terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sobre o Big Brother e o poder das circunstâncias

Já que está todo mundo falando de Big Brother, eu gostaria de falar também. Mas como eu não acompanhei sistematicamente nenhuma edição - nem mesmo a atual - pretendo fazer aqui apenas algumas considerações gerais sobre o programa, pensando nele como uma espécie de experimento nada ortodoxo de psicologia social - um experimento que, cabe apontar, não seria jamais aprovado por qualquer Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. De toda forma, é fato que muitos experimentos clássicos em psicologia social se assemelham imensamente a "pegadinhas" e a "reality shows" na medida em que que buscam analisar reações espontâneas dos participantes diante de determinadas situações artificialmente concebidas - e uma questão importante sobre os reality shows que já vale à pena apontar é que por mais artificiais que sejam as situações criadas pela direção do programa, de fato há sempre algo de "reality" em jogo, já que seria impossível aos participantes agir de forma totalmente autocontrolada ou dissimulada 24 horas por dia, especialmente após algum tempo de confinamento. Uma outra questão, amplamente demonstrada por inúmeros experimentos em psicologia social, é que todos somos profunda e continuamente influenciados pelas circunstâncias - e isto vale tanto para os participantes do Big Brother quanto para cada um de nós. A principal diferença, nesse caso, é que eles, ao contrário de nós, estão vigiados todo o tempo por dezenas, talvez centenas de câmeras que captam (quase) tudo o que falam e fazem e que transmitem todo esse imenso conteúdo para quem quiser assistir. Mas com relação ao poder das circunstâncias de influenciar e, de fato, moldar o nosso comportamento, estamos todos no mesmo barco. Como bem afirma o psicólogo social Sam Sommers no sensacional livro O poder das circunstâncias, "o mundo que nos rodeia está constantemente nos influenciando, colorindo a forma como pensamos e orientando como nos comportamos. No entanto, raramente notamos".

E nós raramente notamos as circunstâncias que nos influenciam pelo mesmo motivo pelo qual se imagina que os peixes não notem a água ao seu redor: devido a um processo quase inevitável de naturalização das forças que nos envolvem. Como afirma Sommers "nosso esquecimento típico sobre o poder das circunstâncias surge porque a maior parte de nossa existência diária ocorre em ambientes familiares, nos limites da rotina conhecida. É preciso o choque do desconhecido para lembrar o quão cego você é ao seu ambiente de sempre". O Big Brother, neste sentido, se constitui como um ambiente novo - e, portanto desconhecido - para seus participantes e, justamente, por isso, revela de uma forma bastante singular o poder das circunstâncias de moldar o self e o comportamento. É muito comum, nesse contexto atípico, que as pessoas ajam de uma forma diferente de como gostariam de agir e também de como agiram no passado em suas vidas cotidianas - algumas chegam a se surpreender, depois que saem da casa, com o que fizeram e falaram enquanto estavam lá. E o motivo é que tais comportamentos faziam sentido naquela circunstância específica, mas não em outras circunstâncias. Isto significa também que a ideia, amplamente disseminada, de que os participantes mostram no programa sua "verdadeira face" não faz muito sentido já que nós agimos de diferentes formas em diferentes contextos. Pense por exemplo na forma como você se comporta - isto é, o que você faz e fala e o que não faz e não fala - com seus amigos, com sua família e com seus colegas de trabalho. Muito provavelmente - e os experimentos em psicologia social demonstram isso - você age de formas distintas em cada um destes grupos e a razão é que nós não temos apenas um único e coerente "eu" mas múltiplos, a depender, é claro, das circunstâncias. Como afirma Sommers, nós somos "facilmente seduzidos pela teoria do caráter estável", quando, na verdade, "boa parte do que somos, de como pensamos e do que fazemos é motivada pelas situações em que nos encontramos". Isto não quer dizer que as pessoas não tenham uma personalidade mas sim que aquilo que chamamos de personalidade engloba múltiplas e contraditórias características que afloram (ou não afloram) de acordo com as circunstâncias específicas. Assim, uma mesma pessoa pode manifestar um comportamento mais introvertido em uma situação e um comportamento mais extrovertido (ou menos introvertido)  em outra. Isto não significa, contudo, que a pessoa não tenha uma personalidade mais introvertida mas que em determinadas situações - por exemplo, na presença de pessoas conhecidas - essa característica se aflora menos, dando espaço temporariamente a uma outra faceta. Todos nós, aliás, temos inúmeras facetas que manifestamos ou não manifestamos em circunstâncias específicas. Na casa do Big Brother, por exemplo, os participantes manifestam entre si variadas e, por vezes, contraditórias facetas. No entanto a edição do programa reduz toda esta complexidade ao transformá-los em personagens de uma certa narrativa que a direção pretende vender para o público. E é justamente nessa narrativa ultrasimplificadora da realidade que se encontra o elemento de show do reality show.

Toda esta discussão me traz a uma outra questão: se somos fortemente influenciados pelas circunstâncias isto significa que não somos responsáveis por nossas ações e que a "culpa" de nos comportarmos de determinada maneira é apenas do contexto? É claro que não! Como já deixei claro em diversas ocasiões defendo a existência do livre-arbítrio ainda que entenda que somos contínua e profundamente influenciados por inúmeros fatores que fogem ao nosso controle pessoal. Se não houvesse algum livre-arbítrio, não poderíamos jamais ser responsabilizados e responsabilizar alguém por nada. Como afirma Steven Pinker no livro Tábula Rasa, "se o comportamento não é totalmente aleatório, há de ter alguma explicação; se o comportamento fosse totalmente aleatório, não poderíamos responsabilizar a pessoa em nenhum caso. Portanto, se alguma vez responsabilizarmos pessoas por seu comportamento, terá de ser a despeito de qualquer explicação casual que julguemos cabível, independente de ela invocar genes, cérebro, evolução, imagens da mídia, dúvida sobre si mesmo, criação ou convívio com mulheres briguentas". Tudo isto significa que os participantes do Big Brother são sim responsáveis por tudo o que fazem e falam enquanto estão confinados na casa, ainda que sejam fortemente influenciados por circunstâncias específicas. Penso, nesse sentido, que devemos sempre levar em conta, em nossas análises e opiniões, tanto os comportamentos individuais dos participantes quanto as forças sociais a que eles estão sujeitos - e que influenciam fortemente seus comportamentos embora, repito, não os desresponsabilizem. Como desconsiderar, por exemplo, o efeito da competitividade que permeia todo o programa? Se os participantes são instigados a competir todo o tempo uns com os outros (por pequenos "prêmios" e, especialmente, pelo prêmio principal) como esperar que a regra seja a colaboração? Se o que vale é a racionalidade do cada um por si (pois apenas um vencerá) como esperar que as pessoas ajam de uma outra forma que não atacando com força seus oponentes? E vejam bem que eu não estou negando que haja espaço para colaboração - pois há; estou apenas apontando que a lógica central deste jogo (e de quase todos os jogos) é a da competitividade. E esta lógica certamente influencia o comportamento dos participantes, que tendem a se juntar em grupos especialmente para derrotar outros grupos - o que, curiosamente, os fortalece como indivíduos. E isto, por sua vez, leva o participante à um processo de conformidade e obediência ao grupo ao qual ele se vinculou e também, como consequência, a uma grande animosidade com relação aos indivíduos de fora do seu grupo. Não é de se estranhar, portanto, que ocorram tantas brigas entre indivíduos de grupos "rivais". E o motivo é que eles são - e todos somos - seres fundamentalmente sociais e, exatamente por isso, todas nossas ações e decisões são profundamente influenciadas pelas circunstâncias que nos envolvem.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

"O peso do pássaro morto" e as dores de um vida

Em meu projeto de ler mais ficção, descobri no final do ano passado o livro "O peso do pássaro morto", da escritora brasileira Aline Bei, e o li integralmente de uma só vez, em apenas uma tarde. Com relação à forma, achei o livro bastante peculiar pois ele é uma espécie de romance em formato de poesia ou um romance-poético - ou eu poderia chamar simplesmente de poesia? Não sei - prefiro deixar estas definições para os especialistas em literatura. Já com relação ao conteúdo é possível dizer, sem revelar nada de significativo, que ele trata da vida de uma mulher desde sua infância até a idade adulta. Narrado pela própria protagonista, o livro trata de temas difíceis e dolorosos como a morte, o estupro, a rejeição, o desamor, a solidão e o esquecimento. Se você busca um livro alto-astral com um olhar positivo ou otimista sobre o mundo e a vida, fuja desse. Mas se você estiver disposto ou disposta a um olhar duro e melancólico sobre a vida (e sobre a morte) este livro é, certamente, uma boa pedida. Pessoalmente, gostei muito do livro, embora tenha ficado muito triste ao terminá-lo. Não é definitivamente um livro fácil - não devido ao estilo da autora, mas sim devido aos temas que trata. De toda forma, recomendo muito sua leitura.

Trecho do livro:

“Na escola
em casa
na cozinha
perguntei pra minha mãe:

– o que é morrer?

ela estava fritando bife pro almoço.

– o bife
é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que farão com a sua carne.
quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos, mas tentamos.


almoçamos a morte e foi calado.
enquanto minha mãe lavava louça fui até a casa do seu luís às escondidas, mas não exatamente
acho que minha mãe ouviu
a porta batendo e que era eu
saindo com os meus 8 anos atravessando a rua olhando
pros 2 lados que meu pai me ensinou Cuidado
e batendo na casa do seu luís
pra perguntar. minha mãe deixou eu ir, deve ser
porque morreu uma menina de oito anos e isso
transformou ter a minha idade em ser adulta”

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre "Devs" e a (in)existência do livre-arbítrio

Nós somos livres para fazer nossas escolhas ou aquilo que chamamos de escolha na verdade é determinado por causas anteriores, que fogem completamente ao nosso controle pessoal? Enfim, nós possuímos ou não livre-arbítrio? Tal questão, amplamente debatida no campo filosófico ao menos desde a Grécia Antiga, mais recentemente tem sido analisada também no campo científico - em especial pela física e pela neurociência. Neste último caso, como já apontei em outras ocasiões, tem crescido no interior do campo neurocientífico, especialmente a partir da década de 1980, um discurso que nega a existência do livre-arbítrio sob o argumento de que é o cérebro, no fim das contas, que toma todas as decisões. Segundo esta visão neuro-determinista nós não fazemos de fato qualquer escolha; na verdade aquilo que chamamos de escolha é apenas o resultado de uma série de atividades encadeadas de nossos neurônios e suas sinapses. Pois todas estas questões me trazem à fantástica série de ficção científica Devs, lançada em 2020 pelo canal FX - e infelizmente pouco vista, comentada e analisada no Brasil. Criada por ninguém mais e ninguém menos que Alex Garland, roteirista e diretor de dois clássicos sci-fi contemporâneos (Ex Machina, que já analisei anteriormente, e Aniquilação) Devs tem como protagonista Lily Chan, uma jovem funcionária da megaempresa de tecnologia Amaya, cujo noivo, Serguei, aparece morto, carbonizado, um dia após começar a trabalhar num setor especial e misterioso da empresa, chamado Devs. Lily desconfia que Serguei não ateou fogo em si mesmo, como teriam mostrado as imagens das câmeras de segurança da empresa, e decide investigar o que de fato ocorreu. E com isso ela se vê imersa em uma série de tramas envolvendo, especialmente, os objetivos ocultos da empresa Amaya e de seu criador, Forest - e eu recomendo que você só continue lendo esta análise caso já tenha assistido à primeira temporada da série (ALERTA DE SPOILER). 

Como descobrimos em certo momento, a máquina desenvolvida pela equipe do Devs, sob a coordenação de Forest, tem como um de seus principais objetivos visualizar o passado e o futuro como um filme. Concebida com base no princípio determinista segundo o qual todos os fenômenos da natureza estão conectados por rígidas relações de causalidade, tal máquina tem a capacidade de prever o futuro através de uma complexa - e, ao que parece, completa - análise causal do passado. Trata-se, enfim, de uma máquina capaz de ver (ou simular) tudo, tanto aquilo que ocorreu quanto aquilo que ocorrerá. Em relação ao comportamento humano esta máquina teria o poder, por exemplo, de mostrar o que você estará fazendo amanhã à tarde. Agora, vamos supor que ela mostrasse você matando uma outra pessoa neste horário (como enxergariam os precogs do filme Minority Report). Teria você a liberdade para agir de uma outra forma sabendo de tal previsão? Seguindo as leis deterministas, utilizadas para a elaboração da máquina, não existiria essa possibilidade. O futuro será conforme a previsão independente do que você faça - aliás, você não teria como agir de outra forma em nenhuma situação, o que é uma outra forma de dizer que não existe o livre-arbítrio, pois o futuro já estaria previamente determinado. Na série, esta teoria é colocada à prova quando a equipe do Devs enxerga, através da máquina, Lily atirando em Forest - e, com isso impedindo, por algum motivo que não consegui compreender, a previsão de eventos para além deste momento. Se a teoria determinista estivesse correta não seria possível fazer nada para impedir isso. E então, quase na hora prevista para tal incidente, Forest mostra para Lily a previsão do que ela supostamente fará em alguns instantes. Mas na hora H, contrapondo-se ao que foi previsto, ela age de uma forma ligeiramente diferente. Com isso a teoria determinista é refutada e o livre-arbítrio comprovado. E ainda que ela e Forest acabem morrendo - de uma forma diferente da prevista - a máquina continua funcionando e acaba por ser utilizada para um último objetivo: transportar a consciência de Forest (e também a de Lily) para uma realidade simulada na qual a filha de Forest (Amaya) estaria viva novamente. Neste momento descobrimos o propósito final da máquina de Devs (que significa, na verdade, Deus): mapear o passado e o futuro de forma a criar uma realidade alternativa simulada para a qual algumas consciências seriam transportadas e, assim, imortalizadas - tal como ocorre no episódio San Junipero da série Black Mirror (sobre o qual já comentei anteriormente). Nesta nova realidade, apenas teriam consciência da simulação - e também livre arbítrio para tomar as próprias decisões - Forest e Lily. Para todas as demais pessoas - que não são de fato pessoas, apenas simulações sem consciência de que são simulações - aquela seria a única realidade existente. Aliás, nós também levamos nossas vidas como se esta fosse a única realidade. Nem nos passa pela cabeça que tudo o que vemos e sentimos poderia ser "apenas" uma simulação criada por uma megaempresa de tecnologia. Você, por acaso, já parou para pensar nessa possibilidade?

PÓS-ESCRITO: Em um importante artigo publicado em 2018 pela revista AJOB Neuroscience - denominado The Impact of a Landmark Neuroscience Study on Free Will: A Qualitative Analysis of Articles Using Libet and Colleagues' Methods [que poderíamos traduzir como "O impacto de um estudo de referência em neurociência sobre o livre-arbítrio: uma análise qualitativa de artigos que usaram os métodos de Libet e colegas"] - os pesquisadores Victorio Saigle, Veljko Dubijevic e Eric Racine simplesmente colocaram por terra o argumento utilizado por alguns neurocientistas de que a neurociência já teria provado a inexistência do livre-arbítrio. Tais pesquisadores não provaram, contudo - e dificilmente teriam como provar - que o livre-arbítrio existe; eles apenas demonstram de uma forma bastante consistente que a neurociência ainda não conseguiu provar sua inexistência. Nesta mesma direção, o filósofo Mark Balaguer, na conclusão de sua obra "Livre-arbítrio", publicada pela Série Conhecimento Essencial (The MIT-Press), afirma que "os inimigos do livre-arbítrio costumam exagerar quando apresentam seus argumentos. A verdade é que eles estão longe de saber o suficiente sobre como o cérebro funciona para concluir, com qualquer grau de certeza, que nós não temos livre-arbítrio". E arremata: "A neurociência tem feito progressos verdadeiramente surpreendentes nas últimas décadas. Mas essa ciência ainda está em sua infância. Nós simplesmente não estamos prontos para responder agora a questão do livre-arbítrio". 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan: "Você não é seu cérebro!"

Ontem à noite eu tive a hora de ministrar a Aula Magna do curso de Psicologia da Uniptan, centro universitário sediado na cidade de São João Del-Rei, em Minas Gerais. O evento contou com a participação virtual de mais de 600 pessoas de diversas cidades e instituições do país. O tema que escolhi para minha palestra foi, não coincidentemente, o mesmo título do meu último livro: "Você não é seu cérebro!" e nela eu trago um olhar crítico/realista sobre o campo das neurociências. Caso tenha interesse em assistir minha palestra, ela está disponível na íntegra abaixo - ou diretamente no canal do Youtube do professor da Uniptan Luis Vinicius do Nascimento, a quem agradeço imensamente pelo convite.
 
PS: a palestra tem início aos 32 minutos e 45 segundos do video.

"Normal people" e a chatice das pessoas normais

Segundo o Dicionário Informal, a expressão reme-reme diz respeito à "algo que vai andando devagar, nem bem, nem mal, assim-assim, vai andando como de costume, como sempre, não melhora, nem piora, não acelera, nem para". Pois esta expressão é perfeita para descrever a série Normal people, lançada em 2020 pela plataforma Hulu - e distribuida no Brasil pela StarzPlay. Trata-se de um reme-reme infernal com 12 longos (embora curtos) episódios. Baseada no best-seller homônimo da escritora Sally Rooney - que não pretendo ler - a série acompanha os (poucos) encontros e os (muitos) desencontros dos jovens irlandeses Marianne e Connell, desde o ensino médio até o início vida adulta. A série tem um tom exageradamente triste e dramático, que me incomodou muito. Em certos momentos, diante do chove-não-molha interminável dos personagens, e dos infinitos olhares melancólicos de um para o outro, minha vontade era entrar na tela e gritar para eles: "Pelo amor de deus, fiquem juntos ou se separem logo. Acabem de uma vez com todo esse sofrimento". Mas o sofrência não acaba nunca e só se acentua, o que torna a experiência insuportável em vários momentos. E o que dizer da trilha sonora, que parece ter sido retirada da playlist "Músicas tristes para chorar até dormir", do Spotify? Pra coroar a desgraceira, todos os personagens da série são incrivelmente chatos e desinteressantes - e se eles são as tais "pessoas normais" do título, a única conclusão possível é que as pessoas normais são terrivelmente chatas e desinteressantes, o que faz muito sentido. Por sinal, acho o título da série (e do livro) excessivamente ambicioso e, justamente por isso, equivocado. Afinal de contas, o que raios é uma "pessoa normal"? Não consigo imaginar questão mais complexa e problemática que essa, mas a resposta da série (e, ao que parece, do livro) é que Marianne e Cornell seriam modelos arquetípicos dessa tal normalidade. Mas o meu ponto é: se esses personagens terrivelmente chatos são "pessoas normais" então deus me livre ser normal! 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

"I may destroy you" e machismo nosso de cada dia

Por ser um homem branco, heterossexual e cisgênero eu jamais vivenciei sequer uma vislumbre do preconceito, da discriminação e da violência sofridos todos os dias por mulheres, negros(as), homossexuais e pessoas trans. Os privilégios que eu possuo - e que tento me manter consciente - de alguma forma me distanciam das experiências vivenciadas por inúmeras pessoas que não gozam de tais privilégios. No entanto, eu tento me aproximar o quanto posso de tais experiências, seja por meio de minha atuação clínica - que tem na empatia uma base fundamental - seja através de livros, filmes e séries criados e/ou protagonizados por mulheres, negros(as), homossexuais, pessoas trans, etc. É claro que por mais que eu tente me aproximar destas experiências, uma distância ainda permanece e sempre permanecerá, o que significa dizer que eu jamais saberei exatamente como é ser uma mulher ou uma pessoa negra, homossexual ou trans - até porque não existe apenas uma experiência feminina, negra, homossexual ou trans, mas inúmeras (embora seja possível identificar algumas vivências em comum, como aquelas relacionadas ao preconceito, à discriminação e à violência). Por uma limitação própria de nossa estrutura mental eu jamais compreenderei e sentirei, com toda a profundidade necessária, como é ser uma pessoa diferente de mim mesmo. O máximo que eu posso fazer, nesta busca por compreensão, é tentar me aproximar da vivência deste Outro, seja através da escuta de suas experiências seja através da apreciação de determinadas obras de arte, como aquelas advindas da literatura e do cinema. Todas estas reflexões me trazem, nesse sentido, à série I may destroy you, lançada em junho de 2020 pelo canal HBO. Criada, protagonizada, produzida e codirigida pela multitalentosa Michaela Coel (das séries Chewing gum e Black earth rising), I may destroy you conta a história de Anabella, uma jovem escritora londrina, envolvida na escrita de seu segundo livro, que certa noite sai para relaxar e se divertir com os amigos e acaba sendo dopada e brutalmente estuprada por um homem desconhecido no banheiro de um bar. No dia seguinte Bella acorda com um corte na testa mas não consegue se lembrar do que ocorreu e nem de detalhes do estupro e do estuprador; ela tem apenas flashes dos acontecimentos, que lhe invadem a mente de tempos em tempos. Após este acontecimento traumático, Anabella vai gradualmente se dando conta dos inúmeros (e por vezes sutis) abusos e violências que sofreu ao longo de sua vida por ser mulher - e negra. Ao longo desta primeira temporada, composta por 12 curtos episódios, acompanhamos todos os esforços da protagonista para lidar com seus traumas e seguir adiante. Em especial Bella recorre à todo tipo de apoio para enfrentar seus medos e curar suas feridas: inicia uma terapia, passa a frequentar um grupo de ajuda mútua voltado para mulheres vítimas de abusos e violências e, especialmente, conta todo o tempo com o imprescindível suporte de seus amigos queridos. Baseada nas vivências pessoais de sua criadora. I may destroy you trata com muita sensibilidade dos desafios de ser uma mulher negra em um mundo terrivelmente machista e racista. E com isso a série permite tanto a identificação por mulheres que tiveram experiências de abuso semelhantes às vivenciadas pela protagonista quanto o cultivo da empatia por pessoas que não tiveram tais experiências - caso de homens brancos como eu. E este cultivo da empatia pode contribuir, quem sabe, para que nós homens pensemos e repensemos nossas próprias atitudes - e especialmente o impacto de nossas ações e palavras nas mulheres com quem nos relacionamos ou apenas interagimos e, de uma forma geral, nas vidas e subjetividades de todas as demais pessoas com quem nos deparamos ao longo do caminho. 

domingo, 31 de janeiro de 2021

"8 em Istambul" e os desafios da empatia

O título em português da série turca Bir Başkadır - "8 em Istambul" - não é lá muito preciso, já que bem mais do que 8 personagens dominam a narrativa - aliás, eu nem saberia dizer exatamente quem são estes tais 8. O título original, bem mais interessante, remete a um dito popular turco que aponta para algo ou alguém único, peculiar, singular. Pois esta expressão, impossível de ser traduzida, sintetiza muito bem a proposta desta maravilhosa série da Netflix, que é retratar a vida singular de alguns moradores da multifacetada cidade de Istambul, na Turquia. Dentre estes personagens temos Meryem, que pode ser considerada a protagonista da série, já que todos os demais personagens possuem alguma relação, direta ou indireta, com ela: seu irmão Yasin, sua cunhada Ruhiye, sua terapeuta Peri, a terapeuta de sua terapeuta Gülbin, seu líder religioso Hodja, seu patrão Sinan, dentre outros. A série tem início com Meryem se consultando, pela primeira vez, com a psiquiatra e psicoterapeuta Peri em um hospital da cidade. Meryem vinha tendo alguns desmaios e, por isso, foi encaminhada à psiquiatria pelo médico que lhe atendeu inicialmente. E é a partir dessa situação que a série se desenrola - e cabe apontar que não pretendo neste breve ensaio analisar todos os núcleos e histórias da série; gostaria de me focar especificamente na relação de Meryem com sua terapeuta Peri. Como descobrimos logo nos primeiros episódios, Peri é uma mulher ocidentalizada que nutre dentro de si um grande preconceito - e mesmo uma repulsa - com relação à mulheres muçulmanas que usam véu; pois Meryem é justamente uma mulher muçulmana que usa véu, o que constitui, para Peri, um desafio terapêutico e pessoal imenso - tanto que em inúmeras ocasiões Peri relata para sua própria terapeuta e supervisora, Gülbin, dificuldades no atendimento com Meryem, que os psicanalistas poderiam chamar de dificuldades transferenciais. Pois o fato é que, embora habitem a mesma cidade, Peri e Meryem possuem vidas e subjetividades completamente diferentes, como se habitassem mundos distintos. E esta distância - que está mais para um abismo - dificulta imensamente que Peri se conecte com Meryem e sinta empatia por ela. Afinal de contas, como se conectar e empatizar com uma pessoa que representa tudo aquilo que você rejeita? Este, aliás, é um imenso desafio para todos os terapeutas. Eu próprio já atendi e atendo com frequência inúmeras pessoas com identidades e visões de mundo radicalmente diferentes das minhas e isto sem dúvida traz consigo imensos desafios subjetivos. Como me "colocar no lugar" de uma pessoa que pensa e age de forma completamente diferente de mim? Na verdade, o problema é ainda mais complexo que isso, pois diz respeito não apenas àquelas pessoas com visões de mundo muito diferentes das minhas mas, no final das contas, à todas as pessoas. Como saber, por exemplo, se aquilo que um paciente chama de ansiedade ou tristeza ou angústia é exatamente aquilo que eu próprio chamo e sinto? Como já apontei em outras ocasiões - por exemplo, na resenha que fiz do filme A chegada - não temos, de fato, como saber. Este abismo entre a minha própria subjetividade e as demais subjetividades, incluindo aquelas dos meus pacientes, não é facilmente transponível ou superável. No entanto, apesar destas dificuldades, precisamos seguir com o nosso ofício. E também, como Peri, precisamos compreender melhor nossos preconceitos e, na medida do possível, superá-los, de forma que possamos nos conectar verdadeiramente com nossos pacientes. O desafio - para a terapia e para a vida em geral - está em lidar com o outro especialmente naquilo que ele é diferente de nós. Como aponta um famoso provérbio, atribuído ao mestre Paulo Freire, "amar o igual é amar a si próprio. O desafio está em amar o diferente". No caso de uma psicoterapia eu não diria que precisamos amar nossos pacientes - embora isto seja possível e até desejável, dentro de certos limites éticos e profissionais - mas certamente precisamos fazer o que estiver ao nosso alcance para nos conectarmos às suas vidas subjetivas naquilo que elas tem de mais peculiar. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aversão de si: uma resenha do livro O olho mais azul

Há algum tempo comecei a ler o livro Amada, da escritora norte-americana Toni Morrison e achei o início bem difícil e confuso, o que me levou a desistir temporariamente da leitura - que pretendo retomar em breve. Daí eu comentei sobre essa dificuldade em uma rede social e uma colega me sugeriu iniciar a obra de Morisson por seu primeiro livro, O olho mais azul, publicado originalmente em 1970. E foi o que fiz. E de fato achei a leitura deste livro bem mais tranquila e fluida, ainda que se trate de uma narrativa fragmentada e não-linear - como a própria autora explica no posfácio, ela quis "quebrar a narrativa em partes a serem reunidas pelo leitor". Pois a trama de O olho mais azul gira ao redor da família Breedlove, uma família afro-americana pobre composta pela mãe (Polly), pelo pai (Cholly) e pelos dois filhos (o garoto Sammy e a garota Pecola, que é a protagonista da história). Trata-se, sem dúvida, de uma família bastante problemática: o pai bebe demais e frequentemente bate na mãe e abusa das crianças; já a mãe dedica todo o seu amor e cuidado à família branca para quem ela trabalha há décadas; e as crianças são, assim, negligenciadas e maltratadas e sofrem com tudo isso. Pecola sofre ainda, terrivelmente, por ser considerada feia tanto por sua família quanto por seus vizinhos e colegas. Por ter o cabelo crespo e a pele mais escura que grande parte de seus colegas de escola, Pecola é frequentemente ridicularizada, humilhada e rejeitada pelas pessoas ao seu redor. E por conta disso, ela sonha e deseja ardentemente possuir os olhos azuis, como as meninas que ela (e toda a sociedade) consideram bonitas - aliás, Pecola não deseja simplesmente ter os olhos azuis; ela quer ter os olhos mais azuis dentre todos os olhos azuis. No posfácio do livro, Morisson afirma que este desejo tem relação com uma forte "aversão por si mesma", de origem racial, que acomete Pecola e grande parte das garotas negras - e das pessoas negras em geral. Na narrativa da autora, tal aversão ou desvalorização de si diz respeito a algo que, como o próprio racismo, acaba por persistir, de geração em geração, por meio da reprodução dos valores (e desvalores) dominantes. Mas este é apenas um dos inúmeros temas e questões tratados pela autora - a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel - neste excelente e complexo romance. Recomendo fortemente!

Trecho do livro: "Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: “Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos” (...) Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse".

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Tão perto, tão longe: breves apontamentos sobre o livro "Impressões de Michel Foucault"

Taí um ótimo livro para quem quer se aproximar das ideias de Michel Foucault. Nesta obra autobiográfica, o renomado filósofo Roberto Machado conta saborosas histórias sobre sua convivência com Foucault na década de 1970, no Brasil e na França - e entrelaça tais histórias com preciosos apontamentos sobre a obra foucaultiana, da qual é um dos maiores especialistas brasileiros. Gostei especialmente das reflexões de Machado sobre sua relação ambígua com Foucault, ao mesmo tempo próxima e distante, baseada tanto na admiração como no medo. Como aperitivo trago um belíssimo trecho do capítulo Proximidade e distância: "Uma extrema doçura transbordava de seus olhos, de sua voz, de seus gestos, de seu sorriso. Sua delicadeza sempre foi grande comigo. Talvez eu até não lhe tenha correspondido direito, por timidez, medo, respeito. Nos momentos de maior intimidade, quando estava a alguns centímetros dele, não deixava de me sentir a quilômetros. Também pudera. Ele era a pessoa que mais havia contribuído para o meu pensamento, transformado minha vida. Alguém de quem eu havia lido quase tudo. Sobre quem estava escrevendo. Que havia traduzido. Como não ficar intimidado? Mas, mesmo tendo sido sempre delicado comigo, ele tinha um lado terrível. Talvez, além de generoso, fosse cruel. Alguém que metia medo. Seus olhos argutos, que, sem arrogância, pareciam perscrutar uma verdade secreta, sua boca, crispada, prestes a expressar uma visão singular desconcertante numa voz forte, metálica, suas posturas improváveis, incomuns, atípicas, seus gestos vivos, que orquestravam com exatidão pensamentos exigentes, podiam destruir alguém sem esforço. Sentia-se que era perigoso".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

"A assistente" e a saúde mental no trabalho

No sensacional filme "A assistente", recém-lançado pela Prime Video, acompanhamos, do início ao fim, um dia de trabalho na vida de Jane, uma jovem secretária de uma grande e renomada produtora de cinema. Sua rotina, extenuante, é composta por milhares de pequenas funções ligadas à burocracia, à organização e à limpeza do escritório  e, especialmente, ao gerenciamento da vida profissional (e também pessoal) do poderoso chefão da companhia. Pra piorar, Jane é invisibilizada e diminuída pela equipe e frequentemente humilhada por seu chefe e por outros colegas de trabalho - todos homens, claro. Aliás, o ambiente da empresa é totalmente impregnado de uma machismo indisfarçável, o que pode ser observado não apenas na forma humilhante como Jane é tratada mas também na maneira como o chefão assedia, inclusive sexualmente, as novas funcionárias e candidatas a atrizes. Igualmente sintomático deste ambiente machista é a conivência do setor de RH da empresa com relação ao comportamento sistematicamente assediador do chefe. E pra piorar ainda mais a situação de Jane e das demais funcionárias assediadas moral e/ou sexualmente pelos homens da empresa, há uma espécie de cobrança social para que elas sejam gratas ao emprego que conseguiram - afinal de contas, elas fazem parte da prestigiosa indústria cinematográfica norte-americana, ainda que no nível mais baixo da hierarquia. Mas para além das discussões sobre machismo e assédio no ambiente de trabalho, já amplamente analisadas em outras resenhas do filme, gostaria aqui de trazer um outra questão. Seria possível, em um ambiente tóxico como o da empresa retratada, uma funcionária como Jane ter algum nível de saúde mental? Porque se a saúde mental depende apenas ou fortemente  do indivíduo, então cabe somente a ele buscar maneiras de se "blindar emocionalmente" de tal toxicidade e se sentir bem apesar de todos os abusos e opressões. A grande questão é que a saúde mental não depende apenas do esforço e da força de vontade do indivíduo, estando fortemente relacionada ao ambiente em que este se encontra. Não é por outro motivo que o sofrimento psíquico (que eu jamais equivaleria à categoria de transtorno mental) provavelmente aumentou consideravelmente neste período de pandemia: porque somos seres relacionais e contextuais e o que acontece conosco e ao nosso redor (seja no ambiente de trabalho seja no mundo como um todo) influencia nossa subjetividade e, portanto, nossa saúde mental. Isto significa que é simplesmente inconcebível imaginar Jane mentalmente saudável em um ambiente tóxico como o que ela trabalha. 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Minha participação no Mad in Brasil Conversatórios: "Em defesa de uma neurociência crítica"

Ontem à noite tive à honra de participar do "Mad in Brasil Conversatórios", que foi transmitido pelo Youtube. Para quem não conhece o Mad in Brasil, trata-se da versão brasileira do site Mad in America, criado pelo jornalista norte-americano Robert Whitaker, autor, dentre outros, dos livros Mad in America (infelizmente não traduzido para o português) e Anatomia de uma epidemia: Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, lançado pela editora Fiocruz em 2017. Coordenado pelo Fernando Freitas e pelo Paulo Amarante, ambos ligados à Fiocruz, o Mad in Brasil tem o propósito de trazer discussões críticas especialmente sobre o campo da psiquiatria. De acordo com o site, o MIB tem a missão de ampliar e fortalecer o diálogo entre aqueles que querem "repensar o modelo biomédico de doença e construir um novo paradigma de assistência em saúde mental". E foi com esse objetivo que eles iniciaram, no Instagram, o projeto Conversatórios, que se propõe a dialogar com pesquisadores brasileiros sobre temas ligados ao campo da saúde mental. O primeiro participante, em Outubro de 2020, foi o Fernando Freitas, seguido pelo Paulo Amarante, pela psicóloga Luciana Jamillo e pelo psicólogo Rogério Giannini. Pois agora, no quinto Conversatório, foi a minha vez. O titulo que sugeri para este bate-papo foi "Em defesa de uma neurociência crítica", que não por acaso é o mesmo título de um dos capítulos centrais do meu livro Você não é seu cérebro! E outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema, que lancei em 2020. Caso tenha interesse, assista abaixo (ou diretamente no canal do Youtube do Mad in Brasil) a conversa que tive ontem com a Camila Motta, psicóloga e editora-assistente do MIB. Aproveito para agradecer ao psicólogo Lucas Gonçalves, também da equipe do site, pelo convite.
 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Meu novo livro: "Você não é seu cérebro! e outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema"

Quem me acompanha nas redes sociais (especialmente no Instagram) já sabe que em 2020 eu lancei, pela editora Appris, meu segundo livro, uma coletânea de ensaios intitulada Você não é seu cérebro! e outros ensaios sobre psicologia, neurociências e cinema. Na verdade, devido à pandemia eu não pude lançar presencialmente o livro: tive que cancelar todos os lançamentos programados e "lançá-lo" apenas virtualmente. Eu acabei também não escrevendo sobre o livro aqui no blog, o que faço somente agora, quase um ano depois dele ser oficialmente publicado. Antes tarde do que nunca, não é mesmo? Pois bem, o livro é composto por 35 ensaios escritos ao longo dos últimos 10 anos para este blog, e tratam de temas diversos relacionados aos campos da neurociência, psicologia cognitiva e inteligência artificial. Segue abaixo, como um aperitivo, a introdução do meu novo livro:

Todos os 35 ensaios que compõem este livro foram originalmente publicados, ao longo de vários anos, no meu blog Psicologia dos Psicólogos - o que pode levar o leitor a questionar os motivos pelos quais eu decidi publicar, na forma de livro, textos que já estão disponíveis na internet. E eu respondo. Um primeiro (e mais romântico) motivo é que eu sou um apaixonado por livros. Amo ler, amo cheiro de livro, amo visitar livrarias e sebos e, desde criança, eu busco nos livros - e sempre encontro - refúgio, paz, discernimento, informação e sabedoria. Um segundo motivo é que os textos que compõem este livro estão dispersos no blog, espalhados em meio a inúmeros outros textos sobre assuntos diversos. Na seleção dos textos para este livro, escolhi apenas ensaios relacionados às temáticas da neurociência, psicologia cognitiva e inteligência artificial e busquei organizá-los de forma que os textos dialoguem entre si. Por fim, publicar estes 35 ensaios na forma de livro me daria também a oportunidade de revisá-los, corrigí-los e, eventualmente, melhorá-los. No fim das contas alterei pouco dos textos originais mas acabei por incluir inúmeras notas com as referências que utilizei para escrevê-los - o que, na linguagem simplificada e direta de um blog, não faz muito sentido. 

Criado em 2008, logo após eu finalizar a graduação, o blog Psicologia dos Psicólogos - cujo nome foi inspirado em um livro homônimo do filósofo Hilton Japiassu - tem sido, desde o início, um espaço de compartilhamento de reflexões sobre meus temas de interesse, que foram se alterando ao longo do tempo. Inicialmente, utilizei o blog para compartilhar charges e cartuns relacionados ao universo da Psicologia; posteriormente comecei a escrever alguns posts curtos com indicações de livros e filmes; mais à frente, especialmente após 2012 - ano em que ingressei no mestrado - passei a escrever textos maiores e mais profundos sobre temas diversos, em especial sobre as questões que estudava na pós-graduação. Em 2014 finalizei o mestrado e decidi transformar minha dissertação em livro - meu primeiro livro, “O cérebro vai à escola”: aproximações entre neurociências e educação no Brasil, que foi publicado em 2016 pela Paco Editorial. Nesta obra, assim como em inúmeros textos do blog - alguns selecionados para o presente livro - eu analiso os discursos das (e sobre as) neurociências. 

Meu interesse, tanto no primeiro livro quanto agora, continua sendo entender e refletir sobre esses neurodiscursos que possuem, atualmente, grande visibilidade e legitimidade, embora muitas vezes caiam em perigosas e equivocadas formas de reducionismo. De uma forma mais profunda o meu objetivo é refletir acerca de nossa própria humanidade. As perguntas-chave, que guiam praticamente todos os ensaios incluídos neste livro são: quem (ou o que) somos nós? Somos os nossos cérebros? Ou será que somos nossos corpos? Ou nossas mentes? O que, afinal de contas, define nossa identidade? Não pretendo, e nem seria possível, chegar a uma resposta definitiva para tais perguntas, mas eu arrisco algumas respostas, a começar por aquela que dá título ao livro: não, você não é seu cérebro! Mas então quem é você, quem sou eu e quem somos nós? Venha comigo e me acompanhe nesta jornada em busca do entendimento do que somos - e do que não somos.

Gostaria de fazer aqui também algumas considerações sobre o visual do livro. Quando a editora me questionou como eu gostaria da capa, eu respondi que minha única exigência era não ter uma imagem de cérebro. Além de óbvio isto seria equivocado, haja vista que em vários momentos do livro eu crítico a utilização de imagens e pseudoexplicações cerebrais para vender neurocoisas. Mas que imagem, então, colocar? Eu sugeri a eles uma imagem abstrata que retratasse a ideia de que ser humano e ambiente se constituem e se entrecruzam numa rede de influências mútuas onde é quase impossível determinar onde começa um e termina o outro - uma das ideias centrais que eu defendo no livro. Depois de um tempo a editora me enviou esta capa com esta bela imagem abstrata colorida e eu amei (e aprovei) de imediato. A imagem da capa passa justamente a ideia de mistura entre o biológico e o cultural que eu queria passar com o conteúdo do livro. Enfim, ficou exatamente do jeito que eu gostaria que ficasse!

Caso tenha interesse em adquirir meu livro, que está disponível em versão impressa e também ebook, basta clicar aqui. E para ter acesso a uma amostra do livro, clique aqui

E segue abaixo um video no qual eu apresento o livro e algumas de suas discussões:

"Eu também faço parte dessa cidade!": sobre Pacarrete e o lugar da loucura

Baseado em fatos reais, "Pacarrete" - filme brasileiro dirigido por Allan Deberton - conta a história de uma mulher sexagenária, moradora da cidade de Russas, no Ceará, que sonha em apresentar para a população local um número de balé do espetáculo O lago dos cisnes. Professora e bailarina quando jovem, Pacarrete, como é chamada, mora com a irmã, também idosa, e cuida dela com muito zelo. Mas todo o tempo que pode, se dedica a sonhar com sua apresentação de balé e a se preparar para ela. A grande questão do filme, e da história real que o inspirou, é que Pacarrete é louca - ou assim é vista pela população de Russas. Sabe aquele "doidinho" que todo mundo conhece, que faz e fala um monte de coisas (aparentemente) sem sentido, e que já faz parte da vida da cidade? Pois Pacarrete é justamente a "doidinha da cidade", aquela pessoa que todo mundo conhece e que, em geral, é motivo de piada por sua forma exótica (e por vezes inconveniente) de falar e se comportar. Algumas pessoas podem enxergar a maneira como Pacarrete é tratada por parte da população como uma forma de exclusão - e eu não me oporia totalmente a esta visão. No entanto vejo que Pacarrete está, de alguma forma, incluída em sua cidade. Muito comumente pessoas como ela são (e foram) excluídas da vida social e trancadas, e dopadas, e maltratadas, em hospitais psiquiátricos. Não Pacarrete. Embora ela seja motivo de piadas e tenha sua apresentação de balé constantemente negada pela prefeitura, ela faz parte da vida social de Russas. Como ela própria afirma em certo momento para a funcionária da prefeitura: "Eu também faço parte dessa cidade!". E de fato Pacarrete pertence à cidade, assim como todos os chamados "loucos" também deveriam pertencer. Ninguém deveria ser excluído e afastado da vida social por não se encaixar nos tais "padrões de normalidade". Esta é, para mim, uma das muitas lições deste sensível e magnífico filme.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Sem razões para viver e para morrer: uma resenha do livro "Serotonina"

"É um comprimido pequeno, branco, oval, divisível". Assim tem início "Serotonina", último romance do escritor francês Michel Houellebecq - e o primeiro dele que eu li. O que mais me chamou a atenção quando vi a capa do livro em uma livraria virtual foi o título, que remete a um neurotransmissor cujo déficit, segundo os psiquiatras biológicos, estaria relacionado com os sintomas depressivos - alguns chegam a dizer, equivocadamente, que tal déficit causaria a depressão - e cujo equilíbrio é (ou seria) o foco dos antidepressivos, justamente a categoria de remédios consumida pelo protagonista e narrador deste livro sensacional. Florent-Claude Labrouste é um agrônomo de 46 anos, solitário e melancólico, que decide em certo momento procurar um psiquiatra e recebe a prescrição de um antidepressivo chamado Captorix. A grande questão é que um dos efeitos colaterais mais comuns desta medicação - e dos antidepressivos em geral - é a baixa de libido, efeito que Flourent sente com muito pesar. Sexualmente ativo por grande parte de sua vida, Flourent se vê, repentinamente, sem qualquer desejo sexual - e também sem qualquer outro desejo. Com tal indiferença, Flourent decide vagar pela França, de hotel em hotel, à procura de um amigo da época da faculdade e de alguns antigos amores - como que se despedindo deles e do mundo. Neste percurso nostálgico e melancólico, que faz de Serotonina uma espécie de "road book" deprê, o protagonista se envolve em situações variadas - inclusive, numa cena fantástica, se vê em meio a um radical protesto de produtores de leite no interior da França - e, durante todo o tempo reflete sobre seu passado e seus "fracassos", especialmente os amorosos. Flourent também reflete sobre uma infinidade de questões políticas e econômicas europeias e ainda tece interessantes considerações sobre a psiquiatria e os antidepressivos. Em certo momento, ao refletir sobre as funções biológicas da serotonina, afirma: "a conclusão a que pouco a pouco se chega é que a ciência médica continua confusa e aproximativa nessas questões, e que os antidepressivos fazem parte do numeroso grupo de medicamentos que funcionam (ou não) sem que se saiba exatamente por quê". Mais à frente, ao refletir sobre os efeitos do Captorix, Flourent afirma que tal remédio "não oferece qualquer forma de felicidade, nem sequer um alívio real, sua ação é de outro tipo: ao transformar a vida numa sucessão de formalidades, permite ir tocando o barco. Portanto, ajuda os homens a viverem, ou pelo menos a não morrerem - por um tempo". Enfim, trata-se de um belíssimo e melancólico livro que discute com muita sensibilidade temas complexos como a felicidade, o amor e a solidão.

Trecho do livro: "Agora eu era um homem ocidental de meia-idade, a salvo de passar necessidades por alguns anos, sem parentes nem amigos, carente de projetos pessoais tanto quanto de interesses verdadeiros, profundamente decepcionado com sua vida profissional anterior, e que, no âmbito sentimental, tinha vivido experiências diversificadas cujo denominador comum era a interrupção; carente, no fundo, tanto de razões para viver como de razões para morrer. Podia aproveitar para começar de novo, para me “reinventar”, como dizem comicamente nos programas de televisão e nos artigos de psicologia humana que saem em revistas especializadas; e também podia me entregar a uma inércia letárgica".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Em defesa da empatia: uma resenha da série "Despachos de outro lugar"

Para quem está à procura de uma série interessante para ver, gostaria de recomendar entusiasticamente a série Despachos de outro lugar (Dispaches from elsewhere), produzida pelo canal AMC e distribuída no Brasil pela Amazon Prime. Trata-se de uma das séries mais inovadoras, criativas, surpreendentes e sensíveis que eu já vi. Acho muito difícil resumir a história da série mas é possível dizer que ela é baseada em um experimento artístico-social real criado pelo artista norte-americano Jeff Hull, experimento esse retratado anteriormente pelo documentário The Institute, lançado em 2012 (que eu não vi). Criada pelo ator e roteirista Jason Siegel (o Marshall da série How I meet your mother), a série acompanha quatro dos participantes deste experimento: Peter (interpretado pelo próprio Siegel), Simone (interpretada pela atriz Eve Lindley), Fredwyyn (interpretado pelo ator e cantor Andre 3000, da banda Outkast) e Janice (interpretada pela veterana atriz Sally Field, a "mãe" de Forrest Gump). Dentre todos esses belíssimos e complexos personagens destaco Simone, uma bacharel em artes trans interpretada por uma atriz de fato trans - o que é raro mas fundamental. Trata-se da mais bela representação de uma mulher trans que eu já vi na televisão ou no cinema. Muito embora a questão trans não seja colocada de lado, a personagem é retratada, acima de tudo, como uma mulher - que é trans mas não se resume a essa identidade. É simplesmente linda e emocionante a forma como ela, e todos os demais personagens, são retratados. Sem dar nenhum spoiler (e o ideal é ver a série "às cegas", sem saber muito a respeito, como eu fiz), é possível dizer que a série faz uma sensível, bela e surpreendente defesa da empatia, da solidariedade e da colaboração entre as pessoas. Uma pérola!

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Em trânsito: uma resenha do livro "Um apartamento em Urano: crônicas da travessia"

O livro "Um apartamento em Urano: crônicas da travessia", do filósofo Paul B. Preciado é, como diria meu pai, uma doideira - mas uma doideira boa. Trata-se de uma obra questionadora e potente, não indicada (ou, pelo contrário, fortemente indicada) para pessoas de mente estreita. Composta por uma bela introdução e mais 73 pequenos ensaios escritos entre 2010 e 2018 para o jornal francês La Libération e para outras mídias europeias, esta obra trata de variadas questões. Ao longo de suas mais de 300 páginas, Preciado discorre sobre política, viagens, literatura, cinema, educação, ciência, tecnologias, relações amorosas, dentre muitos outros temas. Mas o ponto forte do livro - e de toda a obra do autor - são suas reflexões sobre gênero e sexualidade. Eu destacaria os ensaios em que o autor narra o seu próprio processo de transição, no qual deixou para trás a identidade de Beatriz para se tornar Paul Beatriz Preciado, nome que condensa as identidades masculina e feminina e simboliza, assim, toda sua luta pela superação do binarismo de gênero - e mais profundamente, de todos os binarismos. Como afirma logo na introdução, "Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês". Preciado não se encaixa e não quer se encaixar em nenhum dos modelos estabelecidos pela sociedade - e convoca seus leitores a não se encaixarem também. Apesar de não apreciar rótulos, o autor se define como um "migrante de gênero", estabelecendo, assim, um interessante paralelo entre sua situação (e das pessoas trans e queer de uma forma geral) e a situação dos imigrantes e refugiados. Nos dois casos as pessoas se encontram sem lugar, em trânsito entre uma condição anterior e uma nova - são, na linguagem do autor, "cidadanias em transição". Enfim, trata-se de um livro sensacional, impactante e necessário, mas cujas ideias dificilmente serão compreendidas, aceitas e colocadas em prática em nossa sociedade - pelo menos por enquanto. Como bem afirmou a escritora Virginie Despentes, no prefácio, dirigindo à Preciado, "você escreve para um tempo que ainda não chegou". Será que um dia chegará?

Trecho do livro: "O que trans e migrantes estão solicitando ao pedir mudança de gênero ou asilo são as próteses administrativas (nomes, direitos de residência, documentos, passaportes…) e bioculturais (alimentos, medicamentos ou compostos bioquímicos, refúgio, linguagem, autorrepresentação…) necessárias para que possam se construir como ficções políticas vivas. A chamada “crise” dos refugiados ou o suposto “problema” das pessoas trans não serão resolvidos com a construção de campos de refugiados ou de clínicas de redesignação sexual. São os sistemas de produção de verdade, de cidadania política e as tecnologias de governo do Estado-nação, assim como a epistemologia do sexo-gênero binário que estão em crise. Portanto, é o espaço político como um todo que deve entrar em transição".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Sobre a morte e o morrer: uma breve resenha do livro "A morte de Ivan Ilitch"

Nesta pequena obra-prima do escritor russo Lev Tolstói, publicada originalmente em 1886, acompanhamos os últimos momentos do protagonista, Ivan Ilitch. Juiz renomado e membro respeitado da elite russa, Ilitch tinha uma vida confortável e invejável, até desenvolver uma terrível e dolorosa doença, não diagnosticada, aos quarenta e poucos anos. O enredo do livro é incrivelmente simples e universal - "um homem desenvolve uma doença terminal" - mas a força da obra de Tolstói não se encontra no enredo em si e sim na forma como o autor narra o desespero do protagonista ao perceber que sua vida se aproxima do fim. Ilitch, como todos nós, seguia em seu dia-a-dia, imerso em questões profissionais e familiares, sem se dar conta da fragilidade de sua vida e da possibilidade da morte. É claro que ele sabia que os seres humanos são seres mortais, mas a morte, para ele, era algo abstrato, distante, teórico. Não era algo que poderia lhe acometer - e sim ao outro, sempre e somente ao outro. Até que uma doença emerge dentro do seu corpo, gerando um incômodo nos primeiros momentos e dores terríveis e insuportáveis posteriormente. Ilitch se dá conta, então, da realidade da dor e da proximidade da morte. E então começa a questionar seu passado e suas escolhas assim como o próprio sentido da vida - e também da morte. "Por quê, por que todo esse horror?", questiona Ilitch. E ele se choca e se ressente também com a forma como as pessoas ao seu redor, em especial seus familiares, lidam com sua decadência: ao invés de aceitarem sua morte iminente e o confortarem, ficam todo o tempo instilando esperança de cura, mesmo quando já não há mais esperança - Ilitch chama essa forma evasiva de lidar com a morte de "a mentira". Enfim, nesta pequena pérola da literatura russa novecentista - de apenas 70 páginas - Tolstói trata de uma questão existencial central da vida humana que é o medo da morte. Leitura fundamental!

Trecho do livro: "O sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira por algum motivo aceita por todos, no sentido de que ele estava apenas doente e não moribundo, e que só devia ficar tranquilo e tratar-se, para que sucedesse algo muito bom. Mas ele sabia que, por mais coisas que fizessem, nada resultaria disso, além de sofrimentos ainda mais penosos e morte. E esta mentira atormentava-o, atormentava-o o fato de que não quisessem confessar aquilo que todos sabiam, ele mesmo inclusive, mas procurassem mentir perante ele sobre a sua terrível situação, e obrigassem-no a tomar também parte naquela mentira".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Muito além da realidade: uma breve análise da série "Bom dia, Verônica"

Depois de ler Uma mulher no escuro, do Raphael Montes (que gostei muito), decidi assistir a série Bom dia, Verônica, que é baseada em um livro do autor com a criminóloga Ilana Casoy. Como comentei nas redes sociais, achei o primeiro episódio sofrível, mas segui adiante e assisti toda a primeira temporada. E de fato minha avaliação da série melhorou um pouco: foi de terrível para ruim. Primeiro vamos aos pontos positivos: a trama é instigante, a fotografia é bonita (lembra a da série CSI) e o final traz um gancho bem sólido para uma segunda temporada. Mas os pontos negativos colocam tudo isso por terra: o roteiro é muito fraco, os diálogos são sofríveis e terrivelmente didáticos, os personagens são rasos e as atuações absurdamente artificiais - assim como os cenários, americanizados demais. Os atores bem que tentam dar algum peso às atuações mas jamais conseguem sair da caricatura - eu não os culparia, contudo, e sim o roteiro (exceto no caso da inexpressiva atriz principal). E isto me traz a um outro ponto negativo: a série se vende como uma obra de denúncia dos abusos e violências contra as mulheres, mas eu me questiono até que ponto retratar uma situação tão extrema de fato contribui para a causa. Se retratasse um marido babaca, opressor e violento como tantos que existem por aí, certamente a série estaria mais próxima da realidade que pretendia representar. Mas a série decidiu retratar um sujeito que não é "apenas" um marido opressor e sim um psicopata serial killer que parece ter saído do filme Jogos mortais - e isto deixa a trama pouco crível e distante da realidade. Outro ponto terrivelmente negativo está na forma como a narrativa vincula o comportamento do assassino a certos rituais de "magia negra" que só estigmatizam ainda mais as já estigmatizadas religiões de matriz africana. E o que falar do discurso - totalmente afinado com o bolsonarismo - de que se a justiça não funciona e as instituições estão corrompidas o jeito é fazer justiça com as próprias mãos? Essa representação/defesa do justiçamento não acrescenta em nada às discussões que a série pretende trazer. Enfim, uma série ruim, narrativa e eticamente. Na minha opinião, claro...

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

domingo, 3 de janeiro de 2021

Mundos irreconciliáveis: uma resenha do livro "Solução de dois Estados"

O livro "Solução de dois Estados", do escritor brasileiro Michel Laub, é descrito na contracapa como "um romance sobre ódio, perdão e os modos como nossa intimidade é definida pela política e pela barbárie do nosso tempo". No entanto, penso que esta descrição não dá totalmente conta da complexidade desta obra. Pra começo de conversa, "Solução de dois Estados" não possui a estrutura convencional de um romance, com uma história sendo contada por um narrador. O que temos são depoimentos contraditórios de dois irmãos (Raquel e Alexandre Tommazzi) concedidos a uma documentarista alemã (Brenda) sobre um episódio de violência envolvendo Raquel. Cabe esclarecer que Raquel é uma artista performática obesa que usa de sua arte para questionar padrões estéticos e violências sofridas por pessoas pessoas como ela própria e Alexandre é um empresário sócio-fundador de uma grande rede de academias de ginástica chamada Império - que possui associações com pastores pentecostais e é acusada por Raquel de ser uma forma de milícia. O livro é estruturado como uma combinação de transcrições (de materiais pré-editados, materiais brutos e materiais extras) que seriam utilizados na realização de um documentário sobre ódio e violência intitulado "Solução de dois Estados?". Grande parte do que lemos são, portanto, trechos de entrevistas com Raquel e Alexandre feitas por Brenda sobre o passado da família Tommazzi, sobre o Império, e sobre a performance de Raquel que culminou em um ato de violência contra ela própria. O que achei mais interessante no livro é que ele traz pontos de vistas radicalmente diferentes sobre os mesmos acontecimentos, apontando, com isso, para a impossibilidade de chegarmos a um entendimento único sobre o presente e o passado. Raquel e Alexandre possuem visões de mundo tão diferentes - como bolsonaristas e antibolsonaristas - que é como se habitassem mundos diferentes. O título do livro dialoga, no meu entender, com a ideia de que a única solução para a coexistência destes dois mundos seria a constituição de dois Estados diferentes. Mas para além desses temas, vejo o livro como uma importante e pertinente análise sobre o valor e o sentido da arte. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Sabe qual o problema da ironia? É que ela serve pra ganhar dinheiro, prestígio, o que você quiser, mas nunca vai servir para falar de ódio. O ódio é sempre literal".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Melhor filme de 2020: "O som do silêncio"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor filme de 2020 vai para... "O som do silêncio". Dentre os inúmeros filmes que assisti esse ano - e eu assisti muitos - penso que este filme, além de todo o primor técnico e artístico, condensa e simboliza muito bem o momento em que vivemos. Lançado em agosto pela Prime Video, este filme conta a história de um baterista de uma banda de heavy metal que perde a audição e busca apoio em uma comunidade de surdos nos Estados Unidos. Um dos aspectos técnicos mais notáveis do filme é que ele leva o espectador a vivenciar a experiência do sujeito com os sons - e também com o silêncio (de forma semelhante ao que foi feito, com o sentido da visão, no filme O escafandro e a borboleta). Eu destacaria ainda a atuação brilhante - ao mesmo tempo intensa e delicada - do ator anglo-paquistanês Riz Ahmed, que merece todos os prêmios possíveis. Acho bastante interessante também a discussão trazida pelo filme sobre como a comunidade surda (ou parte dela) enxerga os tratamentos ou curas para a surdez. Mas o motivo que considero este o filme símbolo deste momento é que ele traz uma narrativa sobre um sujeito que vive uma transformação radical e avassaladora em sua vida (um músico que deixa de escutar, imaginem só!) e que passa a ter, então, duas escolhas para lidar com esta nova situação: tentar (em vão) retornar à sua vida anterior - o que ele faz inicialmente - ou aceitar que a vida nunca mais será a mesma. De certa forma, este é o dilema que cada um de nós teve de lidar em 2020: sonhar com o "velho normal" e fingir que as coisas continuam iguais (como fizeram os "negacionistas") ou então aceitar o tal "novo normal" e tocar a vida tendo em vista que o mundo se alterou provavelmente de forma irreversível. "O som do silêncio" coloca o protagonista em situação análoga à que vivemos neste ano maluco, enquanto indivíduos e enquanto sociedade - e por isso, e também pelo conjunto da obra, considero este o melhor filme de 2020.

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

Melhor livro de não-ficção de 2020: "Talvez você deva conversar com alguém"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor livro de não-ficção de 2020 vai para... "Talvez você deva conversar com alguém", da psicoterapeuta norte-americana Lori Gottlieb. Fiquei curioso para ler esse livro quando vi, na contracapa, uma recomendação do psiquiatra e psicoterapeuta Irvin Yalom, autor que admiro muito e que consegue, como poucos, descrever a complexidade do encontro terapêutico (algo que os livros técnicos raramente conseguem). Pois Lori também é muitíssimo bem-sucedida nesta empreitada. Ouso dizer que ela supera Yalom, pois além de descrever com enorme verossimilhança e sensibilidade alguns atendimentos que realizou ao longo dos anos, Lori ainda conta a sua própria história, com uma sinceridade admirável, por vezes rasgante. Nunca antes tinha lido um livro no qual o/a terapeuta expõe suas dores, seus medos, suas inseguranças - e também suas alegrias e forças - com tanta verdade e sensibilidade como neste livro, cuja narrativa mescla tocantes histórias de pacientes atendidos por Lori com histórias dela própria, muitas passadas ou relatadas no consultório de seu terapeuta. Vemos, assim, os dois lados da moeda: a Lori terapeuta e a Lori paciente. Mas curiosamente, ao expor estas duas facetas, ela consegue um feito admirável: ao mesmo tempo em que mostra a realidade e os bastidores de uma terapia ela consegue demonstrar também o sentido e o valor do processo terapêutico. Ao retirá-lo da torre de marfim, mostrando que terapeutas também são pessoas, ela acaba por mostrar que está justamente aí - no fato de todos serem pessoas - a força do processo, que continua fazendo sentido, apesar de todos os tratamentos farmacológicos disponíveis. Acho bastante difícil resumir esse livro, que traz tantos ensinamentos, tanta verdade e tanta esperança (sem ser piegas e sem flertar com a autoajuda) que eu não tenho como não recomendá-lo para todo mundo, especialmente para psicólogos. Sem dúvida o melhor livro que li esse ano e um dos melhores sobre psicoterapia que já li na vida - muito embora rotulá-lo como um "livro de psicoterapia" seja extremamente equivocado e reducionista: trata-se de um livro sobre a vida e seus enormes e eternos desafios.

Trecho do livro: "Obviamente, os terapeutas lidam com os desafios diários existenciais, como qualquer pessoa. Essa familiaridade, de fato, está na raiz da conexão forjada por nós com estranhos que nos confiam suas mais delicadas histórias e segredos. Nossa formação nos ensinou teorias, ferramentas e técnicas, mas pulsando sob nossa competência adquirida a duras penas está o fato de sabermos o quanto é difícil ser um indivíduo. O que equivale a dizer: continuamos indo trabalhar diariamente sendo nós mesmos, com nosso próprio conjunto de vulnerabilidades, nossos próprios anseios e inseguranças, bem como nossas próprias histórias. De todas as minhas credenciais como terapeuta, a mais significativa é eu ser membro de carteirinha da raça humana".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Racismo sem fim: uma resenha do livro "Eu, Tibuba: bruxa negra de Salem"

Acabei de ler "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", da escritora francesa Maryse Condé (ed. Rosa dos tempos, 2020). E gostei muitíssimo. A obra reconstitui ficcionalmente a trajetória de Tituba, mulher negra escravizada, nascida na Ilha de Barbados e transportada posteriormente aos Estados Unidos, e que foi uma das mulheres julgadas como bruxas nos famosos julgamentos de Salem, ocorridos em 1692 - e que inspiraram o famoso filme Bruxas de Salem, que traz Tituba como uma das personagens secundárias. A ideia da autora foi dar voz à esta personagem marginalizada e esquecida pela história, narrando em primeira pessoa não apenas os acontecimentos de Salem mas também sua vida pregressa e subsequente, desde sua concepção (consequência de um estupro) até sua morte. O que achei mais interessante (e triste) no livro é a forma como a autora, negra, retrata o absurdo que foi a escravidão. Aliás, eu acho sempre chocante lembrar como até bem pouco tempo atrás alguns seres humanos se julgaram superiores ao ponto de se considerarem donos de outros seres humanos. "Eu, Tituba" narra em detalhes toda a humilhação e violência sofridas pela personagem e por outras pessoas escravizadas, expondo de forma terrivelmente dolorosa o racismo dominante naquele momento - e que infelizmente persiste na atualidade. Eu destacaria também a forma como a autora retrata as relações de Tituba com os mortos e com as plantas e os animais, relações estas que eram frequentemente encaradas pelos brancos como provas de sua atividade como bruxa. O livro trata ainda de muitos outros temas e questões, sempre de uma forma sensível e poética. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Eu urrava, e, quanto mais eu urrava, mais eu tinha o desejo de urrar. De urrar meu sofrimento, minha revolta, minha raiva impotente. Que mundo era aquele que tinha feito de mim uma escravizada, uma órfã, uma pária? Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam minha religião, num país feio, nada agradável?"

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan