sábado, 22 de junho de 2013

GUEST POST: O Ato Médico e a Psicologia


Reproduzo abaixo, com a devida autorização do autor, uma didática e bem fundamentada exposição sobre o impacto de uma possível aprovação do projeto do Ato Médico na categoria dos psicólogos. Para quem não sabe, na última semana, o projeto foi aprovado no plenário do Senado Federal, necessitando agora, para ser instituído, apenas da sanção da presidenta Dilma. Escrito pelo psicólogo Daniel Grandinetti (que já contribuiu com este blog anteriormente), o texto expõe e discute em detalhes os principais pontos do projeto que afetariam diretamente o campo da Psicologia no Brasil. Para quem quiser ler outros textos do Daniel, que é psicólogo e mestre em filosofia, recomendo fortemente sua página no Facebook, a Psicologia no Cotidiano. Boa leitura e boas reflexões!

Vou tentar expor de forma didática como o “ato médico” interfere no exercício da profissão de psicólogo e nas competências legais do Conselho Federal de Psicologia.

A principal polêmica em torno do ‘ato médico’ gira em torno do Art. 4º - I que diz o seguinte:

“Art. 4º - São atividades privativas do médico:

I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica".


O § 1º define o diagnóstico nosológico:


“§ 1º Diagnóstico nosológico privativo do médico, para os efeitos desta Lei, restringe-se à determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo 2 (dois) dos seguintes critérios:

I – agente etiológico reconhecido;

II – grupo identificável de sinais ou sintomas;

III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.”

Enfim, § 3º estabelece que “doença” é tudo que aparece listado e classificado no CID-10:

“§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na décima revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde".

Em que isso interfere no exercício da profissão de psicólogo? O diagnóstico psicopatológico, incluindo a depressão e os transtornos de ansiedade, sempre esteve incluído na prática do diagnóstico psicológico. Com a aprovação do “ato médico”, tanto o diagnóstico quanto a prescrição terapêutica das enfermidades psicopatológicas passam a ser privativas de médico. Isso retira dos psicólogos, por exemplo, a autonomia para diagnosticar a depressão e tratá-la com psicoterapia. Somente o médico está agora legalmente habilitado para diagnosticar depressão e indicar o tratamento a ela.



O que vem gerando incerteza nessa interpretação é o § 2º, que diz o seguinte:


“§ 2º Não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.”



Nesse parágrafo, o “ato médico” expressa o reconhecimento do diagnóstico psicológico e a competência do psicólogo para realizá-lo. Esse parágrafo vem sendo usado, inclusive, por alguns psicólogos na defesa do “ato médico”, argumentando que ele preserva a profissão do psicólogo e não a invade em nada. Entretanto, a regulamentação da Psicologia não define, em momento algum, o que vem a ser o diagnóstico psicológico. A inclusão do diagnóstico psicopatológico no diagnóstico psicológico sempre foi prática, jamais sendo formalizada. O CFP não tomou o cuidado de definir em lei o diagnóstico psicológico, como muito bem fizeram os proponentes do “ato médico” em relação ao diagnóstico nosológico. Assim, uma vez que o diagnóstico nosológico é agora privativo de médicos, ele passa a ser automaticamente excluído do diagnóstico psicológico, não importando se a prática do psicólogo, desde sua regulamentação, sempre tenha feito do diagnóstico psicopatológico um item do diagnóstico psicológico.

Qual a sugestão do Conselho Federal de Psicologia à redação do “ato médico”? O CFP sugeriu que a redação do Art. 4º fosse modificada de: 

“São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;”

Para:

“São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico médico e respectiva prescrição terapêutica;”

O que mudaria com essa reformulação?

A avaliação de personalidade, por exemplo, não é privativa de psicólogos. O que é privativo de psicólogos é a avaliação de personalidade executada via testes psicológicos. A avaliação de personalidade executada por testes psicológicos constitui ‘diagnóstico psicológico’ e é privativa de psicólogos. Qualquer avaliação de personalidade executada por instrumentos ou procedimentos que não exijam a formação plena em Psicologia não é privativa de psicólogos. O CFP entende que o que deve ser privativo de médicos não é o diagnóstico de doenças, mas o diagnóstico de doenças executado por instrumentos e procedimentos médicos que exijam a plena formação no curso de Medicina. Qualquer diagnóstico executado por instrumentos e procedimentos não-médicos não deve ser privativo de médico.

Em suma, o que deve ser privativo de médicos é o uso do saber teórico e prático constituído pela Medicina e que faz necessária a formação completa em Medicina. Mas, ao invés de tornar o saber e a prática médicas privativos de médicos, o “ato médico” torna privativo de médicos as próprias doenças enquanto objeto de estudo. Segundo o “ato médico”, ninguém mais pode se pronunciar sobre ou exercer qualquer prática ligada a doenças além dos médicos, mesmo que os procedimentos utilizados não sejam médicos. Nesse sentido, um místico que oferecesse “curas espirituais” estaria sujeito, a partir de agora, a ser processado por exercício ilegal de Medicina. A primeira questão que eu coloco é a seguinte: Como uma pessoa que não se apresenta ao paciente como médico e que não faz uso de qualquer procedimento médico pode ser acusado de praticar a Medicina ilegalmente?

Voltando à relação com a Psicologia: Segundo o CFP, instrumentos e procedimentos psicológicos habilitam o profissional psicólogo no diagnóstico psicopatológico. Assim, na medida em que os psicólogos se utilizem apenas deles, eles estariam praticando o diagnóstico psicopatológico que consta como diagnóstico psicológico, não como diagnóstico médico. Mas, o CFM discorda que instrumentos e procedimentos psicológicos sejam procedentes para o diagnóstico psicopatológico. E ele tem todo o direito de discordar! Vivemos numa democracia, e todos têm o direito de criticar o que bem entender. Entretanto, a única entidade legalmente estabelecida para decidir sobre a procedência de procedimentos psicológicos é o CFP. Se o CFP afirma que procedimentos psicológicos são procedentes no diagnóstico psicopatológico, o CFM tem que acatar. Pode criticar e debater, mas precisa acatar.


Semelhantemente, a classe médica tem todo o direito de se posicionar contrariamente às curas espirituais ou alternativas. Mas, não tem o direito de transformá-las em exercício ilegal de Medicina, uma vez que não há nada nelas que configure algum procedimento médico lecionado nas faculdades de Medicina. É preciso que as práticas alternativas sejam debatidas e combatidas por meios democráticos, não pela imposição de uma lei incoerente.

Com o “ato médico”, a classe médica se outorgou o direito de avaliar procedimentos psicológicos e decretar sua improcedência. Ela pode argumentar que em momento algum o diagnóstico psicopatológico esteve legalmente incluído na definição de diagnóstico psicológico, e ela está certa nesse ponto. E justamente nesse ponto se faz perceber toda a MÁ-FÉ deste projeto de lei como um todo. Uma vez que o CFP não teve o cuidado de definir o diagnóstico psicológico na regulamentação da Psicologia, o CFM tomou para si o direito de lhe estabelecer os limites e as definições que bem entender.


Nesse sentido, pelo uso da má-fé jurídica, o CFM invadiu as competências legais do CFP.

Além de conferir aos médicos a exclusividade no diagnóstico psicopatológico e de sua respectiva prescrição terapêutica, o “ato médico” também pode coibir a pesquisa da Psicologia nessa área. O “ato médico” confere à classe médica a “propriedade privada” das doenças enquanto objeto de estudo. Consequentemente, psicólogos que desejarem desenvolver experimentos comportamentais sobre a depressão, por exemplo, precisarão ser supervisionados por médicos.

O projeto de lei do “ato médico” foi distorcido em seus propósitos desde o início. A razão da regulamentação de uma profissão é estabelecer os limites da atuação daquele profissional. A intenção do “ato médico” nunca foi a de estabelecer limites à atuação dos médicos, já que os médicos podem fazer tudo! Desde o início, a intenção do “ato médico” foi estabelecer limites à atuação dos outros, à atuação dos demais profissionais de saúde, e aí se funda toda a sua má-fé.


segunda-feira, 10 de junho de 2013

Um clássico na rede: Em nome da razão (1979)

"Em nome da razão", o filme símbolo da reforma psiquiátrica brasileira, finalmente está disponível na internet. Há alguns anos procurei este filme por toda parte para exibir em uma mostra de videos que promovi na instituição em que trabalho (veja o cartaz aqui do lado), mas não o encontrei de jeito nenhum. Cheguei até mesmo a enviar um email para o diretor, mas nem ele possuía uma cópia digitalizada. Em 2013, depois de 34 anos de seu lançamento (que ocorreu em 1979), finalmente uma alma bondosa disponibilizou este clássico perdido da nossa história no Youtube. Viva! Comandado pelo grande diretor mineiro Helvécio Ratton (o mesmo de Uma onda no ar, Menino Maluquinho e Batismo de sangue), o filme trouxe à tona, pela primeira vez em imagens cinematográficas, os horrores cometidos, em nome da razão e da ciência, no interior do Hospital Colônia de Barbacena - que agora voltam a ser expostos com o lançamento do livro "Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil", escrito pela jornalista Daniela Arbex, também mineira. Importante lembrar que no mesmo ano em que o filme foi lançado, 1979, o jornalista Hiram Firmino começava a publicar, no jornal Estado de Minas, uma série de reportagens que culminou no livro "Nos porões da loucura", outro marco da reforma psiquiátrica. 

Helvécio, que é formado em Psicologia, na época em que dirigiu o filme estava do 4º período do curso e participava da Associação Mineira de Saúde Mental, através da qual entrou em contato com a realidade do Hospital Colônia. Com um histórico de militância ativa contra a ditadura militar, Helvécio se exilou no Chile por um tempo, regressando ao Brasil pouco antes de filmar "Em nome da razão". Produzido de forma independente, o filme foi gravado em menos de uma semana e contou com o aval da Secretaria Estadual de Saúde Minas Gerais - que posteriormente tentou intervir no processo de edição, sendo impedida. Com relação ao seu conteúdo, este artigo aponta que "o filme se desenvolve a partir das enfermarias e pátios internos, vasculha os corredores, as celas fortes, contrasta a miséria humana e a sofisticação do projeto arquitetônico do manicômio inaugurado, com pompas e honras, em 1904. O som que se capturou foi estritamente o produzido localmente: gritos, lamúrias e relatos impressionantes acerca do cotidiano e das histórias de vida dos que ali resistiam. O foco captura e projeta a fala e expressão dos internos, eventualmente intercaladas pelo depoimento do administrador do hospital acerca das dificuldades de gestão de corpos e subjetividades. Não se escuta a fala dos psiquiatras. Intencionalmente, o diretor ultrapassa a via da responsabilização da equipe técnica e profissional, revelando uma leitura mais desafiante: trata-se de revelar a instituição e seus amplos compromissos com a sociedade que rechaça a loucura e a condena à clausura e à mortificação". Exibido pela primeira vez no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1979, "Em nome da razão" chocou a platéia e contribuiu de forma significativa para o fortalecimento do nascente Movimento Antimanicomial brasileiro. Posteriormente, o filme foi exibido em festivais, ganhando diversos prêmios nacionais e internacionais. E desde então circulou, como uma joia rara, pelos grupos de saúde mental do país. Até, finalmente, cair no Youtube. 

Com vocês, "Em nome da razão"...

terça-feira, 4 de junho de 2013

Você não é o seu cérebro!

Comecemos esta reflexão com duas singelas histórias, uma real outra fictícia. Primeiro a real: circulou outro dia pela internet a bizarra notícia de que um empresário russo deseja transferir seu cérebro para um robô, tornando-se, desta forma, imortal. Para tanto, Dmitry Itskov idealizou e patrocina a Iniciativa 2045, projeto que tem como objetivo o desenvolvimento de tecnologias de interface cérebro-máquina que possibilitem "a transferência da personalidade de um indivíduo para um portador mais avançado não-biológico, e a extensão da vida, incluindo a questão da imortalidade”. Como resume o portal G1, "a ideia do empresário é transferir seu cérebro para um androide e, através dele, viver para sempre". Narcisicamente, Dmitry criou um robô à sua imagem e semelhança e pretende, até 2020, "fazer com que uma pessoa conecte seu cérebro a uma máquina e possa controlar o robô remotamente", tal como nos filmes Avatar e Substitutos. Posteriormente a ideia parece ser não somente o controle à distância mas a completa fusão com a máquina, através do "transplante" de seu cérebro em um robô, que levaria consigo o "eu" de Dmitry por toda a eternidade.

Agora passemos à história ficcional: no filme "O homem com dois cérebros" (The man with two brains, EUA, 1983, dir: Carl Renner) o neurocirurgião Michael Hfuhruhurr (Steve Martin) se apaixona pelo cérebro sem corpo de uma mulher, com "quem" se comunica telepaticamente. Esse cérebro em uma cuba - mantido vivo graças a uma tecnologia desenvolvida pelo cientista Dr. Alfred Necessiter - pertence à mulher dos seus sonhos. O problema é que ela (ou melhor, seu cérebro) não tem um corpo. Hfuhuruhurr, que é incapaz de matar uma pessoa, pensa inicialmente em transplantá-lo em um gorila (mas rapidamente desiste da ideia ao se imaginar fazendo sexo com tal animal). Depois pensa em matar uma prostituta, mas também desiste porque sua amada teria uma voz irritante. Finalmente, Hfuhuruhurr  acaba realizando o transplante no belo corpo de sua esposa Dolores Benedict (Kathleen Turner), que acabara de ser assassinada. A piada do filme é que, sem que o neurocirurgião saiba, o "eu" cujo cérebro ele se apaixonou tem uma espécie de transtorno de compulsão alimentar. Com isso, após o processo de transplante do cérebro de sua amada no corpo de Dolores, esta torna-se, em pouco tempo, extremamente obesa, tal como seu "corpo" anterior. 


O que estas duas histórias tem em comum é a ideia de que nós somos os nossos cérebros, ou seja, tudo o que somos, pensamos e sentimos não somente ESTÁ no nosso cérebro mas como, de certa forma, É o nosso cérebro. Como afirmou o geneticista Francis Crick, no livro A hipótese espantosa, "você, suas alegrias e tristezas, suas lembranças e ambições, seu senso de identidade pessoal e livre-arbítrio, não são mais do que o comportamento de um imenso conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas". Assim, na hipótese de um transplante de cérebro, na verdade o que estaria sendo realizado seria um transplante de corpo, haja vista que o "eu", com todas as suas peculiaridades e singularidades, estaria contido no cérebro - ou melhor, seria o cérebro. Como disse o neurocientista alemão Manfred Spitzer (nesta entrevista), "ninguém quer um outro cérebro, mesmo se ele estivesse cheio de conhecimento. O seu cérebro é sua identidade. Você é o seu cérebro. Se alguém te desse outro cérebro, você não seria mais você". Isto não é tão óbvio? O que pretendo argumentar abaixo é que não: isto não é óbvio e não, não somos o nosso cérebro!

Obviamente - e eu seria louco se negasse isso - não há vida humana possível sem um cérebro. Basta constatar que crianças anencéfalas não vivem mais do que poucos dias. Além disso, lesões significativas no sistema nervoso central comprometem e até mesmo impedem, em alguns casos, a vida. O clássico caso do operário Phineas Cage deixa claro a importância do cérebro na constituição do que somos, da nossa personalidade: após um acidente que lesionou seu lobo frontal, Phineas teve uma significativa e abrupta mudança de personalidade, deixando de ser o sujeito pacato que vinha sendo até então. Isto aponta para o fato de que o cérebro é necessário para estarmos vivos e sermos o que somos. Não há como negar isso. Nenhuma pessoa minimamente sensata se oporia à ideia de que o cérebro é absolutamente imprescindível para sermos o que somos. A existência de doenças graves como o Alzheimer, que atrofiam os tecidos cerebrais e alteram (e mesmo impedem) nossa consciência do mundo e de nós mesmos, e o fato de certos medicamentos influenciarem nossas emoções e nossos comportamentos só comprova esta ideia.

Ao mesmo tempo, apesar de absolutamente necessário, ter um cérebro não é suficiente para sermos o que somos. Antes de tudo, precisamos de um corpo. Um cérebro em uma cuba, ao contrário daquele que o neurocirurgião do filme se apaixona, não é nada mais nada menos do que um pedaço de carne. Não há vida possível sem um corpo. Mas e aqueles sujeitos com corpo paralisado ou extremamente comprometido (como o protagonista do filme O escafandro e a borboleta ou o físico Steven Hawking) que, mesmo com o corpo inativo mantém a mente e a criatividade ativas? Isto não comprovaria que o corpo é desnecessário? Absolutamente não! Nos dois exemplos citados, os sujeitos, apesar de todo comprometimento, mantinham (e no caso de Hawking, mantém) uma relação corporal com o mundo e com as outras pessoas. No caso do personagem do filme, seu contato com o mundo se dava através da audição, do olhar e do piscar. Já Hawking se utiliza de uma moderna tecnologia que transforma as vibrações de sua garganta em fala. Além disso ele se relaciona com o mundo através do olhar, da audição e do tato. No caso de pessoas com o corpo completamente paralisado, a relação com o mundo é impedida. Mesmo que se desenvolvam formas de se comunicar com estas pessoas (e isto já está sendo testado), alguém dúvida da importância do nosso corpo na nossa relação com o mundo, com as pessoas e com nós mesmos? Obviamente, além de um corpo é necessário um mundo para este corpo atuar e se relacionar. Neste sentido, como aponta o filósofo Alva Noe, no livro Out of our heads, "você não é o seu cérebro. Você tem um cérebro, sim. Mas você é um ser vivo que está ligado a um ambiente, você tem um corpo e interage de forma dinâmica com o mundo. Nós não podemos explicar a consciência somente em termos cerebrais porque a consciência não acontece no cérebro sozinho". Ou seja, nosso cérebro está num corpo que, por sua vez, está num mundo e com ele interage. Não somos um cérebro em uma cuba.


Para Noe, a atividade neural é necessária, mas não suficiente para explicar nossa consciência de nós mesmos e do mundo. Segundo ele, "não há nada dentro de nós que pensa e sente e é consciente. A consciência não é algo que acontece dentro de nós. É algo que nós fazemos". Para Noe, o cérebro é necessário para a consciência assim como um motor é necessário para um carro. Mas o motor não "dá origem" à condução; dirigir não é algo que acontece dentro do motor. Da mesma forma, a consciência não é algo que ocorre dentro do cérebro. Outra  metáfora utilizada por Noe é o dinheiro. Será possível dizer que o valor do dinheiro está na nota? Obviamente não. Se pegássemos um microscópio e observássemos a nota, não encontraríamos nela qualquer valor, porque este não se encontra em suas propriedades químicas. O que faz uma nota de 10 reais valer efetivamente 10 reais são práticas, convenções e instituições e não qualquer materialidade da nota. Da mesma forma, para Noe, a consciência não está no cérebro, mas sim - como o título de seu livro aponta - "fora de nossas cabeças". Mas isto não significa que Noe defenda a noção antiga de um espírito ou alma imaterial. Não! Noe defende que a consciência é relacional, não material. Isto pode parecer estranho num mundo cada vez mais materialista e cerebrocêntrico, mas faz todo o sentido. Se pararmos para pensar, o amor, por exemplo, não tem como estar no cérebro. Certamente existem regiões do cérebro que se ativam quando pensamos ou encontramos a pessoa amada (ou quando fazemos, pensamos ou sentimos qualquer coisa) - mas isto não significa que o amor seja esta atividade cerebral. Seguindo o pensamento de Noe, o amor não está no nosso cérebro, mas na relação das pessoas umas com as outras e com o mundo. O amor, assim como qualquer outro sentimento, valor ou ideia, não está em qualquer lugar específico, mas na dinâmica das relações. Neste sentido, a verdadeira hipótese espantosa é que nós NÃO somos o nosso cérebro. Nós somos muito, mas muito mais: somos o todo e não uma parte, somos nossas relações com os outros e com o mundo - como disse o sociólogo Norbert Elias, "somos partes uns dos outros". Não podemos ser reduzidos ou nos reduzir a um pedaço de carne, por mais nobre que seja esta carne.





OBS: Sobre a ideia de que a depressão é uma doença cerebral, Alva Noe escreveu o seguinte em seu livro: "Em um sentido, isto é obviamente correto. Existem assinaturas neurais da depressão. Além disso, a ação direta sobre o cérebro - na forma de uma terapia medicamentosa - pode influenciar a depressão. Mas em outro sentido, isto é obviamente incorreto. É simplesmente impossível entender porque as pessoas ficam deprimidas - ou porque o indivíduo está deprimido aqui e agora - somente em termos neurais. A depressão ocorre em pessoas reais com histórias de vida reais face a eventos da vida real. O dogma de que a depressão é uma doença do cérebro serve aos interesses da indústria farmacêutica, sem dúvida; também serve para desistigmatizar a luta contra a depressão, o que é uma coisa boa. Mas é falso" (tradução minha)