quarta-feira, 16 de março de 2016

"Pilula revolucionária ativa 100% do seu cérebro": uma viagem pelo mundo da neuropicaretagem

Estava eu vagando pela internet, lendo uma notícia aleatória sobre a nova novela das nove (#quemnunca?), quando me deparei com uma imagem publicitária (veja ao lado) na qual o protagonista da série House exibe uma pílula colorida em sua lingua. O texto do anúncio apontava: "Sem limites: Método que turbina o Cérebro agora liberado no Brasil" - e logo abaixo deste texto vinha o site do suposto método: pilulainteligente.com. A referência ao filme Sem limites (no original Limitless, EUA, 2011) é evidente. Por sinal, você já viu este filme? Se não, assista-o agora - assim como ao filme Lucy (EUA, 2014) que trata, de certa forma, da mesma questão: a estimulação do(a) cérebro/mente por meio do uso de medicações/drogas. No filme Sem limites, Eddie Morra - interpretado pelo ator Bradley Cooper - é um escritor que sofre de um bloqueio criativo: ele simplesmente não consegue mais escrever. No entanto, sua situação muda radicalmente quando ele é apresentado, por intermédio de seu ex-cunhado (um "ex" traficante de drogas, agora funcionário de uma empresa farmacêutica), a um remédio revolucionário que permitiria o uso de 100% de sua capacidade cerebral. A partir de então, Eddie consegue não somente se concentrar e escrever, mas também passa a ter uma memória e uma inteligência muito superiores à maioria dos mortais. 

Já no filme Lucy, dirigido, escrito e produzido por Luc Besson, a atriz Scarlett Johansson interpreta a personagem-título, Lucy, uma mulher norte-americana que vive em Taiwan e que é obrigada, por uma série de motivos, a servir de "mula" para um poderoso mafioso local. O problema é que, em determinado momento, as cápsulas cheias de drogas que ela esconde em seu abdomen (na verdade trata-se de uma fictícia droga sintética chamada CPH4) se rompe, mas ela, ao contrário do que normalmente ocorre, não tem uma overdose nem morre. Pelo contrário, como aponta a página do Wikipedia do filme, ela desenvolve a partir de então capacidades físicas e mentais cada vez mais elevadas, como a telepatia, a telecinese, a eletrocinese, a absorção instantânea de conhecimento, a capacidade de viagem no tempo e inclusive a opção de sentir dor ou outros desconfortos físicos ou emocionais, além de outras habilidades. Lucy se torna, assim, supermegahiperpoderosa. Como aponta o cartaz do filme "uma pessoa normal usa 10% de sua capacidade cerebral. Ela vai atingir 100%". Não entrarei nas peculiaridades de cada filme, só gostaria de apontar que ambos disseminam as ideias, consideradas "neuromitos" pelos neurocientistas contemporâneos, 1) de que usamos cotidianamente somente uma pequena parte do nosso cérebro ou de nossas potencialidades  cerebrais (em geral fala-se em 10%) e 2) de que através de um correto treinamento ou do uso de determinadas medicações/drogas é possível ampliar e mesmo atingir o máximo das nossas capacidades cerebrais/mentais.

E é justamente este discurso e estas ideias que estão presentes no anúncio que comecei analisando neste post. Pois bem, assim que vi a propaganda do tal "método para turbinar o cérebro" resolvi clicar na imagem e ver para onde isto me levaria. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que o anúncio me encaminhava não ao site de uma revolucionária "pílula da inteligência", mas ao portal de uma entidade educacional chamada Methodus - que promove uma série de cursos, como de Leitura Dinâmica, Oratória e Administração do tempo. E é aí que a ficha caiu. A propaganda desenvolvida por eles não tinha como objetivo vender uma pílula, mas atrair internautas desavisados, ingênuos e esperançosos para o site do sistema Methodus - que seria, ele próprio, o tal "método para turbinar o cérebro" (e não é curioso que o site oficial da entidade seja, de fato, pilulainteligente.com?). A estratégia deve ser bastante eficaz para capturar internautas pois este discurso da "pílula de turbinar o cérebro" é extremente sedutor. Afinal, que nunca se sentiu aquém de suas capacidades? Quem nunca teve dificuldade ao estudar ou escrever? Quem nunca se sentiu desanimado, desconcentrado ou com a memória muito aquém da desejada? Quem nunca se sentiu desmotivado, fatigado ou estressado? Aposto que todo mundo, em algum momento, se sentiu assim. Mas imagine que inventassem uma pílula que fizesse você se concentrar totalmente, que lhe permitisse memorizar as informações com maior facilidade, menos fadiga e estresse e que lhe possibilitasse, enfim, ler e escrever mais e melhor. Você pagaria por esta pílula? Aposto que ficaria no mínimo tentado a comprá-la, pois é bastante atraente, em geral, a ideia de que uma simples pílula, disponível ao alcance do seu bolso, poderia resolver todos os seus problemas e, quem sabe, te levar além, te fazendo ficar "mais do que bem", te transformando num superhomem ou numa supermulher - como ocorreu, nos filmes citados, com Eddie e Lucy.

E se tal remédio poderia te levar além, eu decidi ir também além neste universo das pílulas inteligentes. Há algum tempo eu já tinha visto outra propaganda - desta vez no Facebook - de uma pílula que seria capaz de "ativar 100% do seu cérebro". Autodenominada "viagra para o cérebro", tal pílula seria capaz de melhorar a concentração, a memória e até a inteligência de quem a tomasse, além de diminuir o stress e a fadiga - não seria o máximo? Decidi pesquisar no Google e descobri o nome deste "revolucionário" remédio: Neurofos (veja bem, não é neurofofos, o que seria bem fofo). Na verdade existem muitos outros remédios similares - ou idênticos, sei lá - mas com outros nomes: Focus-X, Genius-X, etc. Todos eles prometem a mesma coisa: um desempenho cerebral muito melhor. Mas nos foquemos inicialmente no Neurofos. Em um site dedicado a ele, em português, encontramos que a medicação conteria os seguintes ingredientes: Soja e peixe (?); Estereato de magnésio vegetal; Silicato de cálcio; Dióxido de silicone; Gelatina; Extrato de eleuthero; Ácido alfa-lipóico; Vitamina B12; Vitamina B6; Vitamina E. Não sou químico, mas pelo que vejo tal pílula "revolucionária" não passa de um complemento vitamínico, como muitos que já existem por aí. Mas porque este especialmente faria "bem ao cérebro"? A justificativa é de que o Neurofos conteria ingredientes que preencheriam algumas necessidades fundamentais do cérebro. Como é dito em outro momento no mesmo site, sua fórmula "altamente orgânica e 100% natural [Pausa para respiração... como assim altamente orgânica? Ou um produto é orgânico ou não é! E dizer que é 100% natural não seria redundante?] garante o progresso com relação à eficiência geral dos pensamentos". 

Mas uma medicação tão eficaz como essa certamente traria algum efeito colateral, não é mesmo (como todas as demais medicações existentes no mundo)? Pois a resposta neste caso é não. Segundo o site, o consumo de Neurofos não gera qualquer efeito colateral. Como aponta o site, "pesquisas indicam [mais uma pausa para respiração... que pesquisas, cara pálida? É muito fácil dizer que pesquisas ou estudos apontam qualquer coisa. Difícil é apontar quais pesquisas específicas que embasam sua afirmação] que as pessoas que testaram outros produtos sofreram de angústia, TDAH, problemas bipolares e muitas coisas do tipo. Mas, quando começaram a utilizar o Neurofos, não houve absolutamente nenhum efeito colateral". Curiosamente, em outro site - do mesmo remédio, agora vendido com outro nome - está escrito em letras miúdas e sem qualquer destaque que "assim como qualquer tipo suplemento alimentar, remédios e mesmo outros produtos (mesmo que naturais) podem haver riscos associados à sua utilização". Uai, mas tal produto não era isento de riscos e efeitos colaterais? É claro que não! Mas ignoremos isto por um instante e tentemos entender como um remédio tão fantástico como esse teria sido produzido. Segundo o site, ele foi criado em um "laboratório de ponta" sob a supervisão de uma "equipe de especialistas de vasta experiência e conhecimento". Esta busca por legitimação científica fica clara também em uma imagem utilizada pelos golpis...cientistas em outra peça publicitária na qual duas imagens de ressonância do cérebro são comparadas (veja acima), sendo uma anterior e outra posterior o uso do Neurofos - um detalhe importante é que a fonte da imagem é atribuída à uma certa "Unidade de Neurociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro", que efetivamente não existe - além disso, como descobriu o site E-farsas, as imagens se referem a um estudo sobre os efeitos no cérebro do uso de álcool). Por fim, é dito no site que o Neurofos  é vendido somente no site oficial e não em farmácias comuns porque "o laboratório tem dificuldades em atender a demanda atual". Ah tá! Não é porque o produto não foi aprovado pela Anvisa, não né? Em outro site, os vendedores deixam claro, nas mesmas letras miúdas apontadas acima, que "as declarações contidas neste documento são livres de avaliação pela Anvisa". Tudo isto está cheirando a golpe para você? E realmente é.

Na verdade parece tão óbvio que se trata de um golpe - da mesma forma que aquelas propagandas do tipo "Aumente o seu pênis agora" ou "Acabe com sua calvície em 30 dias" - que eu fico realmente impressionado de existirem pessoas que realmente acreditam em tais propagandas - e mais impressionado ainda que existam aquelas que efetivamente comprem tais produtos. No site Reclame aqui existem milhares de reclamações de compradores insatisfeitos com o Neurofos - veja algumas delas aqui. Muitas outras reclamações podem ser encontradas sobre o Focus-X e o Genius-X, que são na verdade o mesmo produto agora vendido com outros nomes. Neste link, por exemplo, é possível conhecer a história de um gari que, após começar a tomar a pílula Genius-X, acabou por tornar-se Técnico da Receita Federal. Linda história de superação, pena que não seja verdadeira. Como descobriu o site E-Farsas, na realidade o sujeito permanece trabalhando como gari e nunca tomou nenhuma medicação como essa. Ou seja, tudo não passa de uma grande mentira para enganar pessoas ingênuas e deslumbradas com tudo o que parece, mesmo que vagamente, científico. Trata-se de mais uma neurobobagem, como tantas que vemos por aí, que usam e abusam do discurso cientifico - especialmente do discurso neurocientífico - pois sabem o quanto ele é atrativo e sedutor. 

Dizer que algo foi comprovado pela neurociência ou que tal ou qual área do cérebro está envolvida no que quer que seja, torna qualquer notícia ou texto muito mais crível, como demonstrou a pesquisadora Deena Weisberg e sua equipe em um experimento clássico publicado em 2008 - denominado The seductive allure of neuroscience explanations [O fascínio sedutor das explicações neurocientíficas]. Neste experimento, a pesquisadora dividiu um grupo de pessoas em três grupos e deu para cada um deles a tarefa de ler algumas notícias e avaliar a qualidade delas. E o que ela encontrou, em síntese, foi que as notícias nas quais estavam incorporadas explicações neurocientíficas eram sistematicamente mais bem avaliadas, mesmo quando nada traziam de novo ou nada diziam efetivamente (por exemplo, dizer que uma determinada área do cérebro fica "ativa" quando o sujeito sente dor, nada diz sobre as causas ou motivos da dor, apenas aponta para os correlatos neurais, ou seja, para as "assinaturas neurais" da dor). Em outro experimento, o pesquisador David MacCabe e sua equipe demonstram o poder não das explicações, mas das imagens neurocientíficas criadas (sim, criadas, não são fotografias do cérebro) por equipamentos de ressonância magnética ou PET Scan - seu artigo se chama Seeing is believing: the effect of brain images on judgments of scientific reasoning [Ver é crer: o efeito de imagens cerebrais em juízos de raciocínio científico]. De forma semelhante ao experimento de Weisberg, as neuroimagens deram muito mais credibilidade aos textos e artigos científicos apresentados, mesmo quando, de fato, elas nada acrescentavam. Eis o poder sedutor e persuasivo das neuroimagens e do discurso neurocientífico...

Tudo isto aponta para o fato de que devemos ficar atentos e vigilantes com relação às "verdades" com que nos deparamos seja na vida real ou, cada vez mais, na vida virtual. Em algumas situações, o efeito colateral pode ser suave: você apenas acreditará em algo supostamente científico, mas que de cientifico nada tem - e eu nem acho que para ser bom ou útil algo deva ter necessariamente o aval da ciência, só acho que se algo não é baseado em pesquisas e estudos científicos, não devia fingir sê-lo. No entanto, tome especial cuidado quando quiserem lhe vender algo supostamente baseado em pesquisas neurocientíficas. Você pode achar que está adquirindo algo válido e útil quando, na verdade, você está apenas gastando dinheiro à toa. Fique atento, pois as neurobobagens e os neuropicaretas estão por toda parte...

domingo, 13 de março de 2016

EXTRA! EXTRA! Cientistas conseguem implantar conhecimentos diretamente no cérebro... #sqn

Nesta ilustração de 1899, os ilustradores franceses Jean Marc Cotê e Villemard
tentaram imaginar como seria a educação no ano 2000.
No último dia 1º de Março, foi publicado no jornal inglês Telegraph a notícia de que um grupo de cientistas teria descoberto como fazer o "upload de conhecimento para o cérebro". Segundo a reportagem, traduzida pelo site Universo Racionalista

"Enviar conhecimento diretamente para o seu cérebro, exatamente como no filme de ficção científica Matrix, poderá em breve demandar um esforço semelhante ao de dormir, cientistas acreditam. Pesquisadores alegam ter desenvolvido um simulador que pode enviar informações diretamente para o cérebro de uma pessoa e a ensiná-la novas habilidades em um curto período, comparando-o com a “imitação da arte pela vida”. Eles acreditam que esse simulador pode ser o primeiro passo no desenvolvimento de uma software avançado que irá fazer do aprendizado instantâneo, ao estilo de Matrix, uma realidade. No clássico da ficção científica, o protagonista Neo é capaz de aprender Kung Fu em segundos depois que essa arte marcial é carregada para o seu cérebro. Pesquisadores da HRL Laboratories dizem ter encontrado uma maneira de ampliar o aprendizado, só que em escala muito menor do que visto no filme de Hollywood. Eles estudaram os sinais elétricos de um cérebro treinado de um piloto e então introduziram os dados de modo idêntico em indivíduos novatos, que aprenderam a pilotar um avião em um simulador de voo realista. O estudo, publicado no periódico Frontiers in Human Neuroscience, descobriu que os indivíduos que receberam a estimulação cerebral via eletrodos implantados na cabeça melhoraram suas habilidades de piloto e aprenderam as tarefas 33% melhor que o grupo placebo".

Só que não.... Como avalia o blog Neuroskeptic (em tradução minha):

"É verdade que os pesquisadores estimularam eletricamente os cérebros de alguns voluntários, utilizando a estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC). É verdade que o objetivo era tentar fazer os voluntários aprenderem melhor. Mas ninguém fez upload de nada - certamente não dos dados gravados a partir dos "sinais elétricos de um cérebro treinado de um piloto", o que não é mencionado no artigo original. Isso é ficção científica. Ou melhor, ficção jornalística. Na verdade, o ETCC pretendia colocar o cérebro em um estado tal que ele iria aprender mais rápido - para aumentar de alguma forma a sua neuroplasticidade natural. Quando você pensa sobre isso, não é mais como no filme Matrix do que quando você, por exemplo, bebe uma xícara de café antes de estudar para uma prova. Em um caso, o estímulo é elétrico, no outro químico, mas você não vai "baixar" o conhecimento em nenhum os casos. Mas é ainda pior. O Telegraph relata que a ETCC foi eficaz - fez as pessoas aprenderem 33% melhor em uma tarefa de simulação de vôo. Uau! Mas isso não aconteceu. ETCC não teve nenhum efeito sobre o desempenho médio em qualquer um dos cinco indicadores de desempenho na tarefa de simulação de vôo. O único resultado significativo foi que, em algumas das métricas, a estimulação foi associada com uma redução significativa na variância entre os sujeitos, ou seja, tornou as pessoas mais semelhantes umas às outras (mas não melhor, em média). No entanto, como os grupos neste estudo foram muito pequenos (32 participantes foram divididos em quatro grupos, de 7 a 10 pessoas cada), a variação era gritante. Os próprios autores mencionam ser "excepcionalmente elevada a variância dentro do grupo." Para ser honesto, eu gostaria muito de ver mais dados antes de me sentir convencido de que algo tão incomum como uma "convergência para a média" estava acontecendo. De qualquer maneira, o artigo do Telegraph está errado sobre os 33% de aumento na performance da aprendizagem. O comunicado de imprensa da HRL sobre o estudo parece ser a fonte da maior parte dos erros, incluindo a analogia com o filme Matrix. Mas devemos libertar nossas mentes da ilusão dos comunicados de imprensa, Neo. Lembre-se ... tudo o que eu estou oferecendo é a verdade. Nada mais".

Caso tenha interesse em pesquisar direto na fonte, este é o artigo original: Choe J, Coffman BA, Bergstedt DT, Ziegler MD, & Phillips ME (2016). Transcranial Direct Current Stimulation Modulates Neuronal Activity and Learning in Pilot Training. Frontiers in human neuroscience. Acesse o resumo aqui.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Neuroeducação: novidade ou mais do mesmo?

Em artigo publicado no último dia 3 de Março no periódico Psychological Review - denominado The practical and principled Problems with educational neuroscience [Os principais e práticos problemas com a neurociência educacional], o professor Jeffrey Bowers, da Universidade de Bristol (Inglaterra), simplesmente coloca por terra as principais alegações dos defensores do subárea da neurociência educacional - também chamada de neuroeducação - de que os novos insights sobre o cérebro podem  contribuir para o aperfeiçoamento do ensino em sala de aula - na verdade o pesquisador questiona até mesmo se os tais "novos insights" são de fato novos. Como analisei extensamente no meu livro "O cérebro vai à escola" (saiba mais aqui), o principal argumento daqueles que defendem a aproximação entre neurociências e educação, sejam neurocientistas ou educadores, é que entender o cérebro poderia favorecer o desenvolvimento de abordagens educacionais mais eficazes, capazes de potencializar a aprendizagem do estudante. Não é o que pensa Bowers, que é  professor da Escola de Psicologia Experimental da Universidade de Bristol. Segundo ele, a neurociência educacional não traz nenhuma contribuição nova ou no mínimo útil para o campo educacional. Entender o cérebro, para Bowers, é simplesmente irrelevante para se conceber qualquer estratégia ou prática de ensino. Tentarei explicar abaixo as suas razões para pensar desta forma.

Para o pesquisador, as justificativas apontadas pelos defensores da aproximação entre neurociências e educação podem ser divididas em: 1) triviais, 2) enganadoras e 3) injustificáveis. Dentre as justificativas triviais estariam enunciados banais, que todos os educadores de alguma forma já sabem, ou melhor, já saberiam sem os tais "novos insights" das neurociências. Por exemplo, dizer que a neurociência contemporânea demonstrou que o cérebro é plástico e que, portanto, a aprendizagem é possível na vida adulta e ao longo da vida, é uma falácia segundo Bowers, pois há tempos os educadores  já sabem que a aprendizagem é possível para além da infância - de outra forma, porque teriam sido feitos maciços investimentos na formação de jovens e adultos? Além disso, a ideia de que a plasticidade é uma descoberta contemporânea é também falaciosa, pois desde o final do século XIX pesquisadores defendem a ideia e reúnem evidências de que o cérebro se transforma ao longo do tempo e em função de mudanças no ambiente. O que de fato tem de novo é a "descoberta" de que a neurogênese - ou seja a formação de novos neurônios - ocorre em algumas partes do cérebro de indivíduos adultos. Mas a "descoberta" da neuroplasticidade nao é de fato nova. Na verdade, não houve nem propriamente uma descoberta. Como aponto no meu livro, "o conceito de neuroplasticidade foi sendo construído no decorrer dos séculos XIX e XX, não havendo propriamente uma descoberta, mas sim um acúmulo de evidências, advindas de diversos campos, de que o cérebro seria capaz de se modificar".  Tudo isto significa que a afirmação de que as neurociências descobriram que a aprendizagem pode acontecer ao longo da vida não é verdadeira - além de ser trivial. Da mesma forma como seriam triviais as afirmações - supostamente neurocientíficas - de que o stress, o medo, a desnutrição, os abusos e negligências prejudicam o aprendizado ou de que, pelo contrário, uma dieta adequada, uma boa noite de sono, motivação, exercícios fisicos e um ambiente rico podem favorecer a aprendizagem. Tais afirmações, embora possam parecer novas quando enunciadas por neurocientistas, de fato nada trazem de novo que os educadores de alguma forma já não soubessem. São, como diriam os psicólogos Sally Satel and Scott Lilienfeld, neuroredundâncias. 

Já as justificativas enganadoras seriam aquelas que, apesar de serem vendidas como neurocientíficas, são na verdade embasadas em dados e pesquisas comportamentais ou psicológicas e não cerebrais - e como exemplo, ele cita estudos neurocientíficos sobre aprendizagem matemática que no máximo corroborariam, mas nem de fato comprovariam, estudos e conclusões comportamentais já bem estabelecidos na literatura científica. Neste caso, tratar-se-ia de uma estratégia que Bowers poderia ter chamado de "vender gato por lebre", pois embora as afirmações pareçam provir de pesquisas neurocientíficas, na verdade provém iminentemente de pesquisas do campo psi (um exemplo que ele não citou mas que poderia ter citado é a ideia de que existem diversos tipos de memória, como a memória de trabalho, de curto e de longo prazos. Este entendimento não é resultado de descobertas neurocientíficas, como alguns autores disseminam por aí, mas de reflexões e pesquisas do campo da psicologia cognitiva).  E é neste sentido que o pesquisador afirma as neurociências só poderão efetivamente contribuir com a educação quando forem além daquilo que já está bem estabelecido pela psicologia. De outra forma, continuarão a ser mais do mesmo. Embora pareçam novidade, de fato grande parte das pesquisas em neurociência educacional, nada trazem de novo - nem para o conhecimento sobre a aprendizagem e muito menos para as práticas educacionais. Finalmente, o autor aponta para as justificativas injustificáveis, que são aquelas baseadas em deturpações de pesquisas e teorias neurocientíficas ou em conclusões que não advém propriamente do campo da neurociência. Exemplos disso seriam alegações sem embasamento científico como as de que usamos apenas 10% do cérebro ou de que possuímos uma dominância cerebral esquerda ou direita ou ainda de que cada um de nós possui um estilo de aprendizagem predominante. O autor aponta, no entanto, que ainda que o campo da neuroeducação se proponha a combater tais "neuromitos", ele também acaba por disseminar outros mitos - o que, de alguma forma, enfraquece tal combate.  

Bowers também critica a ideia de que embora a neurociência ainda tenha pouco a contribuir com o campo educacional, no futuro isto será diferente. Segundo ele, o problema fundamental não está na qualidade da neurociência atual, mas nas "falhas lógicas" que motivam a neurociência educacional - e que estão ligadas ao fato de que as neurociências são incapazes, por sua própria "essência", de construir estratégias educacionais concretas. O campo neurocientífico poderia - e de fato pode - contribuir para um entendimento sobre como o cérebro funciona quando aprendemos algo - ou quando temos dificuldades em aprender - mas isto não é de forma alguma suficiente para a construção de novas e melhores estratégias educacionais. Haveria uma distância enorme e provavelmente intransponível entre os estudos de laboratório feitos pelos neurocientistas e a prática de sala de aula efetivada pelos educadores. Isto significa que, ao contrário do que pregam os partidários da neuroeducação, a neurociência não pode e talvez jamais possa contribuir diretamente para a construção de práticas educacionais. Como conclui Bowers "é difícil ver como a neurociência poderá algum dia melhorar o aprendizado em sala de aula".

segunda-feira, 7 de março de 2016

Compre agora o livro "O cérebro vai à escola"!

Sinopse: Esta obra aborda como ocorre a aproximação entre os campos neurocientífico e educacional no Brasil. Algumas questões movem este trabalho: como se dá a emergência da neuroeducação e quais configurações ela assume no país? Quais são os atores e discursos envolvidos na aproximação entre estes campos no Brasil? Como o cérebro humano é entendido pelos diversos atores da neuroeducação brasileira? 



Informações básicas sobre a obra:

ISBN: 9788546203147
Autor: Felipe Stephan Lisboa
Editora: Paco Editorial
Edição: 1ª Edição
Área: Educação
Idioma: Português
Data de Publicação: Fevereiro/2016
Número de Páginas: 236 Páginas
Acabamento: Brochura
Tamanho: 14x21cm

Preço: R$39,90 + Frete

Sumário básico (veja o sumário completo aqui):

Capítulo 1: A Emergência da Neuroeducação; 

Capítulo 2: Aproximações entre Neurociências e Educação no Brasil; 
Capítulo 3: “Que Cérebro é Esse que Chegou a Escola”; 
Condiderações finais: Uma Crítica ao Cerebralismo na Educação.



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terça-feira, 1 de março de 2016

Lançamento do livro "O cérebro vai à escola"

Querido leitor, meu livro, que eu já havia anunciado anteriormente no blog, finalmente está pronto! Depois de dois anos escrevendo-o, inicialmente sob a forma de dissertação, e mais dois anos revisando e revisando e revisando, finalmente meu livro está impresso e pronto para circular por aí. Mas do que trata o livro? Bom, ele trata do campo das neurociências e também do campo da educação. Mais especificamente ele trata da aproximação entre os dois campos. O que me proponho à analisar é, especificamente, como no final do século XX e início do século XXI a neurociência se transformou em um discurso absolutamente sedutor e convincente, que atraiu para junto de si inúmeros campos. De tais aproximações surgiram áreas de interface como a neurofilosofia, a neuroteologia, o neurodireito, a neuroliteratura, o neuromarketing, dentre outros. O meu objeto de análise é, dentre outras coisas, a emergência da neuroeducação, ou seja, do campo que se propõe a articular as "descobertas" das neurociências com a prática em educação de forma a "potencializar" o processo de aprendizagem. Mais especificamente, eu analiso como se dá esta aproximação no Brasil. Para tanto, eu analisei uma série de livros, artigos, videos e sites, escritos tanto por educadores quanto por neurocientistas, que defendem e propagam a necessidade de interseção entre os dois campos. Em comum, todos os autores analisados defendem que entender "como o cérebro aprende" é fundamental para o educador. A ideia é que entender o funcionamento cerebral poderia contribuir para uma prática mais "eficaz" e, de uma forma mais ampla, para uma educação mais efetiva. Aliado a isto, tem-se configurado nacionalmente e internacionalmente, o entendimento de que a educação deve ser cada vez mais embasada em dados e evidências científicas e menos em "opiniões, modas e ideologias", como aponta uma autora analisada. Pretende-se com isso que o campo educacional melhore ao se tornar mais "científico". Mas de que ciência estamos falando? O que o livro mostra de uma forma bastante incisiva, é que existem inúmeros discursos que reivindicam para si a o status de ciência - e mais especificamente de neurociências. Existem discursos tão diferentes sobre o mesmo cérebro que parecem existir, de fato, diversos cérebros diferentes. O cérebro descrito pelos educadores em obras destinadas a educadores é bastante diverso do cérebro descrito pelos neurocientistas em obras destinadas igualmente a educadores. São entendimentos completamente diversos, mas que possuem um importante ponto em comum: todos trazem consigo um entendimento reducionista que considera que é o cérebro - e não a pessoa como um todo - que aprende (e que ensina). Segundo grande parte dos autores analisados é o cérebro que vai para a sala de aula e é para "ele" que é destinado o processo de ensino-aprendizagem. O cérebro seria, enfim, "aquele" que aprende. Como aponto na conclusão do livro (ops, spoiler!),"na contramão deste discurso, apontamos para o cérebro como mais um elemento em cena, um elemento necessário certamente, mas não o único. Da mesma forma, concebemos o aprendizado como algo realizado pela pessoa como um todo (inclusive com seu corpo) e não por seu cérebro. Neste sentido, compreendemos as neurociências como um campo capaz de fornecer algumas informações relevantes para a educação e os educadores, mas incapaz, isoladamente, de explicar o processo de aprendizagem e suas dificuldades e, muito menos, de conduzir ou resolver os inúmeros problemas e desafios do campo educacional" (confira outro trecho clicando aqui). E para comprá-lo clique aqui.