por mulheres, negros(as), homossexuais e pessoas trans. Os privilégios que eu possuo - e que tento me manter consciente - de alguma forma me distanciam das experiências vivenciadas por inúmeras pessoas que não gozam de tais privilégios. No entanto, eu tento me aproximar o quanto posso de tais experiências, seja por meio de minha atuação clínica - que tem na empatia uma base fundamental - seja através de livros, filmes e séries criados e/ou protagonizados por mulheres, negros(as), homossexuais, pessoas trans, etc. É claro que por mais que eu tente me aproximar destas experiências, uma distância ainda permanece e sempre permanecerá, o que significa dizer que eu jamais saberei exatamente como é ser uma mulher ou uma pessoa negra, homossexual ou trans - até porque não existe apenas uma experiência feminina, negra, homossexual ou trans, mas inúmeras (embora seja possível identificar algumas vivências em comum, como aquelas relacionadas ao preconceito, à discriminação e à violência). Por uma limitação própria de nossa estrutura mental eu jamais compreenderei e sentirei, com toda a profundidade necessária, como é ser uma pessoa diferente de mim mesmo. O máximo que eu posso fazer, nesta busca por compreensão, é tentar me aproximar da vivência deste Outro, seja através da escuta de suas experiências seja através da apreciação de determinadas obras de arte, como aquelas advindas da literatura e do cinema. Todas estas reflexões me trazem, nesse sentido, à série I may destroy you, lançada em junho de 2020 pelo canal HBO. Criada, protagonizada, produzida e codirigida pela multitalentosa Michaela Coel (das séries Chewing gum e Black earth rising), I may destroy you conta a história de Anabella, uma jovem escritora londrina, envolvida na escrita de seu segundo livro, que certa noite sai para relaxar e se divertir com os amigos e acaba sendo dopada e brutalmente estuprada por um homem desconhecido no banheiro de um bar. No dia seguinte Bella acorda com um corte na testa mas não consegue se lembrar do que ocorreu e nem de detalhes do estupro e do estuprador; ela tem apenas flashes dos acontecimentos, que lhe invadem a mente de tempos em tempos. Após este acontecimento traumático, Anabella vai gradualmente se dando conta dos inúmeros (e por vezes sutis) abusos e violências que sofreu ao longo de sua vida por ser mulher - e negra. Ao longo desta primeira temporada, composta por 12 curtos episódios, acompanhamos todos os esforços da protagonista para lidar com seus traumas e seguir adiante. Em especial Bella recorre à todo tipo de apoio para enfrentar seus medos e curar suas feridas: inicia uma terapia, passa a frequentar um grupo de ajuda mútua voltado para mulheres vítimas de abusos e violências e, especialmente, conta todo o tempo com o imprescindível suporte de seus amigos queridos. Baseada nas vivências pessoais de sua criadora. I may destroy you trata com muita sensibilidade dos desafios de ser uma mulher negra em um mundo terrivelmente machista e racista. E com isso a série permite tanto a identificação por mulheres que tiveram experiências de abuso semelhantes às vivenciadas pela protagonista quanto o cultivo da empatia por pessoas que não tiveram tais experiências - caso de homens brancos como eu. E este cultivo da empatia pode contribuir, quem sabe, para que nós homens pensemos e repensemos nossas próprias atitudes - e especialmente o impacto de nossas ações e palavras nas mulheres com quem nos relacionamos ou apenas interagimos e, de uma forma geral, nas vidas e subjetividades de todas as demais pessoas com quem nos deparamos ao longo do caminho.