segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O preço da liberdade

O impactante documentário One of us (Um de nós), recém-lançado pelo Netflix, acompanha três jovens que decidiram sair da comunidade ultraortodoxa dos judeus hassídicos de Nova Iorque. Estes jovens (Etty, Ari e Luzer) tomaram a difícil decisão de abandonar a família, os amigos e toda a comunidade - sendo, por eles, abandonados - em função de não coadunarem mais com as crenças, práticas e, também, violências que acontecem de forma velada no interior desta comunidade extremamente reclusa - que, em geral, não permite aos mais jovens frequentar escolas não-hassídicas, estudar matérias seculares como inglês, matemática e geografia, conviver com pessoas externas, acessar a internet, assistir filmes, ler livros não permitidos, etc. Seus membros vivem, ou melhor, pretendem viver, dentro de uma bolha, fortemente separados do resto do mundo. O grande problema é que, exatamente como uma bolha de sabão, a película que separa o mundo interior do mundo exterior, é extremamente frágil, podendo se romper a qualquer momento. No caso desta comunidade específica, eles vivem no meio de um grande bairro, situado em uma grande cidade, localizada, por sua vez, em um dos maiores e mais seculares países do mundo. Como eles podem se manter isolados de tudo isso? Como podem manter a "pureza" de suas crenças e práticas em um mundo secular como o que vivemos? Bom, eles conseguem isso através de uma série de regras extremamente rígidas que regulam e mesmo impedem o contato e a relação de seus membros com o "mundo exterior". E agindo desta forma eles tem obtido sucesso neste propósito. Afinal de contas, os judeus hassídicos existem há centenas de anos e as atuais taxas de "abandono" não passam de 2%, segundo o documentário. Isto significa que a comunidade tem conseguido se manter coesa e isolada do resto do mundo - não um isolamento total, claro, afinal de contas, os sistemas político e judiciário são os mesmos para todos os cidadãos norte-americanos e grande parte dos produtos que são consumidos por eles são produzidos fora da comunidade. No entanto, apesar deste relativo sucesso, um "vírus maligno" ronda a comunidade hassídica, podendo fazer com que a bolha se rompa de vez e a comunidade se dissolva. Veja só o que disse um dos líderes hassídicos durante uma enorme cerimônia realizada em um estádio:

As pessoas estão entrando em um mundo diferente. Como a mosca que entra na teia de aranha, alguns já foram atraídos. Viemos prestar atenção ao chamado dos líderes espirituais da nossa nação que reconheceram e identificaram os perigos da internet. Algo que ameaça nossa continuidade como pessoas de Deus. Vi com meus próprios olhos darem a crianças de 11 anos Blackberrys, iPhones e iPods. As pessoas estão enlouquecendo?

Você deve estar se perguntando: por que todo este medo da internet, meu deus? E a resposta não é difícil de entender: a internet possibilita aos membros da comunidade hassídica, em especial aos mais jovens (isto é, aqueles cujas crenças ainda não estão totalmente cristalizadas), terem acesso a outras realidades e a descobrirem que a religião que praticam é apenas uma dentre milhares de outras existentes no mundo - e isto significa, em última instância, que a "verdade" que acreditam é somente uma dentre muitas outras possíveis. Enfim, o vírus que a internet traz é o vírus do relativismo, que traz consigo os vírus da dúvida e do questionamento - e não existe nada mais perigoso para grupos fundamentalistas do que o relativismo, a dúvida e o questionamento. Isto porque, como bem apontam os sociólogos Peter Berger e Anton Zijderveld no magnífico livro Em nome da dúvida (que já mencionei em outro post), a relativização é o "processo no qual o status absoluto de alguma coisa é enfraquecido ou, em alguns casos, destruído". No caso da comunidade hassídica o que é enfraquecido através do acesso à internet - e, mais amplamente, através do contato com o "mundo exterior" - é o status absoluto ou indiscutível de suas próprias crenças e práticas. Ao invés de serem entendidas simplesmente como "verdades absolutas" ditadas por Deus, tais crenças e práticas passam a ser compreendidas como "verdades relativas" criadas pelos homens. E chegar a esta percepção pode ser decisivo, em alguns casos, para que a pessoa decida abandonar a comunidade. Quanto tudo aquilo que fazia sentido deixa de fazer, algumas vezes não resta outra opção senão se retirar. No entanto, a liberdade tem um preço. E ele não é barato.

Mas antes de entrar nesta discussão, gostaria de deixar claro porque me refiro à comunidade hassídica como fundamentalista - afinal de contas, quando muitas pessoas pensam em fundamentalismo imediatamente vem à mente a imagem de um terrorista muçulmano. A questão é que esta imagem não corresponde totalmente à realidade. Isto porque: 1) nem todos os muçulmanos são fundamentalistas, 2) nem todos os fundamentalistas são muçulmanos e 3) nem todos os fundamentalistas são terroristas. Mas o que caracteriza, então, uma pessoa ou grupo fundamentalista? Como já apontei anteriormente, o que define o fundamentalismo é a intolerância à dúvida e ao questionamento. O fundamentalista não suporta o relativismo e a pluralidade do nosso mundo e acredita que a sua verdade é a verdade absoluta. Todas as outras crenças e práticas, são vistas como mentiras ou equívocos. Só ele tem a verdade. Mas uma questão interessante sobre os fundamentalistas é que nem todos pretendem impor suas "verdades" sobre os demais. Na verdade, uma parcela significativa deles não age desta forma. Isto porque, como apontam Berger e Zijderveld existem duas versões do "projeto fundamentalista". Na primeira delas, os fundamentalistas "tentam dominar toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela". Este é o caso dos Estados Totalitários, nos quais todas as pessoas que vivem sob seu regime são forçadas a seguir determinadas práticas e crenças - pense, por exemplo, na sociedade retratada pela fantástica série The Handmaid's Tale. Já o terrorismo - ou, pelo menos, algumas de suas manifestações - também poderia ser enquadrado dentro desta forma de fundamentalismo, no entanto, ele se constitui mais como uma estratégia política de desestabilizar o inimigo através da disseminação do medo, do que de uma tática voltada para a imposição uma "verdade". Por outro lado, de acordo com os autores, a segunda versão do fundamentalismo "abandona qualquer tentativa de impor uma crença a todos - a sociedade, em geral, pode ir para o inferno, por assim dizer - mas tenta instituir o não questionamento da crença fundamentalista em uma comunidade muito menor". Eles denominam esta forma de fundamentalismo de "subcultural ou sectário" apontando ainda que a sua principal característica é um "micrototalitarismo" que pressupõe a criação de "rigorosas defesas contra a contaminação cognitiva que contatos externos ameaçam introduzir  no sistema". Como você já deve ter notado, este é o caso dos judeus hassídicos e também dos Amish

Pois bem, este micrototalitarismo de fato funciona para manter a coesão da comunidade hassídica. O grande problema é que, devido às múltiplas formas de contaminação cognitiva (como a internet, a literatura e o cinema), um número pequeno mas crescente de membros tem abandonado a comunidade. E para auxiliar estas pessoas foi criada até uma entidade, denominada Footsteps, que tem como objetivo acolher, apoiar e orientar os "dissidentes". Afinal de contas, abandonar sua família, seus amigos e toda a sua comunidade - e, mais do que isso: todo o universo que te constituiu e que você compreende - não é nada fácil. Como afirma uma das responsáveis pela Footsteps: "Ninguém sai sem estar disposto a pagar o preço. E o preço da liberdade é muito alto. A comunidade é sua família. Se você está doente, alguém aparecerá e cuidará dos seus filhos. Trarão comida para você. Será levado ao hospital se não puder ir sozinho. Você nunca está sozinho, tem muito ajuda. Você perde muito quando sai". Pois um dramático exemplo disto pode ser encontrado na trajetória de Etty. Aos 27 anos ela decidiu sair da comunidade, motivada pelos frequentes abusos e violências de seu marido, e levou consigo todos os seus sete filhos. No entanto, seu ex-marido entrou na justiça e conseguiu a guarda legal de todos eles em função de um absurdo dispositivo judicial denominado status quo - que favorece a guarda pelo progenitor que tem condições de manter as crenças e práticas religiosas anteriores da criança. Ou seja, além de perder seus amigos, parentes e sua fonte de renda (isto é, seu marido), Etty "perdeu" ainda todos os seus filhos. Com os outros sujeitos retratados pelo filme não foi diferente: eles também perderam tudo e tiveram de começar a vida do zero. 

Mas não só: eles tiveram, e ainda tem, de aprender como funciona o "mundo exterior" - tal qual Kaspar Hauser, Kimmy Schmidt, os filhos do Capitão Fantástico ou os irmãos do filme Wolfpack. Um interessante depoimento do jovem Ari deixa bem claro como se dá esse processo: "Eu não sei nada. Eu não sei nem o básico da matemática. Nunca frequentei a faculdade, o ensino médio, nada. Frequentei escolas judaicas desde que nasci, desde que entrei na escola. Tenho que aprender muitas coisas novas, começando por inglês, o que acho que aprendi. Eu também tenho que aprender como as pessoas vivem de fato no mundo e como as coisas funcionam". Esta frase dele, curiosamente, é muito semelhante a uma fala de um dos personagens do filme Capitão Fantástico - que conta a história um pai que decidiu educar seus seis filhos de uma forma muito peculiar, isolados do resto do mundo. Pois bem, em determinado momento do filme, o filho mais velho desabafa com o pai, após desastrosas tentativas de interação com pessoas de fora da sua família: "Eu não sei nada! Eu não sei nada! Eu sou uma aberração, por sua causa! Você nos transformou em aberrações! A menos que tenha saído de um maldito livro, eu não sei nada sobre nada!". As pessoas retratadas pelo documentário One of us poderiam facilmente dizer o mesmo para seus pais. Aliás, Ari afirma o seguinte sobre o complexo processo de saída de sua comunidade e recomeço no "mundo exterior": "estruturaram a sociedade [hassídica] para você não sobreviver ao mundo lá fora. Estruturaram o mundo para que, se você sair, o único jeito de sobreviver é sendo um criminoso. Todos que saem acabam voltando, acabam presos ou em uma clínica de reabilitação. Mas nunca sobrevivem lá fora". Este sujeito, especificamente, foi internado em uma clínica de reabilitação devido à dependência de cocaína e, depois de um tempo, acabou por retornar à comunidade. Mas mesmo de volta, não conseguiu deixar de se sentir 'um peixe fora d'água'. Como afirmou ao final do documentário, "eu não me sinto preparado para viver em uma sociedade secular. Sinto uma certa angústia no mundo. Não estou culpando a comunidade ou algum rabino. Eu não estou culpando ninguém. Mas eu ainda não encontrei o meu lugar".

O curioso é que este mesmo sujeito, algum tempo antes, declarou o seguinte sobre estar do lado de fora: "É uma liberdade incrível. Tudo o que eu não deveria fazer, estou livre para fazer. Após saborear esta vida... apague a vida antiga". A grande questão é que a liberdade - no sentido "negativo" de não ser coagido a agir e viver de determinada maneira - é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que ela possibilita ao sujeito exercitar sua vontade e sua capacidade de escolha, por vezes o excesso de escolhas que ele é obrigado a fazer sobrecarrega sua mente e gera esgotamento. Este é o paradoxo da escolha, que já discuti em outro post: tendemos a acreditar que ter mais liberdade e mais opções é sempre melhor, no entanto, quanto mais opções temos, mais perdidos, ansiosos e angustiados nos sentimos. Em uma comunidade fechada e disciplinada, como a que vivem os judeus hassídicos, certamente o nível de liberdade individual é bastante limitado, pois a vida é em grande parte regida pelas normas e regras da comunidade. Por outro lado, esta restrição da liberdade pode funcionar como uma liberação da angústia de ter que tomar decisões a todo momento. Não é por outro motivo que Berger e Zijderveld afirmam que "o totalitarismo, com efeito, é uma espécie de liberação. O indivíduo, confuso e aterrorizado por 'todas as decisões que precisa tomar' pode receber a reconfortante dádiva de absolutos renovados". Com isto eles querem dizer que, contrariamente ao que muitos pensam, o totalitarismo pode gerar uma curiosa forma de liberdade: não aquela liberdade de se fazer o que se quer - pois num regime totalitário isto não é possível - mas aquela liberdade de não ser obrigado a fazer continuamente escolhas e arcar com suas consequências e responsabilidades. 

Mas isto não significa, cabe apontar, que o totalitarismo seja bom ou que devemos lutar pela volta do regime militar, como fazem algumas pessoas. Pelo contrário, defender coisas como essa é de uma absurdo sem tamanho. Afinal de contas, se existem alguns ganhos devido à restrição de liberdade, existem também inúmeras e gigantescas perdas, sendo a principal delas a impossibilidade de se fazer as pequenas e grandes escolhas da vida. Se fosse dada à você a possibilidade de escolher entre uma vida "enclausurada" mas "satisfatória" e uma vida "livre" mas "angustiante", o que você escolheria? Eu aposto que muitos - eu não saberia dizer se a maioria - escolheriam a liberdade, com todos os seus problemas e dilemas. Mas o fato é que esta não é propriamente uma escolha. Atualmente, a maior parte das pessoas no mundo ocidental não vive sob regimes totalitários e nem confinados em comunidades sectárias e isto significa, como bem afirmou o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre no clássico O ser e o nada, que estamos todos "condenados à liberdade". Este é o caso também das pessoas retratadas pelo documentário. À partir do momento em que decidiram sair da comunidade elas tiveram e continuarão tendo que lidar com os mesmos problemas e dilemas que todos nós: o que faremos da nossa vida? O que será do futuro? Qual o sentido da existência? Não havendo mais uma comunidade para lhe acolher e lhe dar todas as respostas, a única saída agora é procurar estas respostas por si mesmo - e  lidar com as angústias e ansiedades deste processo. Já que o sentido não está mais dado pela comunidade, não resta outra alternativa a não ser construir o próprio sentido. Como bem afirma o dissidente Luzer, "todos nós estamos procurando um propósito, um sentido. E eles [os membros da comunidade] tem isso. Eles tem um propósito e um sentido. Eu sempre tentarei encontrar isso".

Sugestão de leitura: Review do documentário One of us (site Vida Prática Judaica)

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Precisamos falar sobre... concentração

Como você avalia sua capacidade de concentração? Você considera que tem conseguido se focar nas suas atividades? E sua memória, como anda? Quando faço perguntas como essas nas palestras que dou sobre concentração e memória, a resposta da plateia, quase sempre, é negativa. Grande parte das pessoas - ou, pelo menos, das pessoas que participam de uma palestra com essa temática - entende que sua concentração e sua memória estão muito aquém do que gostariam. Especificamente no caso da concentração, o descontentamento geral é tão grande que não consigo ver como uma simples coincidência a proliferação de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Isto ocorre, em grande medida, porque vivemos em um mundo que favorece imensamente a desatenção e a hiperatividade. Como já argumentei inúmeras vezes neste blog, este aumento nos diagnósticos de TDAH não é simplesmente o resultado de mudanças ou diferenças no funcionamento cerebral das pessoas, mas também, e especialmente, de mudanças no funcionamento do mundo - isto para não falar do papel da banalização dos diagnósticos psiquiátricos na atualidade. Pois de fato, nunca tivemos acesso a tanta informação e com tanta velocidade; e isso, certamente, tem um impacto gigantesco na nossa capacidade de prestar atenção. Alguns analistas chegam a denominar a atual geração, ironicamente, de Homo Distractus, devido à enorme capacidade que temos de nos distrairmos e nos desfocarmos. Aliás, eu tenho certeza que você sente esta mudança em si próprio. Quem tem mais de 30 anos como eu e não vivenciou, desde criança, a vida digital plena que possuímos hoje - eu sou da época do VHS e do K7, abreviaturas absolutamente sem sentido para uma geração que tem Netflix e Spotify - provavelmente percebe que sua capacidade de se focar em algo por um tempo significativo foi declinando ao longo do tempo. Ler textos longos, como estes que escrevo, se tornou um desafio colossal. Como um sujeito comentou outro dia na página deste blog no Facebook: "Que absurdo. Um texto gigante que eu ficaria um dia inteiro pra ler. Custa resumir?". Para este sujeito, ler um texto grande - e poxa, nem era tão grande assim - é algo que demanda uma capacidade de atenção, mais até do que disponibilidade de tempo, que ele não possui. Aliás, poucos de nós possuímos atualmente.

Mas o que, afinal, é a concentração? E acho importante destacar que eu tratarei aqui atenção e concentração como sinônimos, apesar de alguns autores entenderem como processos diferentes - na verdade, uma diferenciação possível seria compreender a concentração como sinônimo de atenção focada, isto é, como um tipo de atenção, mas eu prefiro entender as duas expressões como referentes ao mesmo processo. Pois bem, iniciemos com duas definições clássicas. A primeira vem do psicólogo Robert Sternberg, autor de um clássico manual de Psicologia Cognitiva, segundo o qual atenção "é o fenômeno pelo qual processamos ativamente uma quantidade limitada de informações disponíveis através dos nossos sentidos, de nossas memórias armazenadas e de outros processos cognitivos". Já a segunda definição vem do psicólogo William James, para quem a atenção "é a tomada de posse da mente, em uma forma clara e vívida, de um dos diversos objetos ou séries de pensamentos que parecem simultaneamente possíveis... Implica o abandono de algumas coisas, a fim de ocupar-se efetivamente de outras". Podem parecer definições complicadas, mas de uma forma resumida - como disse o querido leitor, "custa resumir?" - é possível dizer que a atenção é o processo por meio do qual filtramos a realidade. Como não temos a capacidade de perceber, ao mesmo tempo, tudo o que se passa ao nosso redor, temos necessariamente de focar em uma coisa e depois em outra, uma de cada vez - de outra forma, ficaríamos sobrecarregados de informação. A atenção funciona, assim, como o zoom de uma câmera ou como um projetor de luz, permitindo que enxerguemos o mundo por partes, de forma mais ou menos focada. Quando, por exemplo, olhamos de longe para uma floresta, podemos nos focar tanto na floresta como um todo quanto em apenas uma árvore ou em um passarinho que está pousado nesta árvore. Por uma limitação cognitiva não conseguimos enxergar o geral e o específico ao mesmo tempo.

Tente, por exemplo, achar o Wally nesta imagem (e caso você não o conheça, este é o Wally):


Conseguiu? Espero que sim... caso contrário, insista mais um pouco, pois em algum momento você o encontrará! A grande questão é que para achar o Wally você necessariamente tem percorrer os detalhes da imagem com seus olhos, como um projetor de luz que ilumina uma coisa por vez. Talvez você tenha dado sorte e encontrado imediatamente o Wally, mas em geral é necessário alguns minutos para explorar toda ou uma grande parte da imagem - repleta de personagens vestidos de forma parecida com o Wally - até encontrá-lo. Pois bem, esta brincadeira, que foi extremamente popular na minha infância, é uma espécie de teste de atenção - não um teste para avaliar se a atenção da pessoa é boa ou ruim mas um teste que demonstra como funciona e quais são os limites do nosso processo atencional. Mas quais são estes limites? Em primeiro lugar, como já apontei anteriormente, não temos como prestar atenção no geral e no específico ao mesmo tempo. Se você se focasse na imagem como um todo, você jamais encontraria o Wally; para encontrá-lo você precisou se concentrar nas especificidades da imagem. Em segundo lugar, existe um processo, denominado cegueira inatencional, que impede que prestemos atenção em tudo ao mesmo tempo. Se eu te perguntasse, por exemplo, se você viu na imagem uma mulher levando um tombo, provavelmente você dirá que não, pois você estava focado em encontrar o Wally. Pois a cegueira inatencional diz respeito exatamente a isso. Como apontam os psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons (que mencionei no post anterior), “quando a pessoa focaliza a atenção especificamente em uma área ou aspecto do mundo visual, tende a não reparar em objetos inesperados, mesmo que se destaquem, que sejam potencialmente importantes e apareçam exatamente no local onde está olhando”. Enfim, somos cegos, literalmente cegos, com relação a tudo aquilo que não estamos prestando atenção em determinado momento. Não acredita nisso? Então assista ao video abaixo e tente seguir suas instruções...
 

Esta é uma versão modificada de um experimento clássico idealizado pelos psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons, autores do livro O gorila invisível e outros equívocos da intuição. Como o título do livro dá a entender, no experimento original, que pode ser visto aqui, havia um gorila (ou melhor, um homem vestido de gorila) e não um urso, como neste video publicitário. Mas antes de discutirmos as implicações deste experimento, peço que assista ao próximo video, tentando igualmente seguir todas as instruções.


Então... se você realmente seguiu as instruções dos experimentos (e, obviamente, se você não conhecia estes videos), muito provavelmente você não percebeu nem o urso dançando moonwalk, nem o desaparecimento da cesta de basquete e nem a mudança na cor do banheiro químico - e com relação a este último video, eu aposto que você ficou esperando alguma pessoa vestida de bicho passando ao fundo! Por outro lado, se você percebeu estes elementos ou mudanças, provavelmente você errou as contagens. Agora, se você acertou as contagens e ainda percebeu o urso, a cesta e o banheiro muito provavelmente você já conhecia os videos - ou você é jedi! A grande maioria das pessoas, quando segue corretamente as instruções, não percebe tais elementos ou mudanças - eu já apliquei estes experimentos em diversas palestras e a grande maioria das pessoas nunca vê nada de diferente. E por que isso acontece? A explicação, como você já imagina, passa pela cegueira inatencional. Quando estamos focados em uma coisa deixamos de ver outras... e não há nada que possamos fazer a respeito. Como apontam Chabris e Simons, “a estrutura do corpo humano não nos permite voar, assim como a estrutura da mente não nos permite perceber conscientemente tudo ao nosso redor”.

Pois bem, a cegueira inatencional ajuda a explicar também dois fenômenos interessantes: o efeito Stroop e a chamada cegueira para mudança. Começemos pelo efeito Stroop.



Agora passemos para a cegueira para mudança. Veja os dois videos abaixo. 

 


Analisemos primeiramente o efeito Stroop (nome dado em homenagem ao pesquisador John Ridley Stroop, que descobriu este efeito). Pois bem, o efeito Stroop diz respeito à dificuldade que temos em dizer a cor de uma palavra que se refere a uma outra cor. A primeira parte do experimento é muito simples, pois não há contraste entre cor e palavra, mas a segunda parte é bem mais complicada, pois existem dois estímulos chamando nossa atenção ao mesmo tempo (cor e palavra). Esta dificuldade inicial se deve ao fato de não possuirmos a capacidade de focar nossa atenção em dois ou mais estímulos complexos ao mesmo tempo. Mas à medida que o exercício prossegue acabamos por aprender que precisamos ignorar o que está escrito e nos focarmos somente na cor. Quando conseguimos fazer isso, reduzindo o número de estímulos para somente um, passamos a realizar o exercício sem maiores dificuldades. 

Agora passemos para o fenômeno da cegueira para mudança. Mas antes, peço que tentem encontrar em cada imagem abaixo um elemento que muda quando ela pisca.




Conseguiu encontrar? Bom, tenho que confessar que eu demorei um bocado para perceber as mudanças, que agora me parecem tão evidentes. E por que temos, em geral, esta dificuldade? A resposta passa pelo curioso fenômeno da cegueira para mudança, que como o próprio nome dá a entender, diz respeito à dificuldade que temos em perceber mudanças no mundo. Os videos acima deixam isto bastante claro. No primeiro deles, a vítima da "pegadinha" (o senhor de barba), não consegue perceber que o homem para quem ele está dando uma informação não é mais a mesma pessoa - o mesmo ocorrendo com cerca de 50% dos participantes da pesquisa. Já no segundo video, as pessoas simplesmente não conseguem perceber não só que a atendente atrás do balcão não é mais a mesma pessoa mas também que a roupa e o cabelo são completamente diferentes. Mas porque diabos isso acontece? A resposta é que as "vítimas" de tais estudos (e cabe apontar que muitas pesquisas da área de psicologia se parecem muito com "pegadinhas") não conseguem perceber as mudanças porque não estão prestando a devida atenção na fisionomia das pessoas que estão lhe ajudando naquele momento. No primeiro caso, o senhor está focado em explicar para o sujeito onde se localiza determinado prédio no campus universitário. Já no segundo caso, as pessoas estão focadas provavelmente nos próprios pensamentos ou no objetivo que as conduziu até aquela loja. Difícil saber exatamente, mas o fato é que aquelas que caíram na "pegadinha" não estavam prestando atenção na fisionomia das atendentes - assim, como, em geral, não prestamos atenção na fisionomia dos motoristas de ônibus ou das pessoas que distribuem folhetos na rua. Isto ocorre também porque em 99,99% das vezes as pessoas não se transformam em outras repentinamente, o que significa que a nossa mente não está, de forma alguma, preparada para mudanças abruptas e sem sentido como essas. Mas a cegueira para mudança ajuda a explicar também porque os "jogos dos 7 erros" são, algumas vezes, tão desafiadores e ainda porque não conseguimos detectar facilmente erros de continuidade nos filmes (e os filmes são repletos desses erros!). Isto ocorre porque não conseguimos focar em todos os elementos de uma imagem ou de um video ao mesmo tempo. Se focamos em um aspecto da realidade, acabamos por desfocar de outros.

Tudo isto me traz à seguinte questão: se a atenção tem tantos limites, isto significa, então, que não é possível fazer várias coisas ao mesmo tempo? A resposta para esta questão é complexa, mas pode ser resumida com uma simples palavra: depende. Mas depende do que? Depende do nível de complexidade, de automatismo e de dispêndio de "energia mental" das tarefas que você se propõe a fazer simultaneamente. É possível, por exemplo, cozinhar e falar ao telefone? Sim e não. Na verdade tudo depende da sua habilidade na cozinha e da profundidade da conversa ao telefone. Se você cozinha já há muito tempo, provavelmente você desenvolveu uma série de automatismos que fazem com que cozinhar demande menos "energia mental" para você do que para alguém que está iniciando na arte da cozinha - o mesmo vale para todas as demais habilidades, como dirigir, estudar e manipular o smartphone. No início é difícil mas, com o tempo, fica mais fácil. Isto significa que se você é um expert no fogão muito provavelmente cozinhar e falar ao telefone, especialmente por viva-voz, não lhe prejudicará muito. Agora, se você não está habituado a cozinhar ou se você está preparando um prato novo, pode ser que falar ao telefone lhe prejudique. Mas tudo depende também da complexidade desta conversa ao telefone: caso se trate de uma conversa leve e casual, que pode ser interrompida eventualmente, é provável que o ato de cozinhar não saia prejudicado. Agora, caso se trate de uma conversa difícil - tipo uma DR - muito provavelmente a preparação do alimento sairá prejudicada, pois a conversa provavelmente demandará grande "energia mental". Bom, acho que você já captarou o ponto: é possível sim fazer simultaneamente duas ou mais coisas desde que apenas uma delas demande grande "energia mental" - ou, dizendo de outra forma, demande grande capacidade atencional. Isto significa que não é possível fazer ao mesmo tempo duas ou mais atividades complexas e não-automatizadas - como, por exemplo, estudar e falar ao telefone, dirigir e assistir um filme ou andar de bicicleta e mexer no celular. Caso você tente fazer estas duas coisas ao mesmo tempo, alguma delas certamente sairá prejudicada. Isto significa também que muito do que as pessoas chamam de multitarefa ou multitask na verdade se trata de uma realização intercalada ou alternada de tarefas e não propriamente de uma realização simultânea. Quando algumas pessoas dizem, por exemplo, que as mulheres conseguem fazer mais coisas ao mesmo tempo do que os homens isto significa, na verdade, que elas conseguem (ou melhor, conseguiriam) mudar rapidamente de uma tarefa para outra e não que fazem tudo ao mesmo tempo, o que não é seria possível.

Bom, para finalizar esta longa reflexão - e eu aposto que a maioria das pessoas não chegará até aqui (e se você chegou, meus parabéns!) - gostaria de trazer uma última questão: tendo em vista tudo isso, o que podemos fazer para melhorar nossa atenção? Pois bem, como para a maioria das questões humanas, não há uma receita, um caminho fácil ou uma panaceia. Certamente é possível encontrar na internet infinitos picaretas vendendo falsas promessas e ilusões sobre como "melhorar sua concentração" e "potencializar sua memória" e, exatamente por isso, você deve ficar muito atento para não cair em suas teias. Pois o fato é que não é nada simples melhorar sua atenção. Uma primeira possibilidade, nesse sentido, é tentar reduzir o número de distratores, isto é, de elementos que geram distração. Se você precisa se concentrar no estudo para uma prova ou concurso, por exemplo, talvez ajude se você buscar um local silencioso para estudar, tipo uma biblioteca pública. Desligar o celular (e não somente colocá-lo no silencioso) também pode ajudar, pois certamente uma das principais fontes de distração atualmente são os smartphones. Deixar o notebook em casa e estudar totalmente offline, utilizando-se somente dos livros, apostilas e cadernos, também pode ser útil, pois é muito comum que uma simples pesquisa no Google desencadeie uma série de outras buscas e visitas ao seu email, ao Facebook, ao Twitter, ao Instagram, ao seu site de cinema favorito, a um video de gatinho no Youtube etc... quando você se dá conta se passaram 3 horas e o seu estudo, nesse meio tempo, foi pras cucuias. Todo cuidado é pouco! Enfim, tentar eliminar o máximo possível de distratores externos pode auxiliar muito à concentração. Afinal, como bem disse o economista e prêmio Nobel Herbert Simon, "riqueza de informações cria pobreza de atenção". 

Mas o problema é que existem também os distratores internos, isto é, os nossos próprios pensamentos e sentimentos, que não podem ser simplesmente eliminados, no máximo controlados. Neste sentido, participar de atividades que ajudem a acalmar a mente e diminuir a ansiedade, como ioga, meditação e tai chi chuan pode ajudar - afinal, se você está ansioso você está pensando no futuro e se você está pensando no futuro você não está vivendo o presente e se você não está vivendo o presente você não está concentrado na sua tarefa. A questão é que ainda que tais atividades ajudem - e certamente elas ajudam - nenhuma delas resolverá totalmente o problema, pois é muito difícil manter a mente calma o tempo todo, especialmente nos momentos mais turbulentos da vida. Como eu disse, não há uma solução simples. O que penso ser realmente fundamental é realizar um esforço consciente de fazer uma coisa de cada vez e de estar em apenas um "lugar" a cada momento. Quando, por exemplo, um estudante fica na sala de aula alternando sua atenção entre o celular e a fala do professor, ele está tentando viver duas vidas ao mesmo tempo: a vida real e a vida virtual. Como já sabemos que não é possível prestar atenção em duas coisas complexas de um só vez, provavelmente, neste caso, a vida real sai perdendo. Fundamental, neste caso, seria o estudante tomar uma decisão: ou se focar totalmente na fala do professor e viver a vida real ou se focar totalmente no celular e viver plenamente a vida virtual. Tentar se dedicar às duas coisas ao mesmo tempo, como temos feito com grande frequência, só poderá resultar em perda da nossa capacidade de concentração. Eu não poderia discordar, nesse sentido, da preciosa recomendação feita pelo jornalista Pedro Burgos no livro Conecte-se ao que importa: um manual para a vida digital saudável: “Minha regra é o bom-senso ou qualquer derivação da frase 'esteja totalmente no lugar onde você escolheu estar'”.  

domingo, 22 de outubro de 2017

A ilusão da memória

No sombrio Blade Runner 2049, continuação do clássico de ficção científica Blade Runner, lançado em 1982, acompanhamos o caçador de andróides K., interpretado pelo ator Ryan Gosling, no percurso de uma complexa investigação com potencial para implodir a diferenciação e a relação entre humanos e replicantes. Não entrarei em detalhes da narrativa, me concentrarei apenas em uma questão importante, embora não central, da história, que se refere ao fato do blade runner K., um replicante (isto é, um robô humanizado), ter memórias da infância quando, de fato, ele não teve uma infância. Como todos os demais replicantes, K. foi construído "adulto" e, portanto, sempre foi exatamente da forma como se apresenta no presente. Isto significa que suas memórias de infância, embora lhe pareçam extremamente reais, não passam de invenções, de criações, de ilusões concebidas por seus criadores para lhe dar uma sensação de humanidade. A grande questão é que tais memórias lhes são tão vívidas que K. se questiona o tempo todo se ele não teve, de fato, uma infância. Na verdade, o fato de saber, racionalmente, que tais memórias foram implantadas, não impede que ele as sinta como verdadeiras. Tudo isto significa que sua investigação não é apenas objetiva, mas também subjetiva. Seu intuito não é simplesmente desvendar certo acontecimento, mas também, desvendar a si mesmo, tentando chegar, em ambos os casos, a alguma verdade sobre as coisas. Como afirma em determinado momento, "estamos todos à procura de algo real".

Saindo da ficção e voltando para a realidade, gostaria de trazer e discutir a seguinte questão: se as memórias do replicante K. são claramente inventadas, embora ele sinta que não, será que podemos concluir que as memórias humanas, isto é, as nossas memórias dos acontecimentos que vivemos, são reais? Certamente toda memória é real na medida em que é sentida como real por quem se lembra, mas a questão não é tão simples assim. A questão é saber se as nossas memórias, que sentimos como reais, de fato correspondem a acontecimentos reais que ocorreram no passado. Enfim, nossa memória funciona como um filme ou como um computador que reproduz em nossa mente exatamente o que aconteceu ou ela não é tão fiel assim aos acontecimentos? Uma significativa parcela da população tende a acreditar na primeira opção. Como apontam os psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons no fantástico livro O gorila invisível e outros equívocos da intuição, uma ampla pesquisa encomendada por eles encontrou que 47% dos 1500 participantes acreditava que "se você vivencia um evento e forma uma lembrança na memória, essa lembrança não muda", ao passo que 63% concordava com a afirmação de que "a memória humana funciona como uma filmadora, gravando com precisão os eventos que vemos e ouvimos, de forma que podemos revê-los e inspecioná-los mais tarde". Como você já deve estar suspeitando, esta visão de que a memória é fixa e fiel aos acontecimentos não passa de um equívoco ou, mais precisamente, de uma ilusão - denominada pelos autores de "ilusão da memória". 

Episódio The entire history of you
Mas se a memória humana não funciona como no episódio The entire history of you da série Black Mirror - no qual os personagens possuem implantes nos olhos que registram em video tudo o que vêem - então como ela funciona? Pois bem, a nossa memória, exatamente por não funcionar como um filme, não armazena tudo o que é capturado pelos sentidos. Na verdade, a concentração funciona como um primeiro filtro: não memorizamos aquilo que não focamos nossa atenção. Se, por exemplo, não prestamos atenção em uma determinada aula porque estávamos "viajando na maionese", jamais o seu conteúdo será "armazenado" em nossa memória. E mesmo se prestarmos atenção e nos mantivermos 100% focados, a grande maioria das informações certamente se perderá. Tente se lembrar de alguma palestra que você assistiu ou de uma viagem que você fez 5 ou 10 anos atrás. Muito provavelmente você não se lembrará mais dos detalhes, exceto dos mais marcantes e emocionalmente relevantes, sendo capaz de se recordar, se muito, apenas dos fatos mais gerais. No caso da palestra, por exemplo, você pode até se lembrar do tema e da conclusão geral do palestrante, mas dificilmente se recordará de frases específicas ou de qual era a cor da camisa dele. Já no caso da viagem, você pode até se lembrar de quais cidades conheceu e dos pontos turísticos que visitou, mas dificilmente se recordará do nome do restaurante que foi no segundo dia ou de informações específicas sobre certo monumento histórico ditas pelo guia de turismo. Enfim, logo após você viver determinada experiência, as memórias estarão "frescas" e provavelmente você se lembrará de alguns detalhes - ao passo que muitos outros serão perdidos instantaneamente -, mas à medida que o tempo passa você se lembrará cada vez menos daquilo que viveu, restando, quando muito, apenas algumas impressões gerais. Mas a questão, neste caso é: o quão reais são essas "impressões gerais" e os poucos detalhes que conseguimos nos lembrar? Podemos ter a certeza de que essas lembranças que permanecem correspondem exatamente àquilo que foi vivido? 

Infelizmente, a resposta, mais uma vez, é negativa. Nossas memórias, inclusive as mais marcantes, não são exatas como um video de determinado acontecimento. Pelo contrário, elas são continuamente reconstruídas cada vez que são recuperadas e narradas. Além disso, estão sujeitas a múltiplas influências e interferências seja de nós mesmos (através de nossas expectativas e fantasias) seja de outras pessoas (através de sugestões e manipulações), podendo ser distorcidas e mesmo inventadas. Todos nós estamos sujeitos, quer queiramos ou não, à criação de falsas memórias, isto é,  de "lembranças de eventos que não ocorreram, de situações que não foram presenciadas, de lugares jamais vistos, ou então, de lembranças distorcidas de algum evento". Difícil saber se tais memórias são a regra ou a exceção; o que de fato sabemos é que elas existem, são frequentes, podem acometer todas as pessoas e causam uma série de problemas em situações diversas, como, por exemplo, nos tribunais, onde comumente as testemunhas de um crime são solicitadas a relatar em detalhes o que realmente aconteceu em determinada situação - e não simplesmente o que elas acham que aconteceu. A grande dificuldade neste e em outros casos é que é praticamente impossível determinar se a lembrança é verdadeira ou falsa, haja vista que, muitas vezes, não há como confirmar o relato por outros meios. E é justamente em função desta enorme incerteza – e da comprovação de inúmeros casos de falsas memórias que levaram à condenação de pessoas inocentes – que a utilização de provas testemunhais vem sendo, já há muitos anos, questionada e relativizada.

Pois bem, mas como será possível criar falsas memórias? De acordo com a literatura sobre o assunto, tais memórias podem se originar basicamente de duas maneiras: de forma espontânea e de forma implantada ou sugerida. No primeiro caso, as falsas memórias são criadas naturalmente no processo de recordação e esquecimento. Funciona mais ou menos assim: você vive determinada situação; o tempo passa e você se esquece dos detalhes - você continua se lembrando do que aconteceu mas não tanto de como aconteceu; ao relembrar a situação ou contá-la para outra pessoa, você preenche as lacunas de sua lembrança com elementos e detalhes que não ocorreram de fato (ou que ocorreram de forma diferente) e ao imaginar estes novos detalhes você acaba por incorporá-los na memória; e a cada vez que você relembra ou narra esta situação, sua memória vai eliminando, acrescentando ou distorcendo cada um de seus elementos. Todo este processo, cabe apontar, acontece o tempo todo com todas as pessoas em todos os lugares. Ninguém está imune. Já no caso das falsas memórias implantadas ou sugeridas, a criação ocorre em função da influência, proposital ou não, de terceiros. Um bom exemplo disso pode ser visto no filme A caça - que já analisei anteriormente - no qual um psicólogo, por meio de perguntas tentenciosas, induz uma garotinha de 5 anos a criar uma falsa lembrança de abuso sexual. Um outro exemplo, mais recente, pode ser encontrado no filme Otherlife, atualmente disponível no Netflix, que retrata uma empresa que oferece a seus clientes a possibilidade de viver, ilusoriamente, experiências intensas em lugares magníficos através da utilização de um "software biológico", que consiste de uma substância que é colocada nos olhos das pessoas. A ideia desta tecnologia é criar novas (e falsas) memórias através da vivência virtual de tais situações. Como afirma uma das sócias da empresa Otherlife no filme, "criamos experiências que são difíceis de distinguir do que é real. Para o cérebro, fantasia e realidade são, quimicamente, a mesma coisa". Nestes dois casos - no primeiro de forma realista e no segundo de forma ficcional - vemos como uma memória pode ser criada através de influências e/ou interferências externas.

Em geral, tanto no caso das falsas memórias espontâneas quanto no caso das falsas memórias implantadas ou sugeridas, a imaginação tem um papel fundamental. Ao imaginarmos determinada cena que não ocorreu, seja por "iniciativa" própria  ou induzidos por outra pessoa, acabamos por empalidecer ainda mais a já pálida distinção entre imaginação e memória - afinal, a memória nada mais é do que a imaginação de eventos do passado, ao passo que a imaginação nada mais é do que a criação de "imagens mentais" a partir de elementos advindos da memória (para imaginarmos um elefante rosa, por exemplo, precisamos ter memórias tanto da forma de um elefante quanto da cor rosa... jamais conseguiremos imaginar algo totalmente novo, sem que tenhamos memórias de seus elementos). Nas crianças, em especial, a distinção entre memória e imaginação é ainda mais pálida do que nos adultos - e não é por outro motivo que elas são muito mais susceptíveis à criação de falsas memórias. E este fato também explica porque muitas das falsas memórias mais vívidas e intensas dos adultos se referem a eventos alegadamente ocorridos na infância. Aliás, grande parte dos experimentos mais clássicos de "implantação de memórias" foram conduzidos de forma a criar falsas memórias de eventos infantis. Pense, por exemplo, no clássico experimento da pesquisadora Elizabeth Loftus, que conseguiu implantar em uma significativa parcela dos participantes da pesquisa (25%) a memória de que eles se perderam no shopping quando eram crianças. Neste caso, a memória foi "implantada" por meio de falsos relatos de parentes, que teriam descrito em detalhes esta situação inventada, gerando no participante uma imaginação da cena e, posteriormente, uma falsa memória. Outros experimentos igualmente criativos conseguiram implantar falsas memórias variadas, como a de que o partipante, quando criança, viajou de balão, se afogou e foi regatado por um salva-vidas ou presenciou uma posseção demoníaca. Em comum, todos estes experimentos se utilizaram de metodologias que tinham como objetivo criar nos participantes a imaginação de eventos que não ocorreram. Afinal, como bem sabem os pesquisadores, da imaginação para as falsas memórias é só um pulo.

Enfim, com esta breve discussão sobre a "ilusão da memória", gostaria de apontar para a natureza construtiva de nossas lembranças, isto é, para o fato - já amplamente comprovado por meio de experimentos na área da psicologia cognitiva - de que nossas memórias não são exatas como gostaríamos que elas fossem. Frequentemente nos esquecemos e distorcemos coisas que aconteceram e nos lembramos de coisas que não aconteceram... e não há nada que possamos fazer para evitar. Na verdade, o máximo que podemos fazer é aceitar a imperfeição de nossa memória e compreender, tal qual o protagonista do filme Ela, que "o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos". Muito embora todos estejamos, como o Agente K., "à procura de algo real", diferenciar realidade de fantasia, no caso das nossas memórias, não é algo nada simples.

Sugestão de video: A ficção da memória - Palestra da psicóloga Elizabeth Loftus

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Precisamos falar sobre... pornografia

Ela está por toda parte, embora pareça invisível. Falamos pouquíssimo dela, ainda que ela faça parte da vida e do cotidiano de uma significativa parcela da população. Para algumas pessoas religiosas ela é uma forma de pecado, para algumas feministas uma forma de opressão contra a mulher, para alguns cientistas ela prejudica o cérebro e vicia como uma droga, para alguns psicólogos ela influencia negativamente nas relações e nos processos de desenvolvimento, ao passo que para muitos homens e mulheres ela é vista e praticada como uma forma saudável de se estimular a fantasia e exercer a sexualidade. Sim, você já sabe do que eu estou falando. Eu estou falando da pornografia. O que me traz a esse tema complexo, delicado e pouco explorado são os fantásticos documentários Pornocracy e Rocco, atualmente disponíveis no Netflix. Comecemos pelo primeiro, uma primorosa investigação sobre a "indústria pornô", conduzida pela ex-atriz pornô, diretora de filmes adultos e escritora feminista Ovidie. Neste documentário, a diretora nos traz e tenta responder a uma questão inquietante: se o advento da internet no fim dos anos 1990 teve o impacto de uma bomba atômica na anteriormente ultralucrativa e glamourosa indústria pornô - na medida em que ninguém atualmente precisa mais pagar para ter acesso a imagens e videos pornográficos - quem está de fato lucrando com a pornografia? E sua resposta passa pela emergência de um megaconglomerado pornô, administrado pela empresa MindGeek, que atualmente controla os principais sites pornográficos. Curiosamente, esta empresa é dirigida por um empresário da área de tecnologia de informação totalmente à parte do mundo pornô. Para ele, como para muitas outras pessoas, a pornografia é um negócio como outro qualquer, isto é, um meio de se ganhar dinheiro, muito dinheiro.

Pois bem, que a pornografia é um negócio lucrativo - e também um negócio que se beneficia, em grande medida, da exploração de mulheres - poucos questionarão. Mas a questão que eu gostaria de trazer neste post é se a pornografia pode ser reduzida a um mero negócio. Que algumas pessoas lucram com ela, isto é óbvio, mas existem pessoas que também lucram com o cinema e com a literatura e poucos diriam que o cinema ou a literatura se resumem a formas de se ganhar dinheiro. Em alguma medida estes artefatos são também manifestações artísticas - e o são justamente por atenderem a certas necessidades ou anseios humanos, demasiado humanos, como as necessidades por expressão, por identificação, por reflexão, por imaginação e por significado. Mas a quais necessidades ou anseios a pornografia atende ou tenta atender? Porque certamente ela responde a alguma necessidade humana profunda. De outra forma, porque, afinal de contas, as pessoas consumiriam tanta pornografia todos os dias em todas as partes do mundo, como demonstram inúmeros dados e pesquisas sobre o tema? Algum motivo deve haver - ou vários. Pois bem, esta complexa questão me traz ao fantástico e chocante documentário Rocco, que acompanha o famoso ator pornô Rocco Siffred durante o período que culminou com a gravação de sua última cena. Este filme traz tantos elementos para reflexão que eu precisaria de vários textos para analisá-lo com toda a profundidade que ele merece. Tratarei aqui apenas de alguns aspectos pertinentes à questão de quais necessidades humanas a pornografia atende ou pretende atender.

O documentário tem início com uma interessante fala de Rocco - que é dita enquanto a câmera expõe em close o seu pênis: "Eu penso em mim como alguém que foi pago para ser a pessoa que queria ser". Veja bem, ele não está dizendo que foi pago para ser aquilo que muitos homens gostariam de ser, o que também seria verdade. Ele está dizendo que foi pago para ser o que ele próprio gostaria de ser - e com isso ele sugere que os outros homens não são (e nem são pagos para ser) o que gostariam de ser. Os homens, em geral, se reprimem e são reprimidos, poderia ter dito Rocco, mas ele não. Ele sempre pôde dar vazão aos seus desejos. E de fato, ao longo de sua extensa carreira, Rocco pôde colocar em prática todas ou quase todas as suas fantasias sexuais, especialmente aquelas mais sórdidas e violentas, algo que a maioria dos homens apenas sonhou fazer. E veja bem que eu estou falando dos homens e não das pessoas em geral porque embora a pornografia seja consumida por homens e mulheres, sem dúvida alguma o maior público consumidor é masculino. Na verdade, a pornografia é, em grande medida, voltada para o homem e seu prazer. O objetivo imediato da maioria absoluta das produções pornôs é simples: fazer o homem (o ator e o espectador) gozar - e tanto isto é verdade que a maioria das cenas se encerra com a ejaculação masculina. O gozo feminino ou a encenação do gozo feminino não tem valor em si, só servindo na medida em que contribui para o gozo masculino. Muito embora as cenas pornôs em geral se foquem nos corpos das mulheres, sendo o homem apenas um pênis sem rosto, o foco primordial, o objetivo final e o elemento central é o homem e seu prazer. O pornô, em geral, não passa de uma celebração da potência masculina.

Os filmes de Rocco não fogem desta regra - pelo contrário, eles a levam a níveis extremos. Como o documentário expõe com grande crueza, eles são totalmente focados na dominação masculina e, consequentemente, na submissão feminina. As cenas de gravação, neste sentido, são incrivelmente chocantes (pelo menos para mim), na medida em que expõem a grande violência a que as atrizes são submetidas nos sets de filmagem. Certamente é possível contra-argumentar que elas o fazem por livre e espontânea vontade como parte de uma relação comercial (na qual elas vendem o próprio corpo em troca de dinheiro) e também que algumas realmente gostam da submissão durante o ato sexual - caso, por exemplo da atriz pornô feminista Kelly Stafford que afirma em certo momento do documentário: "Como eu posso estar me humilhando como mulher se é isto que eu quero? Se sou eu que estou aproveitando, sou eu que quero fazer isso, nunca é humilhante. Eu não quero ser humilhada. Quero mostrar que sou mulher. Sou uma mulher forte. Preciso de um homem forte para me foder". Esta atriz, não por acaso escolhida por Rocco como parceira de sua última cena, afirma ainda, em tom elogioso, que o sexo com Rocco ocorre "em um nível muito animalesco, é muito bruto". E isto talvez ajude a explicar o apelo que os filmes pornôs, especialmente os mais violentos, como aqueles produzidos por Rocco, tem sobre muitos homens. Talvez tais produções permitam que os homens façam, pelo menos no terreno da fantasia (na medida em que se colocam imaginariamente na pele de Rocco) aquilo que não podem ou não conseguem fazer na realidade. Afinal, transar de forma "animalesca" e "bruta" na vida real é bem mais complicado, pois depende necessariamente do consentimento da pessoa, homem ou mulher, com quem você pretende fazer sexo - de outra forma você estaria cometendo o crime de estupro.

Na análise que fiz da série Westworld, que retrata um "parque de diversão" para adultos onde tudo é permitido, escrevi que a atratividade deste parque se devia justamente ao fato dele permitir aos participantes, majoritariamente homens, um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade - em um ambiente controlado e seguro. Pois a mesma coisa pode ser dita da pornografia: ela permite aos seus usuários vivenciar situações sexuais e violentas, extremas ou não, sem, supostamente, quaisquer constrangimentos e efeitos colaterais. Como bem afirma a jornalista Pamela Paul no interessante livro Pornificados: como a pornografia está transformando a nossa vida, os nossos relacionamentos e as nossas famílias, "a pornografia dá sem exigir esforço". Em outro momento, falando especificamente sobre o consumo de pornografia por homens envolvidos em relacionamentos estáveis, a autora afirma: "a pornografia proporciona a exitação adicional de outras mulheres sem o perigo de realmente estar com elas" - e por perigo ela quer dizer, na verdade, "sem as implicações de se relacionar com uma mulher real". Afinal de contas, as mulheres reais não agem como as mulheres nos filmes pornôs: elas não estão disponíveis e com vontade para o sexo o tempo todo, não se atiram sem pudor para cima dos homens, não aceitam todas as práticas e posições sexuais e, muitas vezes, gostam de estar no controle e desejam que os homens se preocupem com o prazer delas. Enfim, na vida real, elas são pessoas completas e complexas e não simplesmente "objetos" do prazer masculino. Na pornografia, pelo contrário, o foco está majoritariamente no controle e no poder masculinos. Como afirma Pamela Paul "o enfoque é sobre uma mulher (ou, cada vez mais, várias mulheres) a serviço do prazer sexual do homem".  

Bom, talvez uma palavra chave em toda esta discussão seja "controle", afinal a pornografia serve em grande medida para dar aos homens não o controle, mas a ilusão de controle sobre as mulheres e o mundo. Se na vida real, os homens tem um poder limitado - ainda que, em geral, maior do que as mulheres (não nos esqueçamos jamais: vivemos em um mundo machista!) - no pornô os homens são soberanos, são reis que tudo podem e tudo fazem. Como afirma Pamela Paul, "a pornografia, literalmente, cria um mundo sonhado, livre de exclusões, constrangimentos, competitividade estressante e rejeição", o que, certamente, é algo extremamente tentador. E não é por outra razão que muitos homens estejam exagerando no consumo de pornografia: exatamente porque ela, como as drogas e também, em alguma medida, como as artes e as religiões, permite a eles sair temporariamente da dura realidade e adentrar em um mundo onde a vida é mais fácil e manejável. O grande problema é que isto não passa de uma ilusão. Como já discuti anteriormente, não creio ser possível viver só de realidade, mas viver só de fantasia também não me parece algo desejável, nem saudável. A pornografia, certamente tem uma função no mundo contemporâneo - ao que me parece fortemente ligada aos anseios por controle, dominação, fantasia e novidade - mas, ao mesmo tempo, penso que se não soubermos separar ficção de realidade, corremos o risco de nos perder, especialmente quanto trazemos ou tentamos trazer para a realidade elementos que deveriam permanecer no terreno da ficção. Tentar agir como um ator pornô e esperar que sua parceira ou as mulheres em geral se comportem como atrizes pornográficas (ou melhor, como as personagens que elas interpretam nos filmes - sim, elas são atrizes!) só poderá resultar em mais e mais frustração. Afinal de contas, entre o sexo real e a pornografia e entre a realidade e a fantasia há uma distância significativa, impossível de ser totalmente eliminada.

domingo, 15 de outubro de 2017

Clown terapêutico: que palhaçada é essa?

O adulto (en)quadrado e a criança
Os adultos são uns chatos! Tão cheios de problemas, crises e dilemas - e tão "vazios" de tempo, dinheiro e disposição - eles só reclamam da vida e do mundo e se lamentam sobre o que passou e sobre o que virá. O desenrolar da vida, as repetidas perdas e as infinitas exigências do mundo vão fazendo com que eles, ao poucos, se distanciem da criança espontânea, curiosa e criativa que, provavelmente, um dia foram. 

Muitos acabam por se enquadrar (e se "enquadradar", tal qual o protagonista do filme Up - Altas aventuras), tornando-se pessoas amargas, duras e pragmáticas que, diante da ausência de utopias e alegrias, apenas seguem adiante pela vida tentando cumprir as inúmeras obrigações e papéis sociais estabelecidos e constantemente reforçados. 

Mas será possível resgatar essa "alma de criança" e trazer de volta a espontaneidade, a criatividade e a alegria perdidas? Pois esse é justamente o objetivo de uma abordagem desenvolvida pelo psicólogo e palhaço Rodrigo Bastos, autor do livro "O clown terapêutico", lançado este ano pela editora Bartlebee através de financiamento coletivo (Crowdfunding). 

Fiquei sabendo do trabalho e do livro do Rodrigo - também conhecido como palhaço Mirabel - através da minha mãe, que participa de um dos grupos terapêuticos coordenados por ele em minha cidade natal, Juiz de Fora. Li o livro rapidamente e fiquei encantado com a proposta, que tenta conectar a abordagem da Gestalt-Terapia com a filosofia e a arte do Clown

A ideia, em essência, é buscar na icônica e milenar figura do palhaço e na arte da palhaçaria ensinamentos e técnicas que podem ser utilizados por pacientes e psicólogos durante o processo terapêutico. Como afirma Rodrigo no início de seu livro, "usaremos a sabedoria das tradições circenses na formação dos palhaços e das técnicas que lançamos mão na Psicologia Gestalt e também de outras linhas afins, para auxiliarmos a promover crescimento, perspectiva, e novas e criativas rotas de solução para problemas".

Rodrigo Bastos, isto é, Palhaço Mirabel
Mas o que, afinal de contas, os palhaços tem a nos ensinar? Pois bem, para além de uma figura que gera medo em muitas pessoas - e se você assistiu ao recente filme "It: a coisa", provavelmente você se assustou com o horripilante "palhaço" Pennywise -, o palhaço é também uma figura que escancara para o mundo sua "alma de criança". 

Um palhaço não é simplesmente um ator que pinta o nariz de vermelho, mas sim uma pessoa que expõe para o mundo, com uma lente de aumento, suas forças e suas fraquezas. Enquanto a maioria de nós se esforça cotidianamente para apresentar aos outros somente o nosso "lado bom e nobre", o palhaço aceita que não é perfeito e revela para o mundo sua fragilidade e seu lado ridículo. 

O próprio nariz vermelho seria representativo disso. Como aponta Rodrigo, "segundo reza uma das lendas, ele é vermelho devido aos tombos que a vida deu ao palhaço, aonde  este se machucava ao embebedar-se, pelas noites de frio, pela perda da mulher amada, pela falta de dinheiro, era vermelho por ser um tonto desequilibrado e por isso dava constantemente com a cara no chão. O palhaço sempre foi um grande perdedor e acabou por descobrir que a 'humanidade' adorava vê-lo cair de cara no chão, de bunda no chão, tomar tapas e tortadas na cara".

Enfim, o palhaço representa e traz à tona o que há de mais frágil e ridículo em nós - e se orgulha disso. Seu objetivo de vida, como bem aponta Rodrigo, é ser um idiota e fazer idiotices, algo que os adultos, em geral, fogem como o diabo foge da cruz. Afinal, quem quer ser (ou ser visto como) um idiota? Os palhaços querem. E são. E é por isso rimos deles: porque, no fundo, rimos de nós mesmos e de todas as nossas infinitas idiotices. 

A proposta do Clown Terapêutico, desenvolvida pelo Rodrigo, busca justamente o resgate e a aceitação deste lado idiota e da capacidade de rirmos de nós mesmos. A ideia é recorrer a estratégias lúdicas utilizadas na formação de palhaços para contribuir para o desenvolvimento das pessoas. 

Como aponta Rodrigo, "a terapia baseada em conceitos lúdicos e clownescos busca dar suporte para transformar o indivíduo, dentro de suas possibilidades, numa figura mais divertida, alegre, leve, otimista, criativa, potente e que se importe menos com 'o que os outros vão pensar de mim', até porque 'o que os outros vão pensar de mim' é problema dos outros e não meu".

O objetivo de sua proposta, em suma, é reconectar o adulto chato e quadrado que nos tornamos com a criança espontânea e criativa que um dia fomos. E sendo o palhaço um "adulto com alma de criança", nada mais adequado do que buscar na milenar arte do clown elementos para potencializar o processo psicoterapêutico. 

Mas Rodrigo alerta que não se trata de transformar o adulto em uma criança, o que além de impossível seria indesejável, mas sim de buscar no "espírito da criança" a força para cair e levantar e rir de si mesmo e não dos outros. Como afirma o psicólogo-palhaço, "para ser criança é preciso brincar, para ser palhaço  é preciso brincar, para se tornar um adulto com a capacidade criativa de resolução dos seus problemas é necessário achar sua criança; o palhaço, então, serve de 'meio pelo qual' acessá-la".

Caso você tenha interesse em adquirir o livro "O clown terapêutico", escrito pelo psicólogo e palhaço Rodrigo Bastos, envie um email para oclownterapeutico@gmail.com