sexta-feira, 14 de junho de 2019

Precisamos falar sobre... coaching

A "indústria do coaching" está mais forte do que nunca. De acordo com uma reportagem da revista Exame além de movimentar, só nos Estados Unidos, mais de 2,3 bilhões de dólares por ano, o coaching tem atraído um número crescente de profissionais. Estima-se que este mercado conte, atualmente, com cerca de 53 mil profissionais em todo o mundo, 4 mil apenas na América Latina. No Brasil não se sabe ao certo o número de "coaches" inseridos no mercado, haja vista a multiplicação descontrolada de cursos de formação, mas acredita-se que tem crescido substancialmente nos últimos anos - e ainda que a quantidade de coaches esteja muito distante, por exemplo, do número de psicólogos (342 mil) e médicos (450 mil) que atuam no país, a atividade tem obtido uma visibilidade crescente, o que contribui tanto  para o aumento da demanda pelos serviços de coaching quanto para a multiplicação de críticas e questionamentos. A novela da Rede Globo O outro lado do Paraíso, por exemplo, fez um merchandising descarado da atividade, bancado pelo Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), e que acabou por tornar a prática ainda mais conhecida no país - mas também rendeu uma nota crítica do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e uma denúncia no Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar). Posteriormente o CFP publicou uma nota orientativa sobre a prática do coaching - afirmando, dentre outras coisas que, "qualquer profissional que não esteja inscrito no CRP, e que se utilizar de métodos e técnicas privativas do psicólogo durante sessões de coaching, ou que desenvolva, de alguma forma, atribuições restritas à Psicologia, estará incorrendo em exercício ilegal da profissão" - e um cidadão sergipano encaminhou à Câmara Federal uma ideia legislativa (absurda, na minha visão) que criminaliza a atividade de coaching - de acordo com ele, “se tornada lei, [a proposta] não permitirá o charlatanismo de muitos autointitulados formados até mesmo sem diploma válido. Não permitindo propagandas enganosas como 'reprogramação do DNA' e 'cura quântica', que desrespeitam o trabalho científico e metódico de terapeutas e outros profissionais das mais variadas áreas". Por outro lado, diversas instituições de coaching e os próprios coaches tem vindo a público defender a seriedade da prática e apontar para as diferenças entre o coaching e outras atividades de apoio e orientação. Ao que tudo indica, esta controvérsia está longe de chegar ao fim.

Mas afinal de contas, o que é esse tal "coaching"? Comecemos pela palavra, coach, que em inglês, significa originalmente carruagem - e que era usada também para se referir ao condutor da carruagem. Posteriormente a palavra foi usada para designar, no contexto universitário, o professor que exercia uma função de tutoria com seus estudantes. Mais a frente, a palavra passou a caracterizar a figura do treinador ou técnico esportivo. No entanto, em sua conotação atual, a expressão "coaching" superou em muito todas essas acepções, passando a designar qualquer atividade de orientação no qual uma pessoa (o "coach") ajuda outra (o "coachee") a obter determinado desempenho ou resultado, pessoal ou profissional. Como os "coaches" repetem à exaustão, o objetivo desse processo é "ajudar a pessoa a sair do ponto A e ir até o ponto B", tal como fazia o condutor de uma carruagem. Inicialmente, o coaching esteve fortemente ligado ao contexto empresarial/corporativo, no entanto, atualmente, a atividade se expandiu para muito além deste universo - o IBC, por exemplo, aponta para 16 tipos de coaching, dos quais destacarei apenas alguns: coaching corporativo, coaching familiar, coaching de relacionamento, coaching espiritual, coaching financeiro, coaching esportivo, coaching nutricional, coaching de liderança, etc. Em comum, todos esses tipos de coaching teriam como objetivo proporcionar aos clientes benefícios amplos como o "desenvolvimento pessoal e profissional", a "elevação da felicidade e realização", a "conquista do autoconhecimento e autodesenvolvimento", a "maximização da performance e dos resultados", o "aumento da produtividade" e muito mais. É possível observar nestes e em outros supostos benefícios da atividade um foco muito grande no "desempenho", na "produtividade", na "performance" e no "sucesso" do sujeito, linguagem que se relaciona fortemente ao contexto corporativo em que a prática teve origem.

Uma grande preocupação das instituições de coaching e dos próprios coaches está em diferenciar a prática de outras atividades de apoio e orientação, como a psicoterapia. Analisemos, por exemplo, a tabela ao lado extraída do livro Coaching executivo, escrito pela coach Rosa Krausz (para ampliar a tabela clique na imagem). Nela é possível observar a diferença apresentada pela autora, e repetida por muitos outros autores, entre a atividade de coaching e outras atividades como o aconselhamento, a mentoria, a consultoria, a terapia e o treinamento - eu focarei minha análise apenas na diferença apontada entre coaching e terapia. Pois bem, na visão da autora a terapia teria como "abrangência" as questões de saúde emocional dos clientes ou pacientes, como "tempo" o passado e como "resultado" o alívio ou a eliminação das causas do mal-estar e das dificuldades sentidas; já o coaching teria como "abrangência" as questões de desempenho, desafios e mudanças específicas dos coachees, como "tempo" o presente e o futuro e como "resultado" a criação de "opções construtivas, viáveis e informadas" que auxiliem o indivíduo a obter determinados resultados - o que significa dizer que o coaching não pretende tratar problemas de saúde mental mas levar o sujeito para além de onde ele se encontrava  anteriormente. Como qualquer psicoterapeuta pode atestar, essa visão da autora está absolutamente equivocada. A atividade de psicoterapia, de uma forma geral, não tem como foco simplesmente o passado, mas também o presente e o futuro imaginado ou desejado pelo paciente. É claro que compreender o passado do sujeito é fundamental, para qualquer abordagem psicoterapêutica, mas isto não significa que o passado seja o foco ou que o presente e o futuro não sejam e não devam ser levados em consideração. Outro equívoco está em dizer que o resultado esperado de uma psicoterapia é o alívio ou a eliminação das causas do mal-estar do paciente. E o motivo é que simplesmente não é possível aliviar ou eliminar as causas de determinado problema. Se uma pessoa foi abusada na infância, por exemplo, e se sente mal com isso no presente, como poderíamos eliminar essa causa? Isso não é possível, pois causas não podem ser eliminadas, apenas "trabalhadas" terapeuticamente. O máximo que podemos fazer é ajudar nosso paciente a encarar o seu passado de uma outra maneira, ressignificando determinados acontecimentos ou vivências, e a agir, no presente, de uma forma diferente. De uma forma bem geral - sem levar em contas as especificidades das inúmeras abordagens psicoterapêuticas - é possível dizer que a psicoterapia tem como objetivo ajudar o paciente a superar ou lidar melhor com seus problemas atuais. Uma importante diferença da proposta do coaching, nesse sentido, é que, em geral, os psicoterapeutas não trabalham com a lógica e a linguagem corporativa. Isto significa que dificilmente um terapeuta atuará tendo como foco e objetivo o "desempenho", a "produtividade", a "performance" e o "sucesso" de seu paciente ou cliente. Certamente, algumas abordagens terapêuticas - como a Terapia Cognitivo-Comportamental - atuam de maneira mais focada e com metas ou objetivos terapêuticos mais claros, no entanto, mesmo em tais abordagens a intenção é proporcionar maior bem-estar (ou menor mal-estar) ao paciente - e nunca, ou muito raramente, maior "produtividade" ou "sucesso". Esse foco e essa linguagem empresarial, em geral, não estão presentes na psicoterapia.

Uma outra diferença entre as duas práticas é que a psicoterapia, ao menos quando praticada por um psicólogo (e cabe salientar que não se trata de uma prática exclusiva deste profissional), está sujeita a fiscalização pelo Conselho Federal de Psicologia e os profissionais podem receber sanções por comportamento equivocado ou anti-ético. Já o coaching não é uma profissão regulamentada, como a psicologia e a medicina, e não possui, portanto, órgãos ou conselhos de fiscalização profissional, e isso certamente favorece atuações equivocadas e pouco embasadas. Isto para não falar dos cursos de formação de coaches, comumente de curta duração, que se multiplicam pelo país sem qualquer controle. Também devido à falta de regulamentação, não há qualquer fiscalização relativa à qualidade de tais cursos, o que igualmente favorece a inserção no mercado de profisionais pouco e mal capacitados e com atuações no mínimo questionáveis. É claro que a formação na área da psicologia, por exemplo, está longe, muito longe, de ser perfeita - eu cheguei a escrever um artigo científico inteiramente dedicado a essa questão - e a atuação profissional de inúmeros psicólogos também deixa muito a desejar, mas a existência de um conselho profissional dedicado a orientar, disciplinar e fiscalizar nossa prática profissional, além de um código de ética unificado, minimiza muito tais problemas - sem o CFP a psicologia estaria ao "deus-dará", como ocorre atualmente com o coaching. Uma saída para esta situação, contrária à absurda proposta de criminalização encaminhada pelo cidadão sergipano, passa pela regulamentação da profissão de coaching. Criminalizar a atividade só fará com que as pessoas que atuam como coaches se tornem, de uma hora para outra, criminosas - e encham ainda mais nossas já cheias e desumanas prisões. Não consigo ver vantagem alguma nisso. Muito mais sensato seria regulamentar o coaching, criando regras bem claras de atuação e também mecanismos de fiscalização da formação e da prática. Como no caso das drogas, penso que não faz sentido lutar para acabar com o coaching. Mesmo que existam incontáveis "abusos" a melhor coisa a fazer é permitir a atuação e regulá-la. Criminalizar - o coaching e o uso de drogas - só piora qualquer situação.

Na minha visão, um grande problema do coaching - mas não só do coaching - é a colcha-de-retalho téorico-prática que embasa a atuação dos profissionais. Como aponta o site do IBC, "Coaching é um processo de desenvolvimento humano, pautado em diversas ciências como: Psicologia, Sociologia, Neurociências, Programação Neurolinguística, e que usa de técnicas da Administração de Empresas, Gestão de Pessoas e do universo dos esportes para apoiar pessoas e empresas no alcance de metas, no desenvolvimento acelerado e, em sua evolução contínua". A ideia parece ser buscar em cada uma dessas abordagens, teorias ou práticas alguns conhecimentos e atividades que possam ser úteis, bater tudo isso no liquidificador e servir ao cliente. O coaching, nesse sentido, se parece muito com a chamada Programação Neurolinguística (PNL), que o IBC afirma "pautar" a atividade. Se você nunca ouviu falar dessa abordagem - ou já ouviu falar mas não entende bem do que se trata - eu explico. A PNL foi desenvolvida na década de 1970, nos Estados Unidos, pelo analista de sistemas Richard Bandler juntamente com  o linguista John Grinder como  uma abordagem  pragmática, composta por um conjunto de técnicas advindas  de  campos diversos,  voltada para a melhoria da comunicação e da aprendizagem e, logo, para o desenvolvimento pessoal. A expressão  Programação Neuroliguistica se refere a supostas ligações entre a experiência interna de  uma pessoa (neuro), a sua linguagem (linguística) e seus padrões de comportamento (programação) e não teria conexão direta com as neurociências e com a computação, embora estas  disciplinas interessassem aos  seus  desenvolvedores. A criação  da PNL  foi influenciada por inúmeras teorias ou abordagens, como a epistemologia  cibernética de Gregory Bateson, a gramática transformacional de Noam  Chomsky, a gestalt-terapia de Fritz Pearls, a abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers,  a hipnoterapia Ericksoniana, a psicologia comportamental, dentre outras. No  entanto, apesar (ou  em  decorrência  do  fato) de ter sido influenciada por uma miríade de teorias, a PNL não se constituiu enquanto uma teoria coesa sobre o comportamento humano, mas sim como um conjunto de estratégias (denominado “modelagem”) voltadas para o desenvolvimento pessoal. Como afirmam seus  criadores, “nós não temos nenhuma ideia sobre a natureza‘real’ das coisas e nós não estamos particularmente interessados no que é ‘verdadeiro’. A função da modelagem é chegar a descrições que são úteis”. A PNL, assim, é guiada mais por um interesse pragmático do que por uma teoria geradora coesa, situação idêntica à do coaching, que se constitui como uma espécie de bagunça teórico-prática - ou "mix de recursos e técnicas", como preferem chamar os coaches. A lógica parece ser juntar tudo o que for ou parecer útil para ajudar os clientes a atingir seus objetivos. Se para isto for necessário simplificar ou distorcer determinados conhecimentos - juntando uma xícara de psicologia de botequim, com uma colher de neurobobagem e de blá-blá-blá quântico e uma pitada de "reprogramação de DNA" - tudo bem. O que importa é o resultado, não o embasamento ou a coerência.

Esta falta de embasamento e coerência fica absolutamente clara ao analisarmos a proposta do "neurocoaching", que seria uma espécie de sub-abordagem de coaching baseada na neurociência.  De acordo com os autores do artigo As contribuições da neurociência no processo de coaching, "com a evolução dos estudos a respeito da neurociência veio à tona algumas revelações a respeito do funcionamento do cérebro e os processos que definem os diferentes comportamentos humanos, abrindo assim novos caminhos para o coaching, que quando em conjunto com a neurociência passa a ser chamado de neurocoaching". Segundo os autores, aproximar as técnicas do coaching dos conhecimentos advindos da neurociência tornaria o processo do coaching ainda mais eficaz - de que forma? Em nenhum momento do texto ou de todos os textos que li sobre o tema isso fica claro, assim como não fica claro de que forma os conhecimentos (quais conhecimentos?) da neurociência poderiam ser úteis de alguma forma na prática do coaching. O máximo que encontrei foram afirmações vagas e imprecisas sobre o funcionamento cerebral. Veja por exemplo essa passagem do referido artigo: "a neurociência é capaz de identificar quais os bloqueios e quais dificuldades atrapalham o desenvolvimento de cada indivíduo e, quando trabalhado junto com o coaching pode tornar o processo ainda mais eficiente. Através do neurocoaching adquire-se um novo olhar sobre as dificuldades, onde o foco deixa de ser o problema e sim a solução". Adoraria saber de que forma "a neurociência" seria capaz de identificar os bloqueios e dificuldades do indivíduo. Não há nas referências do artigo uma menção sequer a qualquer artigo ou livro de neurociência que embase qualquer uma destas afirmações vagas sobre o funcionamento cerebral. Mas esta omissão tem um sentido claro. As neurociências e os conhecimentos que elas fornecem não importam; o que importa é que as neurociências aumentam a legitimidade do coaching. Em uma passagem reveladora e extremamente sincera deste artigo os autores apontam: "o fato de incorporar uma ciência ao coaching trouxe mais credibilidade, aumentando assim a aceitação das pessoas com relação a eficácia do processo". Pois é disto que se trata: de usar das ciências - isto é, de um conhecimento extremamente limitado e distorcido das ciências - para aumentar a aceitação das pessoas da prática do coaching. Não digo que esta seja a regra no universo do coaching, mas me parece, pelo que pude observar em inúmeros sites e videos de coaches, que se trata de uma prática bastante comum. Ao se misturar indiscriminadamente discursos, teorias e práticas provenientes das mais diversas áreas do conhecimento (administração, psicologia, neurociências, física quântica, PNL, etc) o resultado pode até ser útil e relevante para algumas pessoas, mas não deixa de ser confuso.

Por fim, gostaria de tratar do aspecto mais problemático do discurso (e da prática) dos coaches, que é a forte conexão entre as ideologias da meritocracia e do pensamento positivo. Com relação à lógica meritocrática, que estabelece que o  "sucesso" do indivíduo depende exclusivamente seu próprio esforço e força de vontade, trata-se de uma ideologia extremamente danosa na medida em que desconsidera inúmeros outros fatores (econômicos, sociais, etc) que afetam o desempenho e  possibilidade de ascensão social do sujeito. Junte a essa lógica a ideia de que "basta pensar positivamente para conseguir o que se quer" e temos um discurso que, em última instância, culpabiliza apenas os indivíduos pelo próprio "fracasso": se eles não "chegaram lá" - e estão desempregados, por exemplo - isto ocorreu exclusivamente porque não se esforçaram o suficiente e/ou se deixaram levar por pensamentos negativos. Sem dúvida alguma, este pensamento individualista também está presente na teoria e na prática psicológicas, especialmente na área clínica, mas na área do coaching, assim como em toda literatura de auto-ajuda, tais ideologias são hegemônicas. Basta acessar os sites das principais instituições, associações ou sociedades de coaching para encontrar artigos embebidos de tais ideologias como Ser lider é meritocracia, Como implantar o conceito de meritocracia nas empresas?, Pensamentos positivos e sucesso, Como a força do pensamento positivo pode ajudar sua carreira?, etc. Em todos estes materiais, e em muitos outros, é possível observar um discurso que isola o indivíduo da sociedade, tratando-o como uma ilha, e o responsabiliza totalmente pelo próprio "sucesso" ou "fracasso". Mas - você pode estar se perguntando - qual a alternativa a este discurso? A saída seria, então, abandonar a crença no esforço pessoal e apenas desistir de atingir determinados objetivos pessoais e profissionais? É claro que não! Cada indivíduo pode estabelecer os objetivos que quiser para a própria vida e correr atrás para atingi-los - e pode até mesmo procurar um coach ou um psicólogo para ajudá-lo nesse processo. O que não podemos fazer, enquanto sociedade, é deixar os indivíduos por sua própria conta, culpabilizando e abandonando aqueles que não "chegaram lá" - e também aqueles que partem de condições desvantajosas de existência. Enquanto sociedade, precisamos compreender que existem inúmeros fatores econômicos e sociais que interferem fortemente no acesso, na permanência e na ascensão dos indivíduos no mercado de trabalho (e também na educação formal) e, ao mesmo tempo, criar e manter mecanismos e políticas que auxiliem as partes mais vulneráveis da população. Mas e quanto ao pensamento positivo? A alternativa seria adotar a "ideologia do pensamento negativo" e passar a crer que tudo vai dar errado? Também é claro que não! Sem dúvida alguma uma certa dose de otimismo é importante, mas na maioria das situações um pensamento mais realista, que leve em conta riscos, limites e problemas reais, é fundamental para enfrentarmos os desafios concretos da existência humana. Ignorar os aspectos negativos da vida e do mundo, além de ser uma forma de ilusão, em nada contribui para o bem-estar das pessoas. O que se faz cada vez mais necessário, numa sociedade individualista como a que vivemos, é justamente que as pessoas olhem um pouco menos para dentro de si e mais para fora, para o outro, para os problemas do mundo. Manter o foco em si mesmo - no próprio desempenho, na própria performance, no próprio sucesso - impele as pessoas a se distanciarem umas das outras e a competirem entre si, o que só contribui para o aumento do mal-estar individual e coletivo. O que se faz cada vez mais necessário é que as pessoas se aproximem e atuem de forma colaborativa na busca por soluções para os principais problemas que afetam os indivíduos, a sociedade e o mundo. 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Em choque: uma breve história da Eletroconvulsoterapia

Aplicação de ECT no Hospital de Virginia, nos EUA, em 1949
Em uma polêmica Nota Técnica publicada em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde estabeleceu novas diretrizes para a política de saúde mental no Brasil. Dentre outras medidas questionáveis, o Ministério estabeleceu a ampliação da rede de hospitais psiquiátricos, a possibilidade de internação de crianças e adolescentes e também a aquisição e disponibilização pelo SUS de equipamentos de Eletroconvulsoterapia (ECT) para o "tratamento de pacientes que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas". Popularmente conhecido como "eletrochoque" este tratamento tornou-se, juntamente com a lobotomia, um símbolo dos equívocos e crueldades cometidos - em nome da razão - pela psiquiatria e pela medicina de uma forma geral. No entanto, também como a lobotomia, a ECT foi vista na época de sua criação como um tratamento inovador, seguro, eficaz e - acredite se quiser - muito menos agressivo e desumano que as outras opções terapêuticas disponíveis naquele momento, como a Terapia por Choque de Insulina (que induzia os pacientes ao coma), a Malarioterapia ou Piroterapia por infecção de malária (que causava terríveis febres) e a Terapia convulsiva (que induzia a violentas convulsões). Posteriormente a ECT passou a ser mal vista e foi deixada de lado; no entanto, ela nunca deixou de ser aplicada. Até os dias atuais ela é utilizada, de uma maneira bastante diferente de quando foi criada, em pessoas com graves transtornos mentais refratárias a outros tratamentos. Especificamente com relação à referida Nota Técnica a preocupação de muitos profissionais e pesquisadores da área da saúde mental é que a aquisição e disponibilização de equipamentos de ECT pelo SUS possa favorecer um uso equivocado e banalizado da técnica, como ocorreu logo após sua criação, na década de 1930. Esta é, sem dúvida alguma, uma preocupação legítima, haja vista a falta de fiscalização adequada em inúmeros serviços públicos; além disso há o questionamento, igualmente pertinente, sobre se realmente vale a pena investir os escassos recursos da área da saúde em dispendiosos aparelhos de ECT - e também no provisionamento das clínicas e na capacitação dos aplicadores e equipe de apoio - ao invés de empregar tais recursos na melhoria dos serviços e dispositivos de saúde mental já incorporados ao SUS. Por fim, há que se questionar também se esta politica não estaria atendendo e beneficiando prioritariamente o lobby da indústria dos dispositivos médicos, mais do que os próprios pacientes. Por outro lado, se as diretrizes para o uso da técnica forem rigorosamente seguidas e sua utilização ocorrer apenas como último recurso terapêutico, e jamais como método punitivo e disciplinar, creio que as resistências à sua utilização diminuiriam consideravelmente - a questão é que eu duvido muito que a fiscalização desta atividade consiga ser realizada a contento, de forma a evitar excessos e usos equivocados. De toda forma, para além de toda esta polêmica, gostaria no presente texto de apresentar brevemente a história da ECT desde seu desenvolvimento até a atualidade. 

Violenta convusão induzida por Metrazol
A eletroconvulsoterapia, como o próprio nome indica, é um procedimento terapêutico que pretende gerar convulsões nos pacientes por meio da aplicação de correntes elétricas na região da cabeça - entende-se, neste caso, que as convulsões possuem um valor terapêutico na medida em que teriam a capacidade de aliviar certos sintomas psiquiátricos. No entanto, a ECT não foi o primeiro procedimento médico que visou a geração de "convulsões terapêuticas" nos pacientes. No início do século XX alguns psiquiatras notaram uma certa incompatibilidade entre a psicose e a epilepsia, o que significava que pacientes psicóticos muito raramente eram epiléticos ou apresentavam crises convulsivas. Com esta observação em mente - posteriormente refutada pela comunidade científica - o psiquiatra húngaro Ladisla Joseph von Meduna (1896-1964) começou, em 1933, a experimentar diferentes substâncias para induzir convulsões em animais e, posteriormente, em pacientes psicóticos. Inicialmente tentou a injeção de cânfora e de outras substâncias de forma intramuscular, mas os resultados não foram significativos; finalmente testou a injeção intravenosa de uma preparação de cânfora sintética menos tóxica denominada pentilenotetrazol, também conhecida como metrazol ou cardiazol. E acabou por descobrir que os sintomas psicóticos diminuiam consideravelmente após um ataque convulsivo induzido por esta substância - tratamento que acabou por ser chamado de terapia convulsiva. O grande problema é que o metrazol induzia nos pacientes um terrível sentimento de morte iminente e também levava a convulsões extremamente violentas. Como aponta o psiquiatra Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria - Uma história não contada, um estudo realizado em 1939 revelou que 43% dos pacientes submetidos à terapia convulsiva tiveram vértebras fraturadas durante as terríveis convulsões causadas pelo metrazol. Em função destes e outros problemas, os médicos começaram, então, a buscar outras maneiras, mais seguras e menos agressivas, de induzir convulsões nos pacientes.

Protótipo do primeiro aparelho de "eletrochoque"
Esta busca levou, no final da década de 1930, na Itália, ao desenvolvimento da Eletroconvulsoterapia pelo neurologista e neurocirurgião italiano Ugo Cerletti (1877-1963) em parceria com seu colega Lucio Bini (1908-1964). Inicialmente, Cerletti induziu experimentalmente convulsões em cachorros por meio de choques elétricos aplicados na cabeça. O pesquisador chegou a conceber a aplicação do mesmo método em seres humanos mas foi dissuadido por colegas. Posteriormente, enquanto comprava carne em um açougue local descobriu que os porcos eram abatidos depois de serem entorpecidos pela aplicação de correntes elétricas em suas cabeças, o que o fez questionar se o mesmo efeito "anestésico" ocorreria em humanos. Com esta ideia em mente, Cerletti recorreu a Bini para construir, em 1938, o primeiro aparelho voltado para aplicação de "choques terapêuticos" em seres humanos. No dia 15 de Abril deste ano, os pesquisadores utilizaram o aparelho, pela primeira vez, em um paciente esquizofrênico e o resultado ocorreu exatamente como esperado: após despertar da anestesia causada pelo choque os pesquisadores observaram significativas melhoras no quadro sintomático do paciente. De acordo com Franz Alexander e Sheldon Selesnick no livro História da psiquiatria, a partir desta primeira aplicação "tornou-se logo evidente que o eletrochoque era superior ao Metrazol, pois era menos perigoso, menos dispendioso e causava convulsão mais branda. Devido à simplicidade de seu processo e aos resultados favoráveis, o eletrochoque, na década de 1940, já substituia os tratamentos de choque de insulina na esquizofrenia". Na mesma direção, Jeffrey Lieberman, no já mencionado livro Psiquiatria - Uma história não contada, afirma que "a ECT significou um substituto bem vindo à terapia do metrazol porque era mais barata, menos aterrozizante para os pacientes (não havia mais a sensação de morte iminente), menos perigosa (nada de costelas quebradas), mais conveninente (bastava ligar e desligar a máquina) e mais eficaz. Pacientes deprimidos, em particular, frequentemente apresentavam melhoras surpreendentes de humor após apenas algumas sessões; e embora a ECT tivesse alguns efeitos colaterais, eles não eram nada comparados aos riscos alarmantes da terapia do coma, da terapia da malária ou da lobotomia. Era, de fato, um tratamento milagroso".

Cena do filme Um estranho no ninho (1975)
A partir da década de 1940 a técnica desenvolvida por Celetti e Bini foi amplamente aplicada em hospitais psiquiátricos de todo o mundo, inclusive no Brasil. Posteriormente, em função tanto do desenvolvimento das primeiras medicações psiquiátricas ou psicofármacos, no início da década de 1950, quanto dos crescentes questionamentos relativos aos efeitos colaterais e aos usos equivocados da técnica, a ECT acabou por perder muito de sua popularidade inicial. Especificamente com relação aos efeitos colaterais, um dos mais conhecidos e documentados é a perda de memória - que na maioria dos casos é temporária, e o paciente em pouco tempo retoma as lembranças, mas que em alguns casos torna-se definitiva, e o paciente passa a ter grandes dificuldades de memorização. Curiosamente, no início da aplicação da ECT este efeito colateral de esquecimento temporário foi considerado vantajoso na medida em que fazia o paciente se esquecer do desagradável procedimento de ser eletrocutado. Outros efeitos colaterais que ocorreram nos primeiros anos de aplicação da ECT - como fraturas ósseas e distensões musculares - se deviam ao fato de os aplicadores não utilizarem qualquer forma de anestesia ou relaxamento muscular. Posteriormente, com a introdução do suxametônio, um relaxante muscular, associado com um anestésico de curta duração, muitos desses outros efeitos colaterais foram minimizados, ainda que não totalmente eliminados. Já com relação aos usos equivocados da ECT são notórias as utilizações da técnica como forma de punição - e mesmo tortura - nas instituições psiquiátricas de todo o mundo - basta assistir ao clássico filme Um estranho no ninho (1975) e também ao brasileiro Bicho de sete cabeças (2001) para entender como isto ocorria. Em função de tudo isso, a técnica acabou por ser colocada de lado na área de saúde mental. No entanto, como já apontei acima, a ECT nunca deixou de ser utilizada. Após sua criação, no final da década de 1930, a técnica foi amplamente usada até a década de 1960, quando começou a ser preterida e marginalizada; na década de 1980 a ECT teve uma espécie de ressurgimento, ainda que impregnado por uma visão extremamente negativa, que permanece. Atualmente, a técnica é empregada de uma maneira completamente diferente de quando foi criada. Como aponta Jeffrey Lieberman, "hoje, o avanço tecnológico permite ajustar a ECT para cada paciente, de modo que seja usada a quantidade mínima de corrente elétrica para induzir ao surto [ou convulsão]. Além disso, a colocação estratégica dos eletrodos em lugares específicos da cabeça pode minimizar os efeitos colaterais. Agentes anestésicos modernos combinados com relaxantes musculares e oxigenação abundante tornam a ECT um procedimento extremamente seguro". Certamente há pesquisadores que questionam essa suposta segurança da ECT - indico, nesse sentido os artigos sobre o tema do blog Mad in Brasil; no entanto, ainda que não se trate de um procedimento 100% seguro - e nenhum procedimento ou intervenção é isento de riscos e efeitos colaterais - ainda assim a eletroconvulterapia continuará a existir e a ser aplicada. O que precisamos fazer, enquanto profissionais e pesquisadores da área de saúde mental, é continuar avaliando os efeitos positivos e negativos das intervenções biológicas em psiquiatria - que incluem desde a ECT até os psicofármacos - e paralelamente buscar alternativas psicossociais que nos ajudem a lidar com os sofrimentos e desequilíbrios humanos.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Os (outros) animais tem consciência?

O que será que Nina esta pensando?
Às vezes me pego olhando para a minha cachorrinha, Nina, e pensando: o que será que se passa na mente dela? O interessante deste questionamento é que eu - e provavelmente todos os donos de cachorro - temos a mais absoluta convicção de que os cachorros tem uma mente - e portanto, uma consciência de si e do mundo; provavelmente uma consciência diferente daquela de um ser humano adulto mas ainda sim uma consciência; alguma consciência. Mas será que temos razão? Será que de fato os cachorros e os outros animais não-humanos possuem uma consciência ou algum grau de consciência? Para responder a esta questão precisamos, em primeiro lugar, definir o que afinal de contas é essa tal consciência. Pois no livro O mistério da consciência, o famoso neurocientista português Antônio Damásio apresenta uma definição simples mas interessante: consciência é "a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca". Segundo o autor trata-se de um fenômeno privado, isto é, que somente a própria pessoa tem acesso, e que faz parte de outro processo privado que denominamos mente. A consciência é, assim, uma característica ou um ingrediente da mente - o que significa dizer que a mente pode, eventualmente, ocorrer sem consciência. Na maior parte do tempo, a mente está (ou estaria) consciente. Se não fosse assim, a vida cotidiana se tornaria impossível: seríamos apenas zumbis que vagam pelo mundo. No entanto existem situações em que mente e consciência não se "encontram". Isto acontece, por exemplo, quando estamos dormindo e sonhando: nestes momentos certamente há uma mente que sonha mas não há propriamente uma consciência. O mesmo ocorre nos casos de sonambulismo e em algumas estranhas síndromes causadas por lesões cerebrais - várias descritas por Damásio em seu livro. Em todos esses casos, as pessoas continuam com uma mente mas perdem ou diminuem a consciência de si e/ou do mundo.

Cachorro-robô atual
Mas voltemos aos animais não-humanos. Eles possuem - seguindo a definição de Damásio - alguma percepção de si mesmos e do mundo? Com relação aos cachorros eu tenho convicção de que a resposta é afirmativa, mas como eu posso ter certeza disso? E a resposta é que eu não posso e nunca terei esta certeza. Como apontei na análise que fiz do filme A chegada, não temos como saber nem mesmo se os outros seres humanos possuem uma mente e são conscientes. Como estes processos dizem respeito a experiências privadas e subjetivas, que só eu tenho acesso, eu só posso dizer com certeza que eu próprio possuo uma mente consciente. É claro que acreditamos e precisamos acreditar que as outras pessoas também possuem mentes e consciências - de outra forma, nenhuma relação humana seria possível - mas de fato nunca saberemos. Só o que podemos fazer é pressupor que há uma mente consciente com base no comportamento da pessoa - e também dos outros animais. Quando observo minha cachorrinha, por exemplo, percebo que ela reage à forma como eu me comporto e também ao meu tom de voz: quando eu chego em casa ela se excita e corre pela sala; quando eu saio de casa ela se retrai e, por vezes, chora;  quando eu faço carinho ela se contorce e vira as patas para cima; quando eu falo com um tom de voz agudo ela balança o rabo; se eu passo a falar com um tom de voz grave ela para de balançar o rabo e se afasta. E todas estas reações me fazem pensar - e acreditar - que ela de fato possui uma mente consciente, que a permite perceber o mundo ao seu redor (que me inclui), se diferenciar deste mundo (e de mim) e reagir a ele. Mas vamos supor que no futuro inventem um cachorro-robô com aparência, movimentos e reações totalmente indistinguíveis de um cachorro real. Neste caso, baseado apenas em seu comportamento, eu poderia muito facilmente me deixar convencer de que este "animal" também possui uma mente consciente. No entanto, as reações do cachorro-robô foram totalmente programadas por seus criadores, não restando qualquer espaço para a subjetividade. Se eu estaria enganado neste caso, o que me faz crer que eu não estou enganado quando pressuponho mente e consciência em um cachorro real?

Como é ser um cachorro-morcego?
Em um clássico artigo de filosofia da mente, denominado Como é ser um morcego? (que já apresentei e analisei em outro post), o filósofo Thomas Nagel aponta para a impossibilidade de compreendermos como é ser um morcego. Seu argumento é que podemos estudar o corpo e o sistema nervoso deste animal com grande profundidade mas jamais entenderemos sua experiência subjetiva - e também a de todos os outros animais, incluídos aí todos os demais seres humanos que não nós próprios. O máximo que podemos fazer é 1) pressupor que todos os animais, dos mais simples aos mais complexos, possuem algum grau de consciência; 2) tentar imaginar como esses outros seres percebem e sentem o mundo e 3) agir com base nessas pressuposições e imaginações. De fato nunca teremos completa certeza de que tais entendimentos são verdadeiros, mas a ação humana com base na hipótese da existência de subjetividade em todos animais será, sem dúvida alguma, muito mais ética e responsável do que se imaginarmos que somente nós próprios possuímos mentes e consciências. Como afirma Eric Matthews no livro Mente: conceitos-chave em filosofia, "os animais, sejam eles capazes de raciocinar ou não, certamente possuem mentes no sentido de possuir sensações de dor e prazer e não parece existir nenhuma razão para acreditar que causar dor aos animais, ou seja, infligir-lhes crueldade, seja moralmente mais justificável do que infligi-la aos seres humanos". Na contramão de certas visões antigas - como aquela disseminada pelo filósofo renascentista René Descartes, que entendia que apenas os seres humanos possuíam alma, sendo os demais animais apenas máquinas desalmadas - esta compreensão enfatiza que todos os animais, inclusive os seres humanos, possuem determinadas características em comum - como a mente e a consciência. O que nos diferencia é apenas uma questão de grau e não de qualidade ou natureza - afinal de contas, somos todos animais.

PÓS-ESCRITO (23/05/19): Em 2012, um grupo de cientistas de diferentes áreas reunidos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, lançou uma espécie de manifesto que ficou conhecido como Declaração de Cambridge sobre a Consciência. Este documento - cuja tradução pode ser lida aqui - defende que apesar das dificuldades fundamentais na pesquisa sobre a consciência (com destaque para a "inabilidade dos animais não humanos, e até mesmo dos humanos, em comunicar clara e prontamente os seus estados internos") já seria possível dizer, naquele momento, que os animais não humanos de fato possuem uma consciência. Para embasair esta ideia os pesquisadores apresentam, em quatro tópicos, uma série de evidências, e concluem: "A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".

PÓS-ESCRITO (17/06/19): No recém-lançado livro A vida secreta dos animais, o engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben - mesmo autor do best-seller A vida secreta das árvores - faz algumas considerações bem afinadas com as que eu fiz acima. Logo na introdução, por exemplo, ele afirma: "Talvez soe descabido dizer que um porco sente as mesmas coisas que o ser humano, mas é pouco provável que ele sinta menos dor do que nós ao se ferir. 'Opa, isso nunca foi comprovado!", talvez exclamem os cientistas. É verdade, e o fato é que nunca haverá provas cabais. Para ser mais preciso, não consigo provar nem sequer que você tem sensações iguais às minhas. Ninguém é capaz de olhar para dentro de outra pessoa e provar, por exemplo, que uma picada de agulha provoca a mesma sensação em todos os 7 bilhões de seres humanos no planeta, mas todos sabemos expressar o que sentimos, e, considerando, as informações compartilhadas, são grandes as chances de termos sensações iguais". Em outro momento o autor questiona: "A ciência já afirmou tantas vezes que os animais não tem sentimentos que essa visão acabou se tornando a mais difundida, mas não seria melhor acreditar que eles tem sentimentos e passar a evitar que sofram sem necessidade?". Na visão do autor, jamais teremos completa certeza de que os animais possuem emoções e sentimentos mas porque não dar a eles o benefício da dúvida e simplesmente acreditarmos nisso? Agir com base nesta pressuposição certamente favorecerá um tratamento mais digno a todos os animais não-humanos. Por fim, no pósfacio, ao comentar sobre as evidências científicas indiretas que apontam para processos cognitivos nos outros animais, Wohlleben afirma: "As descobertas atuais da ciência na verdade não tem surpreendido os verdadeiros amantes dos animais; apenas tem dado mais segurança para confiar em nossos próprios sentimentos em relação a eles". E acrescenta: "quando vejo pessoas negando com veemência que os animais tem sentimentos, fico com a sensação de que isto acontece um pouco por medo de que o homem possa perder sua posição especial. Ou, pior ainda, por medo de que fique mais difícil explorar os animais. Toda vez que alguém fosse comer carne ou usar qualquer produto de couro teria uma crise moral que o impediria de ir adiante. Quando pensamos que os porcos são animais sensíveis, que transmitem conhecimento a seus descendentes e depois os ajudam a parir, que atendem pelo nome e se reconhecem no espelho, trememos só de lembrar que, apenas na União Europeia, cerca de 250 milhões de suínos são abatidos todos os ano".

PÓS-ESCRITO (09/07/2019):  No livro Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal, a pesquisadora norte-americana Irene Pepperberg narra a sua longa relação com o famoso papagaio-cinzento Alex, falecido em 2007 aos 31 anos de idade. Na conclusão do livro a autora apresenta uma série de descobertas sobre a inteligência de aves que ela e seu grupo fizeram a partir dos inúmeros experimentos realizados com o falante Alex e tece também algumas considerações sobre a consciência dos animais não-humanos. Afirma Pepperberg: "O que essas e outras coisas que Alex fez me ensinaram? Ensinaram que ele tinha um grau de consciência que nem mesmo os behavioristas radicais poderiam negar. Será que eu posso provar isso tal como provei que Alex era capaz de marcar objetos e aprender conceitos? Não, não posso. Embora a linguagem já não seja amplamente tida como requisito para o pensamento (...) é necessária para provar que outro indivíduo é consciente. A linguagem nos permite explorar o funcionamento da mente de outro indivíduo como nenhum outro instrumento permite. Se eu tivesse perguntado a Alex 'Por que você mastigou o projeto de financiamento quando estávamos na Purdue?" ou "O que estava pensando quando mastigou os slides que deixei sobre minha mesa lá na Northwestern?", e ele tivesse respondido "Ora, eu só estava me divertindo" ou "Eu sabia que você ficaria irritadíssima com aquilo", então eu teria vislumbrado a consciência dele. Mas Alex não usava a linguagem da maneira como eu e você usamos. Sendo assim, não posso provar que ele tinha um grau de consciência. Mas a forma como se comportava era certamente sugestiva". E ela conclui, de forma brilhante: "Alex me ensinou a acreditar que seu pequeno cérebro de pássaro era de alguma maneira consciente, ou seja, capaz de intencionalidade. Extrapolando, posso dizer que Alex me ensinou que o mundo em que vivemos é povoado de criaturas pensantes e conscientes. Não humanamente pensantes. Não humanamente conscientes. Mas nem por isso são autônomos sem mente que vagam como zumbis".

terça-feira, 14 de maio de 2019

Em defesa do livre pensamento nas universidades

Como reação aos absurdos cortes nos orçamentos das universidades federais e também às levianas críticas ao mundo acadêmico que tem circulado pelas redes sociais, inúmeras reportagens, abaixo-assinados e manifestações se esforçaram em mostrar à população como as universidades são úteis para a sociedade. Sem dúvida alguma este é um esforço louvável, haja vista que, de fato, nas universidades brasileiras - especialmente nas públicas - são realizadas pesquisas que contribuem ou poderão contribuir, no futuro, para a solução de inúmeros problemas ambientais e sociais. Por outro lado, algo que me incomoda muito nesta defesa da utilidade da universidade e da pesquisa acadêmica é que por vezes ela obscurece uma outra função absolutamente fundamental das universidades que é promover a busca pelo conhecimento como um fim em si mesmo. E esta busca não é necessariamente útil no sentido de servir para curar alguma doença, favorecer a produção de alguma patente ou gerar lucro para alguma empresa. A utilidade de uma parte significativa da pesquisa acadêmica é, "simplesmente", ampliar o entendimento que o ser humano tem de si mesmo e do mundo que o cerca. E isto não é pouco. E não é nada simples.

Desde sua origem, as universidades sempre foram espaços de livre pensamento, locais onde onde os mestres e aprendizes podiam fazer perguntas e buscar respostas sobre o que bem entendessem. A própria ideia de "universidade" se relaciona à essa busca por uma compreensão ampla, total, universal do próprio ser humano e do mundo. Isto está na origem, na evolução e na própria "alma" das universidades. O grande problema, no atual contexto brasileiro, é que as pessoas que ocupam o poder e que decidem como serão aplicados os recursos educacionais, não vêem as coisas desta forma. Para eles, as universidades se resumem a espaços inúteis e amorais, onde pessoas que estudam coisas desnecessárias andam nuas, usam drogas e fazem "balbúrdia" - seja lá o que isso for. Como no fatídico episódio do "golden shower", no qual uma cena desagradável foi utilizada para representar todo o carnaval brasileiro, imagens de nudez, balbúrdia ou flagrantes inutilidades (leia-se: capas de dissertações e teses da área de humanas) tem sido utilizados para representar as universidades brasileiras. Generalizações e interpretações indevidas são invocadas e disseminadas a cada momento, colocando em xeque a utilidade e a pertinência das universidades e das pesquisas acadêmicas. 

O que estas pessoas de mente estreita não conseguem ver é que as universidades não são e não devem ser apenas espaços de formação profissional mas também, e  fundamentalmente, espaços de livre pensamento sobre o mundo - inclusive sobre os governos, o que certamente incomoda nossos atuais governantes, que demonstram pouquíssimo apreço tanto ao pensamento quanto à liberdade. Na visão dessas pessoas, a universidade deve se limitar à sua função "técnica", capacitando profissionais para o mercado de trabalho; no entanto, como bem aponta Nuccio Ordine no fantástico livro A utilidade do inútil - Um manifesto, "privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação: nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os alunos a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiosidade. Equiparar o ser humano exclusivamente com sua profissão seria um erro gravíssimo: em todo ser humano há algo de essencial que vai muito além de seu próprio 'ofício'. Sem essa dimensão pedagógica, ou seja, totalmente afastada de qualquer forma de utilitarismo, seria muito difícil, no futuro, continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça...". 

Não podemos permitir que estas pessoas de mente estreita - que não entendem o que são e para que "servem" as universidades e a educação de uma forma geral - determinem aquilo que é relevante ou útil e aquilo que não é. As universidades não podem - e não irão - perder aquilo que mais fortemente as constitui, que é o livre pensamento, que é a possibilidade de refletir e estudar sobre o que se quiser, independente de qualquer utilidade. Aliás, o que é utilidade? Para nossos governantes atuais, a utilidade parece estar relacionada a um retorno econômico-mercadológico de determinada pesquisa ou atividade - "se gerar dinheiro, é útil", pensam -, mas eu acho a definição do professor Ordine muito mais interessante: útil é tudo que nos ajuda a nos tornar melhores. Deste ponto de vista todas as pesquisas, de todas as áreas, são úteis porque nos fazem (ou tem o potencial de nos fazer) pensar - e pensar nos torna melhores. Isto significa, por sua vez, que tudo aquilo que parece inútil aos olhos dos nossos atuais governantes (o que inclui desde a pesquisa nas áreas de ciências humanas e sociais até a literatura e a arte) tem sim uma importante utilidade: expandir a nossa mente e o conhecimento humano. Como aponta o professor Ordine, "nesse contexto brutal [ele se refere à Europa, mas podemos facilmente estender sua análise para o Brasil atual], a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse exclusivamente econômico, está progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda a humanidade. No universo do utilitarismo, um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave de fenda mais do que um quadro; porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte" - e também a universidade, eu acrescentaria.

terça-feira, 12 de março de 2019

Por que os turistas tiram tantas fotos?

Os turistas, em geral, tiram muitas fotos - e eu, quando viajo, também. Mas eu fico me perguntando sobre o porquê disso e a única resposta que me vem à mente é que tiramos muitas fotos porque não confiamos em nossa memória. E de fato temos razões para não confiar. As ciências cognitivas há décadas apontam para as limitações e falibilidades de nossas lembranças: com o passar do tempo nós esquecemos grande parte do que vivenciamos, especialmente os detalhes, e ainda alteramos em nossa mente aquilo que de fato ocorreu, seja acrescentando coisas que não ocorreram - são as chamadas falsas memórias - seja eliminando ou distorcendo coisas que ocorreram - saiba mais no post A ilusão da memória. Isto talvez ajude a explicar essa obsessão dos turistas por registrar tudo o que vivenciam. Não creio na explicação simplista de que tais pessoas tiram muitas fotos para se exibirem nas redes sociais, pois muitas das fotos - a maioria, eu arriscaria dizer - jamais são compartilhadas, sendo apenas armazenadas. No meu entender, nós turistas temos medo de esquecer as experiências pelas quais passamos e por isso tentamos transformar vivências essencialmente subjetivas - e portanto frágeis e imperfeitas - em registros objetivos - e portanto seguros e precisos. A grande questão é que nossa memória, independente do que façamos ou queiramos, continuará sendo frágil e imperfeita, como nós próprios.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Destruindo o cérebro para curar a mente: uma história ilustrada da psicocirurgia

A lobotomia é entendida atualmente como um procedimento terrível, antiético e desumano, que nunca deveria ter existido; no entanto, após ser criada, na década de 1930, a técnica foi quase imediatamente compreendida como o melhor e mais científico tratamento disponível para pessoas com graves transtornos mentais - tanto que seu criador foi agraciado, no ano de 1949, com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. As alternativas à lobotomia, na época, incluíam a terapia por choque insulínico, que consistia na indução do paciente ao coma pela aplicação de uma grande dosagem de insulina, e a piroterapia, também chamada de malarioterapia, que envolvia a inoculação do parasita da malária no paciente de forma a gerar terríveis febres - em ambos os casos acreditava-se que após o paciente se restabelecer, do coma e das febres, ocorreriam melhoras em seu estado mental e comportamental. Tais terapias podem parecer igualmente terríveis, mas também elas foram amplamente entendidas como "avanços" ao que existia anteriormente, tanto que o criador da malarioterapia, o médico-psiquiatra Julius Wagner von Jauregg (1857-1940) foi, do mesmo modo, agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1927. Já a lobotomia, chamada inicialmente de leucotomia pré-frontal, foi desenvolvida pelo médico neuro-psiquiatra português Antônio Egas Moniz (1874-1955), sendo aplicada pela primeira vez em 1935, na cidade de Lisboa, em Portugal.

Dr. Fulton com a "lobotomizada" macaca Becky
O procedimento, que consistia na destruição de parte dos lobos frontais dos pacientes foi fortemente inspirado em  experimentos feitos com animais entre o final do século XIX e o início do século XX - com destaque para aquele realizado pelos pesquisadores norte-americanos Carlyle Jacobson e John Fulton, da Universidade de Yale, que danificaram os lobos pré-frontais de duas chimpanzés, Becky e Lucy, e puderam observar significativas mudanças de comportamento,  especialmente em Becky: antes agitada e agressiva, a macaca tornou-se quieta e pacífica, sem que, aparentemente, sua memória e inteligência fossem afetadas. Este experimento foi apresentado, juntamente com outros trabalhos semelhantes, no II Congresso Internacional de Neurologia, que ocorreu em Londres entre os dias 29 de Julho e 02 de Agosto de 1935. Moniz estava presente nesta apresentação e após ela ser finalizada conta-se que ele teria se levantado e questionado os pesquisadores, diante de todos os presentes, se o mesmo procedimento não poderia ser aplicado em humanos para tratar certas doenças mentais. Embora a mitologia criada em torno dessa cena sugira que a ideia da leucotomia tenha surgido neste preciso momento, ela já havia sido aventada por Moniz nos anos anteriores e conectava-se totalmente à sua concepção de "doença mental" como algo inteiramente orgânico, produto de uma rede cerebral danificada. A apresentação de Jacobson e Fulton serviu, assim, mais como confirmação de suas ideias do que como fonte de inspiração. De toda forma, o ponto central de seus questionamentos, que foi tomando corpo ao longo dos anos, era o seguinte:  se a mente é criação do cérebro, por que não intervir diretamente no cérebro para curar a mente?

Procedimento da leucotomia pré-frontal
De volta à Portugal, Moniz decidiu colocar em prática esta ideia e no dia 12 de Novembro de 1935, pouco mais de três meses após o famoso Congresso - e com a colaboração fundamental do neurocirurgião Pedro Almeida Lima -, realizou a primeira leucotomia, que passaria a ser chamada por ele também de "psicocirurgia" por se tratar de uma intervenção realizada no cérebro cujo objetivo era alterar a psiquê, isto é, a mente do paciente - uma "neurocirurgia", por outro lado, não tem e nunca teve esta pretensão, limitando-se a remover ou reparar as partes doentes do cérebro. Pois a primeira paciente (ou poderíamos dizer vítima?) foi a Sra. M, uma mulher de 63 anos profundamente deprimida, ansiosa e paranoica que, após ser anestesiada, teve dois pequenos furos feitos em seu crânio na parte superior, nos lados direito e esquerdo, e uma certa quantidade de álcool absoluto introduzida com uma injeção - a ideia era que essa substância "neurotóxica" destruísse as conexões celulares do lobo frontal. Posteriormente, Moniz optou por substituir a aplicação de álcool pela utilização de um instrumento chamado por ele de "leucótomo", que consistia de uma cânula com 11 centímetros de comprimento que era introduzida nos pequenos buracos feitos no crânio e movimentada de um lado para o outro, destruindo, assim, uma parte da substância branca do cérebro - não por acaso a expressão leuco-tomia significa, literalmente, "corte no branco", isto é, na substância branca. O procedimento foi oficialmente apresentado ao mundo através de uma monografia publicada por Moniz em 1936 com o título Tentatives opératoires dans le traitement de certaines psychoses [Tentativas operatórias no tratamento de certas psicoses]. Nesta monografia, além de descrever a nova técnica, Moniz apresentou uma avaliação dos primeiros 20 pacientes submetidos à cirurgia, observando que sete haviam se curado ou melhorado significativamente, sete haviam apresentado alguma melhora e seis permaneceram como estavam anteriormente. Estes dados foram interpretados, à época, como um sucesso retumbante do tratamento - a grande questão é que nenhum avaliação rigorosa e de longo prazo foi feita, o que teria demonstrado uma série de danosos efeitos colaterais da cirurgia. Além disso não fica claro em sua avaliação o que significa cura ou melhora significativa. Como questiona o famoso neurologista Oliver Sacks no livro Um antropólogo em marte, "o que se havia alcançado nunca foi a 'cura' é claro, mas um estado dócil, um estado de passividade tão (ou mais) distante da 'saúde' quanto os sintomas ativos originais, e (ao contrário deles) sem a possibilidade de ser resolvido ou revertido". De acordo com o psiquiatra Jeffrey Lieberman, autor do livro Psiquiatria: uma história não contada, esta "docilidade" obtida pela psicocirurgia se tornou facilmente perceptível nas instituições manicomiais de todo o mundo. "Durante séculos, o padrão da trilha sonora dos manicômios era composto por um barulho e uma agitação contínuos. Agora o ruído turbulento fôra substituído por um silêncio mais agradável", aponta o autor, ao que poderíamos questionar: agradável para quem, Dr. Lieberman?

Procedimento da lobotomia transorbital
Mais à frente, o procedimento criado por Moniz  foi aperfeiçoado, e banalizado, pelo neuropsiquiatra norte-americano Walter Freeman (1895-1972), sem dúvida alguma o principal responsável pela popularização da psicocirurgia nos Estados Unidos e no mundo - e também, alguns diriam, por seu posterior declínio. Inicialmente, Freeman, em parceria com seu colega James Watts (1904-1994), um habilidoso neurocirurgião da Universidade George Washington, se utilizou de uma técnica semelhante àquela empregada por Moniz em Portugal, realizando a primeira leucotomia nos Estados Unidos no dia 14 de setembro de 1936. Após realizá-la sem grandes modificações nos dez anos seguintes, Freeman acabou por desenvolver uma técnica própria, bem mais grotesca mas também menos invasiva, mais barata e mais rápida, chamada por ele de lobotomia transorbital - procedimento que Watts não viu com bons olhos e que acabou por selar o fim da produtiva parceria entre os dois pesquisadores. Nesta nova técnica, praticada pela primeira vez em 1946, um instrumento de metal pontiagudo semelhante a um picador de gelo era introduzido com a ajuda de um martelo logo acima da órbita ocular - daí o nome transorbital - e movimentado de um lado para o outro, destruindo, assim, partes do lobo frontal do cérebro - isto após o paciente ser submetido a uma série de aplicações de eletrochoque até perder a consciência, procedimento que servia ao mesmo tempo como anestésico e como parte do tratamento, misto de lobotomia e eletrochoque. Esta técnica, ao contrário daquela praticada por Moniz, poderia ser realizada sem assepsia e em qualquer lugar, e não exclusivamente em um hospital. E foi justamente o que fez Freeman, que circulou por todo os Estados Unidos realizando lobotomias a bordo de uma van batizada posteriormente de Lobotomóvel. Estima-se que Freeman tenha realizado, sozinho, 3500 das cerca de 40 mil lobotomias praticadas nos Estados Unidos.

Relato de paciente refratário ao tratamento com a psicocirurgia
No entanto, com a chegada dos anos 50 a psicocirurgia entraria em um rápido declínio, praticamente desaparecendo ao final desta década - o que é comumente atribuído à criação e disseminação de uma nova modalidade de tratamento biológico: os remédios psiquiátricos ou psicofármacos. No entanto, seria um tanto simplista atribuir o declínio da psicocirurgia exclusivamente à ascensão dos psicofármacos, pois certamente muitos outros fatores estiveram em jogo. Dentre eles é importante apontar que a psicocirurgia acumulou, ao longo do tempo, uma série de controvérsias. Na verdade, desde que foi inventada em 1935 a técnica sempre foi alvo de inúmeras críticas, tanto técnicas quanto éticas. Com relação aos aspectos técnicos, foram se acumulando na literatura médica relatos e descrições de inúmeras complicações pós-operatórias como hemorragias, infecções, alterações significativas no afeto e na personalidade e até mesmo mortes. Em seu início a psicocirurgia era realizada apenas em caráter excepcional - Moniz, por exemplo, só prescrevia e realizava a cirurgia quando todas as demais alternativas haviam falhado -, no entanto, com a banalização do procedimento realizada por Freeman, a cirurgia passou a ser realizada de forma cada vez menos criteriosa em um número cada vez maior de pessoas com os problemas mais variados e, com isso se multiplicaram relatos de problemas decorrentes de sua aplicação e também análises críticas ao procedimento. Com a entrega do Prêmio Nobel a Moniz, em 1949, a situação da psicocirurgia só piorou: mais e mais controvérsias e críticas foram se acumulando, especialmente em relação aos seus aspectos éticos. Hoje sabemos que o procedimento foi utilizado não somente como forma de tratamento mas também, em muitos manicômios, como mecanismo de "docilização" dos pacientes, como estratégia de punição para o "mau comportamento" e como método de estudo do cérebro, a despeito de todas as diretrizes éticas para a pesquisa com seres humanos existentes naquele momento. De toda forma, para além de um método visto atualmente como algo essencialmente negativo, a psicocirurgia foi uma tentativa, dentre outras, de lidar com o desafio da doença mental. Aos olhos atuais ela pode parecer estúpida e cruel, mas, como aponta João Lobo Antunes, neurocirurgião português e biógrafo de Moniz, "todo olhar para trás é inevitavelmente deformado pelos óculos do tempo que se vive".

Egas Moniz foi o segundo pesquisador a ganhar o Prêmio Nobel de Medicina por trabalhos relacionados à área da Psiquiatria, O primeiro foi  Julius Wagner-Jauregg (1857-1940), premiado em 1907 (na imagem ele está de paletó preto, à direita). Julius foi o criador da piroterapia por infecção de malária, um procedimento que consistia em infectar o paciente com malária de forma a gerar febres (daí o nome: piro = fogo). Na imagem um paciente recebe uma injeção com o parasita causador da malária.  Fonte da imagem: Science
Egas Moniz, criador da angiografia e da leucotomia pré-frontal. Recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1949. Fonte: Crônicas Professor Ferrão

Nota portuguesa de dez mil escutos confeccionada, em 1989, em homenagem a Egas Moniz. Fonte: CMjornal
Imagem em perfil da primeira angiografia cerebral realizada no Brasil por Augusto Brandão Filho sob orientação de Egas Moniz, durante sua visita ao país, em 1928. O procedimento foi desenvolvido por Moniz anteriormente à criação da leucotomia e é utilizado até hoje. Fonte: Gusmão (2002)



http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2002000200030
Walter Freeman realizando uma lobotomia transorbital no meio de várias pessoas.

Instrumentos utilizados por Walter Freeman na realização da lobotomia transorbital. Fonte: 4thwavenow



Walter Freeman e James Watts analisam uma imagem de Raio-X antes de uma operação psicocirúrgica. Fonte: Wikipedia
Ilustração do tipo antes/depois de um homem submetido à lobotomia. Afirma a legenda sobre o caso 123, antes da operação: "Perplexo, incapaz de resolver um simples problema". Dez dias após a operação:  "Ele não estava mais incomodado com suas obsessões e parecia bastante satisfeito consigo mesmo". O livro  Psychosurgery In The Treatment Of Mental Disorders And Intractable Pain, publicado por Freeman em 1950, está repleto de ilustrações e casos como esse.
Walter Freeman em seu "Lobotomóvel", utilizado nas viagens que fez pelos Estados Unidos realizando lobotomias. Fonte: Quacks & Hacks

Cena do filme Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, EUA, 1975). Baseado no livro homônimo do escritor Ken Kesey e vencedor de inúmeros prêmios Oscar, este filme tornou-se um marco na luta antimanicomial ao expor o terror vivido por inúmeros pacientes em instituições asilares. Dentre os tratamentos retratados pelo filme - utilizados muitas vezes como punições por "mau comportamento" - estão o eletrochoque e a lobotomia. Embora tenha sido lançado num momento em que a lobotomia já não era mais praticada, ele trouxe à tona a desumanidade deste procedimento.

Cena do filme Nise - O coração da loucura (Brasil, 2016), que retrata o trabalho da renomada psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) à frente da "Seção de Terapêutica Ocupacional" no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro. Tendo iniciado seu trabalho neste local em 1944, Nise sempre se colocou frontalmente contra tratamentos psiquiátricos populares na época, como o eletrochoque e a lobotomia, defendendo a utilização da arte, em especial da pintura, como atividade terapêutica. Em 1952, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, espaço dedicado à exposição e ao estudo das obras produzidas pelos pacientes do hospital. Este museu encontra-se ativo até os dias atuais. Fonte da imagem: Academia Brasileira de Cinema

CENAS FORTES: video de Walter Freeman aplicando a lobotomia transorbital em uma paciente

Referências consultadas para a elaboração deste post:
Livro: Egas Moniz - Uma biografia - João Lobo Antunes (Civilização Brasileira, 2013)
Livro: Psiquiatria: uma história não-contada - Jeffrey Lieberman (Martins Fontes, 2016)
Livro: Um antropologo em marte - Oliver Sacks (Companhia das Letras, 1995)
Livro: Mente e cérebro - Lauren Slater (Ediouro, 2004)
Artigo: The early argument for prefrontal leucotomy - L.  Boettcher e S. Menacho
Artigo: Psychosurgery, ethics and media - J. Caruso e J. Sheehan