sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Em trânsito: uma resenha do livro "Um apartamento em Urano: crônicas da travessia"

O livro "Um apartamento em Urano: crônicas da travessia", do filósofo Paul B. Preciado é, como diria meu pai, uma doideira - mas uma doideira boa. Trata-se de uma obra questionadora e potente, não indicada (ou, pelo contrário, fortemente indicada) para pessoas de mente estreita. Composta por uma bela introdução e mais 73 pequenos ensaios escritos entre 2010 e 2018 para o jornal francês La Libération e para outras mídias europeias, esta obra trata de variadas questões. Ao longo de suas mais de 300 páginas, Preciado discorre sobre política, viagens, literatura, cinema, educação, ciência, tecnologias, relações amorosas, dentre muitos outros temas. Mas o ponto forte do livro - e de toda a obra do autor - são suas reflexões sobre gênero e sexualidade. Eu destacaria os ensaios em que o autor narra o seu próprio processo de transição, no qual deixou para trás a identidade de Beatriz para se tornar Paul Beatriz Preciado, nome que condensa as identidades masculina e feminina e simboliza, assim, toda sua luta pela superação do binarismo de gênero - e mais profundamente, de todos os binarismos. Como afirma logo na introdução, "Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês". Preciado não se encaixa e não quer se encaixar em nenhum dos modelos estabelecidos pela sociedade - e convoca seus leitores a não se encaixarem também. Apesar de não apreciar rótulos, o autor se define como um "migrante de gênero", estabelecendo, assim, um interessante paralelo entre sua situação (e das pessoas trans e queer de uma forma geral) e a situação dos imigrantes e refugiados. Nos dois casos as pessoas se encontram sem lugar, em trânsito entre uma condição anterior e uma nova - são, na linguagem do autor, "cidadanias em transição". Enfim, trata-se de um livro sensacional, impactante e necessário, mas cujas ideias dificilmente serão compreendidas, aceitas e colocadas em prática em nossa sociedade - pelo menos por enquanto. Como bem afirmou a escritora Virginie Despentes, no prefácio, dirigindo à Preciado, "você escreve para um tempo que ainda não chegou". Será que um dia chegará?

Trecho do livro: "O que trans e migrantes estão solicitando ao pedir mudança de gênero ou asilo são as próteses administrativas (nomes, direitos de residência, documentos, passaportes…) e bioculturais (alimentos, medicamentos ou compostos bioquímicos, refúgio, linguagem, autorrepresentação…) necessárias para que possam se construir como ficções políticas vivas. A chamada “crise” dos refugiados ou o suposto “problema” das pessoas trans não serão resolvidos com a construção de campos de refugiados ou de clínicas de redesignação sexual. São os sistemas de produção de verdade, de cidadania política e as tecnologias de governo do Estado-nação, assim como a epistemologia do sexo-gênero binário que estão em crise. Portanto, é o espaço político como um todo que deve entrar em transição".

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan
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