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quinta-feira, 23 de maio de 2019

Em choque: uma breve história da Eletroconvulsoterapia

Aplicação de ECT no Hospital de Virginia, nos EUA, em 1949
Em uma polêmica Nota Técnica publicada em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde estabeleceu novas diretrizes para a política de saúde mental no Brasil. Dentre outras medidas questionáveis, o Ministério estabeleceu a ampliação da rede de hospitais psiquiátricos, a possibilidade de internação de crianças e adolescentes e também a aquisição e disponibilização pelo SUS de equipamentos de Eletroconvulsoterapia (ECT) para o "tratamento de pacientes que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas". Popularmente conhecido como "eletrochoque" este tratamento tornou-se, juntamente com a lobotomia, um símbolo dos equívocos e crueldades cometidos - em nome da razão - pela psiquiatria e pela medicina de uma forma geral. No entanto, também como a lobotomia, a ECT foi vista na época de sua criação como um tratamento inovador, seguro, eficaz e - acredite se quiser - muito menos agressivo e desumano que as outras opções terapêuticas disponíveis naquele momento, como a Terapia por Choque de Insulina (que induzia os pacientes ao coma), a Malarioterapia ou Piroterapia por infecção de malária (que causava terríveis febres) e a Terapia convulsiva (que induzia a violentas convulsões). Posteriormente a ECT passou a ser mal vista e foi deixada de lado; no entanto, ela nunca deixou de ser aplicada. Até os dias atuais ela é utilizada, de uma maneira bastante diferente de quando foi criada, em pessoas com graves transtornos mentais refratárias a outros tratamentos. Especificamente com relação à referida Nota Técnica a preocupação de muitos profissionais e pesquisadores da área da saúde mental é que a aquisição e disponibilização de equipamentos de ECT pelo SUS possa favorecer um uso equivocado e banalizado da técnica, como ocorreu logo após sua criação, na década de 1930. Esta é, sem dúvida alguma, uma preocupação legítima, haja vista a falta de fiscalização adequada em inúmeros serviços públicos; além disso há o questionamento, igualmente pertinente, sobre se realmente vale a pena investir os escassos recursos da área da saúde em dispendiosos aparelhos de ECT - e também no provisionamento das clínicas e na capacitação dos aplicadores e equipe de apoio - ao invés de empregar tais recursos na melhoria dos serviços e dispositivos de saúde mental já incorporados ao SUS. Por fim, há que se questionar também se esta politica não estaria atendendo e beneficiando prioritariamente o lobby da indústria dos dispositivos médicos, mais do que os próprios pacientes. Por outro lado, se as diretrizes para o uso da técnica forem rigorosamente seguidas e sua utilização ocorrer apenas como último recurso terapêutico, e jamais como método punitivo e disciplinar, creio que as resistências à sua utilização diminuiriam consideravelmente - a questão é que eu duvido muito que a fiscalização desta atividade consiga ser realizada a contento, de forma a evitar excessos e usos equivocados. De toda forma, para além de toda esta polêmica, gostaria no presente texto de apresentar brevemente a história da ECT desde seu desenvolvimento até a atualidade. 

Violenta convusão induzida por Metrazol
A eletroconvulsoterapia, como o próprio nome indica, é um procedimento terapêutico que pretende gerar convulsões nos pacientes por meio da aplicação de correntes elétricas na região da cabeça - entende-se, neste caso, que as convulsões possuem um valor terapêutico na medida em que teriam a capacidade de aliviar certos sintomas psiquiátricos. No entanto, a ECT não foi o primeiro procedimento médico que visou a geração de "convulsões terapêuticas" nos pacientes. No início do século XX alguns psiquiatras notaram uma certa incompatibilidade entre a psicose e a epilepsia, o que significava que pacientes psicóticos muito raramente eram epiléticos ou apresentavam crises convulsivas. Com esta observação em mente - posteriormente refutada pela comunidade científica - o psiquiatra húngaro Ladisla Joseph von Meduna (1896-1964) começou, em 1933, a experimentar diferentes substâncias para induzir convulsões em animais e, posteriormente, em pacientes psicóticos. Inicialmente tentou a injeção de cânfora e de outras substâncias de forma intramuscular, mas os resultados não foram significativos; finalmente testou a injeção intravenosa de uma preparação de cânfora sintética menos tóxica denominada pentilenotetrazol, também conhecida como metrazol ou cardiazol. E acabou por descobrir que os sintomas psicóticos diminuiam consideravelmente após um ataque convulsivo induzido por esta substância - tratamento que acabou por ser chamado de terapia convulsiva. O grande problema é que o metrazol induzia nos pacientes um terrível sentimento de morte iminente e também levava a convulsões extremamente violentas. Como aponta o psiquiatra Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria - Uma história não contada, um estudo realizado em 1939 revelou que 43% dos pacientes submetidos à terapia convulsiva tiveram vértebras fraturadas durante as terríveis convulsões causadas pelo metrazol. Em função destes e outros problemas, os médicos começaram, então, a buscar outras maneiras, mais seguras e menos agressivas, de induzir convulsões nos pacientes.

Protótipo do primeiro aparelho de "eletrochoque"
Esta busca levou, no final da década de 1930, na Itália, ao desenvolvimento da Eletroconvulsoterapia pelo neurologista e neurocirurgião italiano Ugo Cerletti (1877-1963) em parceria com seu colega Lucio Bini (1908-1964). Inicialmente, Cerletti induziu experimentalmente convulsões em cachorros por meio de choques elétricos aplicados na cabeça. O pesquisador chegou a conceber a aplicação do mesmo método em seres humanos mas foi dissuadido por colegas. Posteriormente, enquanto comprava carne em um açougue local descobriu que os porcos eram abatidos depois de serem entorpecidos pela aplicação de correntes elétricas em suas cabeças, o que o fez questionar se o mesmo efeito "anestésico" ocorreria em humanos. Com esta ideia em mente, Cerletti recorreu a Bini para construir, em 1938, o primeiro aparelho voltado para aplicação de "choques terapêuticos" em seres humanos. No dia 15 de Abril deste ano, os pesquisadores utilizaram o aparelho, pela primeira vez, em um paciente esquizofrênico e o resultado ocorreu exatamente como esperado: após despertar da anestesia causada pelo choque os pesquisadores observaram significativas melhoras no quadro sintomático do paciente. De acordo com Franz Alexander e Sheldon Selesnick no livro História da psiquiatria, a partir desta primeira aplicação "tornou-se logo evidente que o eletrochoque era superior ao Metrazol, pois era menos perigoso, menos dispendioso e causava convulsão mais branda. Devido à simplicidade de seu processo e aos resultados favoráveis, o eletrochoque, na década de 1940, já substituia os tratamentos de choque de insulina na esquizofrenia". Na mesma direção, Jeffrey Lieberman, no já mencionado livro Psiquiatria - Uma história não contada, afirma que "a ECT significou um substituto bem vindo à terapia do metrazol porque era mais barata, menos aterrozizante para os pacientes (não havia mais a sensação de morte iminente), menos perigosa (nada de costelas quebradas), mais conveninente (bastava ligar e desligar a máquina) e mais eficaz. Pacientes deprimidos, em particular, frequentemente apresentavam melhoras surpreendentes de humor após apenas algumas sessões; e embora a ECT tivesse alguns efeitos colaterais, eles não eram nada comparados aos riscos alarmantes da terapia do coma, da terapia da malária ou da lobotomia. Era, de fato, um tratamento milagroso".

Cena do filme Um estranho no ninho (1975)
A partir da década de 1940 a técnica desenvolvida por Celetti e Bini foi amplamente aplicada em hospitais psiquiátricos de todo o mundo, inclusive no Brasil. Posteriormente, em função tanto do desenvolvimento das primeiras medicações psiquiátricas ou psicofármacos, no início da década de 1950, quanto dos crescentes questionamentos relativos aos efeitos colaterais e aos usos equivocados da técnica, a ECT acabou por perder muito de sua popularidade inicial. Especificamente com relação aos efeitos colaterais, um dos mais conhecidos e documentados é a perda de memória - que na maioria dos casos é temporária, e o paciente em pouco tempo retoma as lembranças, mas que em alguns casos torna-se definitiva, e o paciente passa a ter grandes dificuldades de memorização. Curiosamente, no início da aplicação da ECT este efeito colateral de esquecimento temporário foi considerado vantajoso na medida em que fazia o paciente se esquecer do desagradável procedimento de ser eletrocutado. Outros efeitos colaterais que ocorreram nos primeiros anos de aplicação da ECT - como fraturas ósseas e distensões musculares - se deviam ao fato de os aplicadores não utilizarem qualquer forma de anestesia ou relaxamento muscular. Posteriormente, com a introdução do suxametônio, um relaxante muscular, associado com um anestésico de curta duração, muitos desses outros efeitos colaterais foram minimizados, ainda que não totalmente eliminados. Já com relação aos usos equivocados da ECT são notórias as utilizações da técnica como forma de punição - e mesmo tortura - nas instituições psiquiátricas de todo o mundo - basta assistir ao clássico filme Um estranho no ninho (1975) e também ao brasileiro Bicho de sete cabeças (2001) para entender como isto ocorria. Em função de tudo isso, a técnica acabou por ser colocada de lado na área de saúde mental. No entanto, como já apontei acima, a ECT nunca deixou de ser utilizada. Após sua criação, no final da década de 1930, a técnica foi amplamente usada até a década de 1960, quando começou a ser preterida e marginalizada; na década de 1980 a ECT teve uma espécie de ressurgimento, ainda que impregnado por uma visão extremamente negativa, que permanece. Atualmente, a técnica é empregada de uma maneira completamente diferente de quando foi criada. Como aponta Jeffrey Lieberman, "hoje, o avanço tecnológico permite ajustar a ECT para cada paciente, de modo que seja usada a quantidade mínima de corrente elétrica para induzir ao surto [ou convulsão]. Além disso, a colocação estratégica dos eletrodos em lugares específicos da cabeça pode minimizar os efeitos colaterais. Agentes anestésicos modernos combinados com relaxantes musculares e oxigenação abundante tornam a ECT um procedimento extremamente seguro". Certamente há pesquisadores que questionam essa suposta segurança da ECT - indico, nesse sentido os artigos sobre o tema do blog Mad in Brasil; no entanto, ainda que não se trate de um procedimento 100% seguro - e nenhum procedimento ou intervenção é isento de riscos e efeitos colaterais - ainda assim a eletroconvulterapia continuará a existir e a ser aplicada. O que precisamos fazer, enquanto profissionais e pesquisadores da área de saúde mental, é continuar avaliando os efeitos positivos e negativos das intervenções biológicas em psiquiatria - que incluem desde a ECT até os psicofármacos - e paralelamente buscar alternativas psicossociais que nos ajudem a lidar com os sofrimentos e desequilíbrios humanos.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Destruindo o cérebro para curar a mente: uma história ilustrada da psicocirurgia

A lobotomia é entendida atualmente como um procedimento terrível, antiético e desumano, que nunca deveria ter existido; no entanto, após ser criada, na década de 1930, a técnica foi quase imediatamente compreendida como o melhor e mais científico tratamento disponível para pessoas com graves transtornos mentais - tanto que seu criador foi agraciado, no ano de 1949, com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. As alternativas à lobotomia, na época, incluíam a terapia por choque insulínico, que consistia na indução do paciente ao coma pela aplicação de uma grande dosagem de insulina, e a piroterapia, também chamada de malarioterapia, que envolvia a inoculação do parasita da malária no paciente de forma a gerar terríveis febres - em ambos os casos acreditava-se que após o paciente se restabelecer, do coma e das febres, ocorreriam melhoras em seu estado mental e comportamental. Tais terapias podem parecer igualmente terríveis, mas também elas foram amplamente entendidas como "avanços" ao que existia anteriormente, tanto que o criador da malarioterapia, o médico-psiquiatra Julius Wagner von Jauregg (1857-1940) foi, do mesmo modo, agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1927. Já a lobotomia, chamada inicialmente de leucotomia pré-frontal, foi desenvolvida pelo médico neuro-psiquiatra português Antônio Egas Moniz (1874-1955), sendo aplicada pela primeira vez em 1935, na cidade de Lisboa, em Portugal.

Dr. Fulton com a "lobotomizada" macaca Becky
O procedimento, que consistia na destruição de parte dos lobos frontais dos pacientes foi fortemente inspirado em  experimentos feitos com animais entre o final do século XIX e o início do século XX - com destaque para aquele realizado pelos pesquisadores norte-americanos Carlyle Jacobson e John Fulton, da Universidade de Yale, que danificaram os lobos pré-frontais de duas chimpanzés, Becky e Lucy, e puderam observar significativas mudanças de comportamento,  especialmente em Becky: antes agitada e agressiva, a macaca tornou-se quieta e pacífica, sem que, aparentemente, sua memória e inteligência fossem afetadas. Este experimento foi apresentado, juntamente com outros trabalhos semelhantes, no II Congresso Internacional de Neurologia, que ocorreu em Londres entre os dias 29 de Julho e 02 de Agosto de 1935. Moniz estava presente nesta apresentação e após ela ser finalizada conta-se que ele teria se levantado e questionado os pesquisadores, diante de todos os presentes, se o mesmo procedimento não poderia ser aplicado em humanos para tratar certas doenças mentais. Embora a mitologia criada em torno dessa cena sugira que a ideia da leucotomia tenha surgido neste preciso momento, ela já havia sido aventada por Moniz nos anos anteriores e conectava-se totalmente à sua concepção de "doença mental" como algo inteiramente orgânico, produto de uma rede cerebral danificada. A apresentação de Jacobson e Fulton serviu, assim, mais como confirmação de suas ideias do que como fonte de inspiração. De toda forma, o ponto central de seus questionamentos, que foi tomando corpo ao longo dos anos, era o seguinte:  se a mente é criação do cérebro, por que não intervir diretamente no cérebro para curar a mente?

Procedimento da leucotomia pré-frontal
De volta à Portugal, Moniz decidiu colocar em prática esta ideia e no dia 12 de Novembro de 1935, pouco mais de três meses após o famoso Congresso - e com a colaboração fundamental do neurocirurgião Pedro Almeida Lima -, realizou a primeira leucotomia, que passaria a ser chamada por ele também de "psicocirurgia" por se tratar de uma intervenção realizada no cérebro cujo objetivo era alterar a psiquê, isto é, a mente do paciente - uma "neurocirurgia", por outro lado, não tem e nunca teve esta pretensão, limitando-se a remover ou reparar as partes doentes do cérebro. Pois a primeira paciente (ou poderíamos dizer vítima?) foi a Sra. M, uma mulher de 63 anos profundamente deprimida, ansiosa e paranoica que, após ser anestesiada, teve dois pequenos furos feitos em seu crânio na parte superior, nos lados direito e esquerdo, e uma certa quantidade de álcool absoluto introduzida com uma injeção - a ideia era que essa substância "neurotóxica" destruísse as conexões celulares do lobo frontal. Posteriormente, Moniz optou por substituir a aplicação de álcool pela utilização de um instrumento chamado por ele de "leucótomo", que consistia de uma cânula com 11 centímetros de comprimento que era introduzida nos pequenos buracos feitos no crânio e movimentada de um lado para o outro, destruindo, assim, uma parte da substância branca do cérebro - não por acaso a expressão leuco-tomia significa, literalmente, "corte no branco", isto é, na substância branca. O procedimento foi oficialmente apresentado ao mundo através de uma monografia publicada por Moniz em 1936 com o título Tentatives opératoires dans le traitement de certaines psychoses [Tentativas operatórias no tratamento de certas psicoses]. Nesta monografia, além de descrever a nova técnica, Moniz apresentou uma avaliação dos primeiros 20 pacientes submetidos à cirurgia, observando que sete haviam se curado ou melhorado significativamente, sete haviam apresentado alguma melhora e seis permaneceram como estavam anteriormente. Estes dados foram interpretados, à época, como um sucesso retumbante do tratamento - a grande questão é que nenhum avaliação rigorosa e de longo prazo foi feita, o que teria demonstrado uma série de danosos efeitos colaterais da cirurgia. Além disso não fica claro em sua avaliação o que significa cura ou melhora significativa. Como questiona o famoso neurologista Oliver Sacks no livro Um antropólogo em marte, "o que se havia alcançado nunca foi a 'cura' é claro, mas um estado dócil, um estado de passividade tão (ou mais) distante da 'saúde' quanto os sintomas ativos originais, e (ao contrário deles) sem a possibilidade de ser resolvido ou revertido". De acordo com o psiquiatra Jeffrey Lieberman, autor do livro Psiquiatria: uma história não contada, esta "docilidade" obtida pela psicocirurgia se tornou facilmente perceptível nas instituições manicomiais de todo o mundo. "Durante séculos, o padrão da trilha sonora dos manicômios era composto por um barulho e uma agitação contínuos. Agora o ruído turbulento fôra substituído por um silêncio mais agradável", aponta o autor, ao que poderíamos questionar: agradável para quem, Dr. Lieberman?

Procedimento da lobotomia transorbital
Mais à frente, o procedimento criado por Moniz  foi aperfeiçoado, e banalizado, pelo neuropsiquiatra norte-americano Walter Freeman (1895-1972), sem dúvida alguma o principal responsável pela popularização da psicocirurgia nos Estados Unidos e no mundo - e também, alguns diriam, por seu posterior declínio. Inicialmente, Freeman, em parceria com seu colega James Watts (1904-1994), um habilidoso neurocirurgião da Universidade George Washington, se utilizou de uma técnica semelhante àquela empregada por Moniz em Portugal, realizando a primeira leucotomia nos Estados Unidos no dia 14 de setembro de 1936. Após realizá-la sem grandes modificações nos dez anos seguintes, Freeman acabou por desenvolver uma técnica própria, bem mais grotesca mas também menos invasiva, mais barata e mais rápida, chamada por ele de lobotomia transorbital - procedimento que Watts não viu com bons olhos e que acabou por selar o fim da produtiva parceria entre os dois pesquisadores. Nesta nova técnica, praticada pela primeira vez em 1946, um instrumento de metal pontiagudo semelhante a um picador de gelo era introduzido com a ajuda de um martelo logo acima da órbita ocular - daí o nome transorbital - e movimentado de um lado para o outro, destruindo, assim, partes do lobo frontal do cérebro - isto após o paciente ser submetido a uma série de aplicações de eletrochoque até perder a consciência, procedimento que servia ao mesmo tempo como anestésico e como parte do tratamento, misto de lobotomia e eletrochoque. Esta técnica, ao contrário daquela praticada por Moniz, poderia ser realizada sem assepsia e em qualquer lugar, e não exclusivamente em um hospital. E foi justamente o que fez Freeman, que circulou por todo os Estados Unidos realizando lobotomias a bordo de uma van batizada posteriormente de Lobotomóvel. Estima-se que Freeman tenha realizado, sozinho, 3500 das cerca de 40 mil lobotomias praticadas nos Estados Unidos.

Relato de paciente refratário ao tratamento com a psicocirurgia
No entanto, com a chegada dos anos 50 a psicocirurgia entraria em um rápido declínio, praticamente desaparecendo ao final desta década - o que é comumente atribuído à criação e disseminação de uma nova modalidade de tratamento biológico: os remédios psiquiátricos ou psicofármacos. No entanto, seria um tanto simplista atribuir o declínio da psicocirurgia exclusivamente à ascensão dos psicofármacos, pois certamente muitos outros fatores estiveram em jogo. Dentre eles é importante apontar que a psicocirurgia acumulou, ao longo do tempo, uma série de controvérsias. Na verdade, desde que foi inventada em 1935 a técnica sempre foi alvo de inúmeras críticas, tanto técnicas quanto éticas. Com relação aos aspectos técnicos, foram se acumulando na literatura médica relatos e descrições de inúmeras complicações pós-operatórias como hemorragias, infecções, alterações significativas no afeto e na personalidade e até mesmo mortes. Em seu início a psicocirurgia era realizada apenas em caráter excepcional - Moniz, por exemplo, só prescrevia e realizava a cirurgia quando todas as demais alternativas haviam falhado -, no entanto, com a banalização do procedimento realizada por Freeman, a cirurgia passou a ser realizada de forma cada vez menos criteriosa em um número cada vez maior de pessoas com os problemas mais variados e, com isso se multiplicaram relatos de problemas decorrentes de sua aplicação e também análises críticas ao procedimento. Com a entrega do Prêmio Nobel a Moniz, em 1949, a situação da psicocirurgia só piorou: mais e mais controvérsias e críticas foram se acumulando, especialmente em relação aos seus aspectos éticos. Hoje sabemos que o procedimento foi utilizado não somente como forma de tratamento mas também, em muitos manicômios, como mecanismo de "docilização" dos pacientes, como estratégia de punição para o "mau comportamento" e como método de estudo do cérebro, a despeito de todas as diretrizes éticas para a pesquisa com seres humanos existentes naquele momento. De toda forma, para além de um método visto atualmente como algo essencialmente negativo, a psicocirurgia foi uma tentativa, dentre outras, de lidar com o desafio da doença mental. Aos olhos atuais ela pode parecer estúpida e cruel, mas, como aponta João Lobo Antunes, neurocirurgião português e biógrafo de Moniz, "todo olhar para trás é inevitavelmente deformado pelos óculos do tempo que se vive".

Egas Moniz foi o segundo pesquisador a ganhar o Prêmio Nobel de Medicina por trabalhos relacionados à área da Psiquiatria, O primeiro foi  Julius Wagner-Jauregg (1857-1940), premiado em 1907 (na imagem ele está de paletó preto, à direita). Julius foi o criador da piroterapia por infecção de malária, um procedimento que consistia em infectar o paciente com malária de forma a gerar febres (daí o nome: piro = fogo). Na imagem um paciente recebe uma injeção com o parasita causador da malária.  Fonte da imagem: Science
Egas Moniz, criador da angiografia e da leucotomia pré-frontal. Recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1949. Fonte: Crônicas Professor Ferrão

Nota portuguesa de dez mil escutos confeccionada, em 1989, em homenagem a Egas Moniz. Fonte: CMjornal
Imagem em perfil da primeira angiografia cerebral realizada no Brasil por Augusto Brandão Filho sob orientação de Egas Moniz, durante sua visita ao país, em 1928. O procedimento foi desenvolvido por Moniz anteriormente à criação da leucotomia e é utilizado até hoje. Fonte: Gusmão (2002)



http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2002000200030
Walter Freeman realizando uma lobotomia transorbital no meio de várias pessoas.

Instrumentos utilizados por Walter Freeman na realização da lobotomia transorbital. Fonte: 4thwavenow



Walter Freeman e James Watts analisam uma imagem de Raio-X antes de uma operação psicocirúrgica. Fonte: Wikipedia
Ilustração do tipo antes/depois de um homem submetido à lobotomia. Afirma a legenda sobre o caso 123, antes da operação: "Perplexo, incapaz de resolver um simples problema". Dez dias após a operação:  "Ele não estava mais incomodado com suas obsessões e parecia bastante satisfeito consigo mesmo". O livro  Psychosurgery In The Treatment Of Mental Disorders And Intractable Pain, publicado por Freeman em 1950, está repleto de ilustrações e casos como esse.
Walter Freeman em seu "Lobotomóvel", utilizado nas viagens que fez pelos Estados Unidos realizando lobotomias. Fonte: Quacks & Hacks

Cena do filme Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, EUA, 1975). Baseado no livro homônimo do escritor Ken Kesey e vencedor de inúmeros prêmios Oscar, este filme tornou-se um marco na luta antimanicomial ao expor o terror vivido por inúmeros pacientes em instituições asilares. Dentre os tratamentos retratados pelo filme - utilizados muitas vezes como punições por "mau comportamento" - estão o eletrochoque e a lobotomia. Embora tenha sido lançado num momento em que a lobotomia já não era mais praticada, ele trouxe à tona a desumanidade deste procedimento.

Cena do filme Nise - O coração da loucura (Brasil, 2016), que retrata o trabalho da renomada psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) à frente da "Seção de Terapêutica Ocupacional" no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro. Tendo iniciado seu trabalho neste local em 1944, Nise sempre se colocou frontalmente contra tratamentos psiquiátricos populares na época, como o eletrochoque e a lobotomia, defendendo a utilização da arte, em especial da pintura, como atividade terapêutica. Em 1952, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, espaço dedicado à exposição e ao estudo das obras produzidas pelos pacientes do hospital. Este museu encontra-se ativo até os dias atuais. Fonte da imagem: Academia Brasileira de Cinema

CENAS FORTES: video de Walter Freeman aplicando a lobotomia transorbital em uma paciente

Referências consultadas para a elaboração deste post:
Livro: Egas Moniz - Uma biografia - João Lobo Antunes (Civilização Brasileira, 2013)
Livro: Psiquiatria: uma história não-contada - Jeffrey Lieberman (Martins Fontes, 2016)
Livro: Um antropologo em marte - Oliver Sacks (Companhia das Letras, 1995)
Livro: Mente e cérebro - Lauren Slater (Ediouro, 2004)
Artigo: The early argument for prefrontal leucotomy - L.  Boettcher e S. Menacho
Artigo: Psychosurgery, ethics and media - J. Caruso e J. Sheehan

sábado, 10 de novembro de 2012

Entrevista com o cartunista Miguel Montenegro (Psicopatos)


Quem acompanha este blog, sabe da minha paixão por cartuns, charges e quadrinhos, assim como por assuntos do mundo psi. E quando algum artista consegue unir estes dois campos, criando cartuns inspirados em temas psi, eu vou à loucura! E eis que encontrei no Facebook uma fã-page de uma série de cartuns chamada Psicopatos e desde então acompanho os geniais desenhos do cartunista português Miguel Montenegro. Miguel trata em seus cartuns de questões absolutamente relevantes à área psi e não poupa críticas nem aos psiquiatras, representados pela figura de um porco, nem aos psicanalistas, representados por um ser que ele designa de gavião-vampiro. Segundo seus cartuns, não são só os psiquiatras que rotulam e patologizam; os psicanalistas também o fazem, com a diferença de não medicarem. O teste de Rorschach e até mesmo a "vaca sagrada" da psicanálise, são alvos constantes de seus cartuns.



Resolvi contatar Miguel para uma entrevista, assim como fez o psicólogo Vladimir Melo com o cartunista Pacha Urbano (autor da genial série "As traumáticas aventuras do filho do Freud" - veja a entrevista com ele aqui). Miguel gentilmente aceitou o convite. Enviei, então, as perguntas por email e ele respondeu. Segue abaixo o resultado:

Miguel, quando você começou a desenhar?

Desenho desde que me lembro, mas foi com onze anos que decidi ser ilustrador profissional quando crescesse. O meu sonho era fazer banda desenhada para a Marvel Comics. Quando consegui, o interesse foi esmorecendo aos poucos. Ter de desenhar oito horas por dia, todos os dias, pode-se tornar aborrecido.

Atualmente, você desenha profissionalmente ou somente por hobby?

Eu continuo a fazer trabalhos de ilustração para publicidade em regime free-lance, sobretudo storyboards, porque é a minha profissão. O meu objetivo é poder desenhar só por prazer, mas é possível que invista novamente na área da ilustração. Às vezes sinto aquela vontade antiga de voltar a desenhar mais regularmente. Normalmente passa rápido, mas vamos ver como é de futuro.




Qual sua relação com a Psicologia e com a Psicanálise?

Eu estou a terminar o mestrado em Psicologia Clínica. Neste momento estou a estagiar no serviço de psiquiatria do Hospital Sta. Maria, em Lisboa. Este ano espero ainda entrar na Sociedade Portuguesa de Psicoterapia Existencial.

Já fez análise ou psicoterapia em algum momento da sua vida?

Ando atento à procura de um terapeuta para dar início a esse processo. É tarefa difícil. Gostava de alguém cuja base teórica fosse fenomenológico-existencial, mas que também tivesse formação psicanalítica. Só conheço uma pessoa com essas características. É um professor meu com quem tenho uma relação próxima, pelo que não é a pessoa indicada. Mas não tenho pressa. Vai acontecer quando tiver de ser, se tiver de ser.



Quando e de que forma surgiu a ideia dos Psicopatos?

Os Psicopatos estão comigo desde o fim do primeiro ano do curso de psicologia. Na altura, a ideia era fazer uma tira ou outra, quando me confrontasse com algumas das contradições que encontramos nas “ciências” psicológicas, e que, manifestas de outra maneira, podiam ser mal aceites. Provavelmente por falta de tempo, fui adiando a ideia, e o primeiro Psicopatos nasceu em Fevereiro de 2012. Toda a gente gostou, até os professores de psicanálise. Só um é que me veio chatear, dando-me um raspanete em público. Enfim…Fiz mais duas ou três tiras, até que o ISPA, a minha universidade, mostrou interesse em publicar um livro de Psicopatos no fim do ano. Deram-me carta branca para desenhar o que quisesse, sem qualquer censura. Eu fiquei muito contente com a ideia, e passei a tentar produzir 2-3 tiras por semana. Agora que já temos quase 150 – embora só cerca de metade estejam publicadas no Facebook –, vamos começar a pensar em publicar tudo em livro.



Noto em seus cartuns, uma relação de amor e ódio com a psicanálise. Qual sua visão da psicanálise e dos psicanalistas?

É interessante essa observação. Algumas pessoas acham que eu odeio a psicanálise, o que é errado. Outras, mais perspicazes, percebem que o que faço é apresentar uma visão crítica da psicanálise, no sentido de a tentar compreender na sua essência. Nesse intuito, comecei a notar que algumas questões fundamentais ficam por responder: O Inconsciente existe? Se as pulsões são energias reais e não metafóricas, então porque não as conseguimos medir como uma energia típica da física? Como pode a psicanálise dizer-se humanista se desconsidera o individuo consciente a favor dessa coisa a que chama de Inconsciente e que nunca ninguém viu? A psicanálise diz-se ciência, mas não apresenta nenhum objeto concreto e real passível de ser estudado pelo método cientifico. Está mais próxima da astrologia do que da medicina.




Tenho uma curiosidade: qual a penetração da psicanálise em Portugal? Ela é disseminada por aí como é aqui no Brasil e na França?

Em Portugal, a psicanálise ainda é a corrente dominante. A corrente cognitivo-comportamental cada vez tem mais relevância, sobretudo pelas vantagens que apresenta em contexto hospitalar e institucional. Infelizmente, a corrente fenomenológico-existencial só agora está a aparecer, havendo menos de vinte terapeutas no pais todo. Espero poder vir a contribuir para a sua disseminação.




Percebo também uma crítica à psiquiatria e ao excesso de medicação. Como enxerga esta questão?

Considero que não há medicação nem a mais nem a menos. Ela deve ser aquela que o próprio deseja tomar, como e quando assim entender. Não encontro fundamento para que umas drogas sejam legais e outras ilegais, para além da manutenção de um monopólio financeiro por parte de alguns grupos económicos, todos eles associados à medicina, o que considero, no mínimo, imoral. 



Tal como em relação à psicanálise, nada tenho contra a psiquiatria em si mesma, como nada tenho contra a astrologia ou contra o nutricionismo. Defendo o direito de qualquer adulto poder aceder livremente a qualquer prestação de serviço, desde que o contrato entre si e o prestador de serviços seja realizado numa base de escolha livre e honesta entre ambas as partes. A minha atitude é sobretudo antifraude e anti-coerção. A psicanálise, ao dizer que é ciência, comete um fraude; ao “tratar” crianças, é coerciva. De igual forma, a psiquiatria, ao dizer que é medicina legítima com fundamento científico, comete um fraude: doenças mentais não são doenças reais, são doenças metafóricas; ao internar e medicamentar pessoas contra a sua vontade, é coerciva.

Agradeço muito sua disponibilidade por ceder esta entrevista. Um grande abraço.

Obrigado, Felipe. Foi divertido



Veja mais cartuns do Miguel aqui.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Antipsiquiatria e Cientologia: uma estranha relação



Alguns de vocês já devem ter assistido - e até compartilhado nas redes sociais - documentários como o "Marketing da loucura" ou o "Psiquiatria: uma indústria da morte" ou então o "DSM: a farsa mais mortífera da Psiquiatria", mas imagino que poucos saibam quem os produz e com que interesses. Apesar de tratarem de questões pertinentes, como a relação dos psiquiatras com a indústria farmacêutica, a falta de marcadores biológicos na Psiquiatria e os efeitos colaterais das medicações psicotrópicas, sempre me incomodei com o tom dramático, beirando o apocalíptico, destes videos. Resolvi pesquisar à respeito e acabei caindo no site da Comissão dos Cidadãos para os Direitos Humanos (CCHR), que é a entidade que produziu todos estes documentários, além de diversos outros materiais. Na seção "O que é o CCHR?" está escrito que a Comissão "é um serviço de vigilância da saúde mental sem fins lucrativos, responsável por ajudar a aprovar mais de 150 leis que protegem os indivíduos de práticas abusivas ou coercivas". Até aí nada de mais. O que me chamou a atenção realmente foi o seguinte trecho, no qual é explicada a origem da entidade: 

"A CCHR foi cofundada em 1969 pela Igreja da Scientology e o Professor Emérito de Psiquiatria, Dr. Thomas Szasz, numa altura em que os pacientes estavam a ser armazenados em instituições e despojados de todos os direitos constitucionais, civis e humanos".

Peraí! Deixa eu ver se entendi direito: a CCHR foi criada então pelo famoso - e recém-falecido - (anti)psiquiatra Thomas Szasz, autor de livros clássicos como "O mito da doença mental" e "A fabricação da Loucura", juntamente com... a Igreja da Cientologia. É isso mesmo? Sim, caro leitor. Para quem não sabe, a Igreja da Cientologia é aquela bizarra entidade religiosa fundada pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard e cujos adeptos mais famosos são o Tom Cruise e o John Travolta. Ontem de madrugada passou no GNT um documentário francês, chamado "Cientologia - A verdade sobre essa mentira" (disponível aqui), que expõe inúmeros podres desta seita tenebrosa. Não vou me deter aqui aos pormenores da Cientologia. Recomendo, àqueles que queiram saber mais, que assistam este documentário e também o sensacional episódio do South Park sobre a Cientologia (disponível legendado aqui). E fiquem atentos: está previsto para estrear no Brasil em Janeiro de 2013 o filme "The master" do diretor Paul Thomas Anderson, cujo enredo é inspirado na vida de L. Ron Hubbard. Veja o trailer abaixo:



A questão que me interessa neste post é a seguinte: o que pretende a Cientologia ao criticar a Psiquiatria? Foi com esta pergunta na cabeça que me deparei com o blog "Cientologia: a perigosa seita da ganância e do poder". Nele encontrei a resposta que procurava - especificamente aqui. Segundo tal blog, na década de 50, após a "revelação" da Dianética como o método terapêutico da Cientologia, L. Ron Hubbard sofreu duras críticas tanto da Associação Americana de Psiquiatria (APA) quanto da Associação Nacional de Saúde Mental (NMHA). Isto porque Hubbard pregava que todas as doenças são psicossomáticas e curáveis somente pelo método da Dianética, que inclui a ingestão de doses cavalares de vitaminas, sessões diárias de saunas e massagens. Qualquer medicação deveria ser completa e radicalmente abolida. Segundo o autor do blog, em função desta filosofia, "são inúmeros os casos noticiados de pessoas que morrem por falta de tratamento médico ou medicamentos em razão da proibição determinada pela Cientologia a seus fiéis". Este parece ter sido o caso do filho do ator John Travolta, cuja morte poderia ter sido evitada se ele tivesse tomado alguns medicamentos (saiba mais aqui). Desde a década de 50, portanto, a cientologia permanece em guerra contra a Medicina e, em especial, contra a Psiquiatria. De acordo com o blog, "para emprestar um ar de oficialidade à sua empreitada, a Cientologia, de tempos em tempos, cria 'organizações', 'comissões' e outras instituições com o fim de combater seu inimigo, a psiquiatria e outras concorrentes da área da saúde mental". A CCHR é fruto deste combate. Provavelmente a aproximação de Szasz com a Cientologia (ou será que foi o contrário?) ocorreu em função da existência deste inimigo em comum: a Psiquiatria ou, pelo menos, as práticas psiquiátricas usuais.

Segundo o site oficial da Cientologia, na seção de Perguntas e respostas (veja aqui), a igreja se opõe à Psiquiatria em função dos abusos históricos cometidos contra os doentes mentais. Segundo o site "ao longo da sua longa e trágica história a psiquiatria tem inventado numerosas 'curas' que finalmente provaram ser extremamente destrutivas. Nos séculos XVIII e XIX, pacientes mentalmente perturbados foram literalmente submetidos a aparelhos de tortura. Em seguida, eram banhos de gelo e choque de insulina. Em seguida, a terapia eletroconvulsiva que causava quebra de dentes e ossos, bem como perda de memória e de regressão a estados comatosos. Em seguida, foi a lobotomia pré-frontal com um picador de gelo através da órbita ocular. Hoje é com drogas". Segundo eles, as doenças mentais são farsas "elaboradas e mortais" e os tratamentos psiquiátricos não tem "nenhuma base na ciência e são brutais ao extremo". O curioso é que a cientologia, mesmo não sendo uma ciência - embora acredite ser - critica a ausência de cientificidade da Psiquiatria. Paradoxal, não? Isto me lembra um video, que comentei anos atrás, no qual uma organização religiosa critica a falta de embasamento científico das psicoterapias - como se as religiões o tivessem... Com relação aos tratamentos psiquiátricos eu discordo da cientologia. Na minha visão as medicações representaram, e ainda representam, um enorme avanço em relação aos tratamentos psiquiátricos anteriores. Se há um exagero na prescrição dos medicamentos é outra história.

Outra crítica da Cientologia à Psiquiatria é que ela rotula as pessoas "por atacado". Para eles, a Psiquiatria "é um negócio surpreendentemente lucrativo. Mas enquanto os psiquiatras fazem dinheiro fácil aos bilhões, a sociedade recebe uma nova geração de toxicodependentes ao longo da vida e, portanto, ainda mais consumidores para drogas psicotrópicas". Concordo que a Psiquiatria e a indústria farmacêutica obtém lucros imensos. Mas a cientologia não é, de forma alguma, uma associação sem fins lucrativos. Pelo contrário! Isto fica claro no documentário, que apresenta vários casos de pessoas que não conseguiam abandonar a igreja da cientologia em função das enormes dívidas contraídas com a seita no decorrer dos anos. Isto para não falar das luxuosas igrejas espalhadas por todo o mundo.

O que toda esta história mostra, na minha opinião, é que não é possível dividir o mundo entre heróis e vilões. Thomas Szasz, que para muitas pessoas e grupos é considerado um ícone de um certo pensamento crítico com relação à Psiquiatria, se aproximou de uma estranha seita com intenções um tanto obtusas. Da próxima vez que você for assistir a um documentário da CCHR - e antes de sair por aí compartilhando a "boa nova" - lembre-se desta estranha parceria e se pergunte: quais as intenções dos realizadores deste vídeo? Porque, ao contrário do dito popular, nem sempre o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo.


Thomas Szasz ao lado de Tom Cruise

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Psicofobia ou psiquiatriafobia?


Segundo matéria publicada anteontem na Folha de S. Paulo, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) está se mobilizando com o objetivo de criminalizar a Psicofobia. Mas o que é Psicofobia? Primeiro, vamos à explicação oficial, da ABP. Para eles, Psicofobia designa o preconceito contra portadores de doenças ou transtornos mentais. Trata-se de um neologismo, provavelmente criado pela associação. De acordo com a proposta de alteração do Código Penal, encampada pelo Senador Paulo Davim a partir da mobilização da ABP, será considerado crime, com pena de 2 a 4 anos, qualquer ação que dificulte ou impossibilite o acesso ao trabalho e à educação aos portadores de transtornos ou deficiências mentais. De uma forma mais ampla, a proposta criminaliza qualquer atitude preconceituosa e discriminatória com relação aos "doentes mentais". 

Colocando as coisas desta maneira, quem se colocaria contra tal proposta? Acredito que ninguém, pois acho difícil alguém, com um mínimo de bom senso, se colocar a favor do preconceito aos portadores de transtornos mentais. No entanto, a coisa é mais complexa. Analisando a definição de Psicofobia da ABP surgem, de cara, duas questões essenciais: o que é um transtorno mental? Quem são os portadores de transtornos mentais? Aqueles que já leram um pouco sobre a história das classificações psiquiátricas, sabem que o que é definido oficialmente como transtorno mental já mudou diversas vezes. Vários comportamentos que eram encarados e tratados como transtornos o deixaram de ser enquanto outras questões passaram a ser consideradas patologias. O DSM-5 vem aí em 2013 pra modificar ainda mais o que hoje é considerado transtorno mental. Tendo em vista esta característica metamórfica das categorias psiquiátricas, um questionamento se faz necessário: o que os defensores da criminalização da Psicofobia entendem por transtorno mental? 

Em um artigo denominado “O código penal e a psicofobia”, o presidente da ABP Antônio Geraldo da Silva aponta que cerca de 20% da população brasileira (mais de 40 milhões de pessoas) é portadora de algum transtorno mental, como a “esquizofrenia, bipolaridade, dislexia, autismo, ansiedade, transtornos alimentares e síndrome de Down”. Percebe-se que o que é entendido por “transtorno mental” engloba um amplo espectro de “problemas”, que vão desde a ansiedade e a dislexia até o autismo e a Síndrome de Down. Mesmo um leigo é capaz de compreender que são problemas muito diferentes, em vários sentidos. Uma Síndrome de Down é completamente diferente de uma Síndrome do Pânico, muito embora os psiquiatras biológicos modernos tendam a considerar ambas como distúrbios genéticos e cerebrais. Mas convenhamos: existem diferenças significativas entre os dois problemas. Chamar ambos de "transtorno mental" implica ignorar significativas distinções entre estas categorias. Mas isto é assunto para outro post.

Em outro artigo (“Psicofobia é crime”), publicado no jornal O Globo, Antônio Geraldo da Silva aponta para um crescimento tanto da incidência dos transtornos mentais quanto do preconceito com relação à seus portadores Segundo ele, combater o preconceito contra doentes mentais é tão necessário hoje, afirma, quanto o enfrentamento do preconceito contra negros, homossexuais e mulheres. Para ele, “se não se deve debochar ou subestimar de doenças como o câncer (...) também não há razão para as doenças mentais não serem encaradas com a seriedade que elas pedem e seus portadores exigem". Aponta ainda para a existência de "várias formas de preconceito, entre elas a própria negação da doença como algo menor ou passageiro”.

É este aspecto da criminalização da Psicofobia que realmente me preocupa. A indefinição do que é transtorno mental é "café pequeno" diante da possibilidade de se criminalizar o questionamento à Psiquiatria. Este aspecto da questão fica evidente no final da 
"Carta de Esclarecimento à Sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e tratamento" (analisada aqui), quando a ABP, referindo-se àqueles que questionam a existência e legitimidade do diagnóstico de TDAH, afirma  que "fornecer informações equivocadas e ocultar dados científicos bem documentados é dificultar. ou retardar o acesso da população ao diagnóstico ou a tratamento, é a expressão de uma das mais perversas formas de discriminação social: a Psicofobia". A expressão "informações equivocadas", no caso, parece se referir à informações discordantes ou alternativas à Psiquiatria oficial.


A utilização da expressão Psicofobia no contexto desta Carta aponta, na minha opinião, para um outro objetivo, mais oculto e não tão nobre, da cruzada em prol da criminalização da Psicofobia. Podemos entendê-la como uma estratégia da ABP de enquadrar todos aqueles que questionam certas categorias e as classificações psiquiátricas de uma forma geral, como preconceituosos com relação aos portadores. Neste  sentido, a Psicofobia se converteria numa Psiquiatriafobia e o que estaria em jogo não seria propriamente o preconceito com relação aos portadores, mas o "preconceito" com relação à Psiquiatria oficial. Talvez, com todo esse movimento, a associação pretenda eliminar, se não através do debate, mas via legislação penal, qualquer questionamento ou controvérsia com relação às classificações psiquiátricas. 


Enfim, se esta proposta de criminalizar a Psicofobia servir estritamente para punir aqueles que impedem ou dificultam o acesso ao trabalho ou à educação aos portadores de transtornos mentais, podem contar com o meu apoio. Ainda que questione a utilização vaga da expressão "transtornos mentais", não teria grandes motivos para me colocar contra. No entanto, se tal proposta implicar na blindagem da Psiquiatria oficial contra qualquer crítica, como se criticá-la significasse desmerecer o sofrimento das pessoas, aí não tenho como ser a favor. Afinal, a Psiquiatria, como a Psicologia, é um campo repleto de incertezas, desconfianças, controvérsias e disputas. Colocar os "pacientes" como se fossem coletes à prova de balas, indica talvez mais um medo de ser atingido do que um desejo de proteger aqueles que precisam. É claro que eu posso estar enganado, mas se estiver não me critiquem, ou estarão cometendo uma das formas mais cruéis de Psicofobia, que é o preconceito contra psicólogos...



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O DSM-5 vem aí...


Reproduzo abaixo um excelente artigo, publicado no dia 21 de Março deste ano no site da Agência Fiocruz de Notícias (veja aqui). O artigo foi escrito pelo histórico Paulo Amarante em parceria com o Fernando Freitas, ambos ligados ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) e à Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Alguns de vocês já devem ter lido pois circulou por algumas redes sociais, mas eu só li hoje e o reproduzo neste blog em função de sua atualidade e pertinência. Pra quem não sabe, a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM, em inglês) será publicado no ano que vem. Aproveito o espaço para divulgar o seminário "Psiquiatria e DSM-5", que será realizado dia 30 de Novembro no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ). Mais informações em breve.

Psiquiatrização da vida e o DSM V: 
desafios para o início do século XXI

Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com disforia”. Adolescentes que apresentam, de forma particular, comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo, quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”.

Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela Associação Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em vigor desde 1994. Há outras novidades que vem chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a “dependência a shopping”.

O que o DSM representa? Não apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria construção da subjetividade e intersubjetividade do homem contemporâneo? A medicalização crescente do nosso cotidiano. Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de 300.



Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinados a sua hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam que suas pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2) servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) ser uma “ponte” para a interface clínica/pesquisa; (4) ser o “livro de referência” em saúde mental para professores e estudantes; (5) disponibilizar o “código estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar “procedimentos forenses”.

Os impactos provocados por cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós está o exemplo da pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da metrópole de São Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa nacional tomou tal pesquisa para chamar a atenção da população para a situação do sistema de assistência em saúde mental do país, que estaria muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS. E que, sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como alarmante.

O que escapa à maioria das pessoas que receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou essa pesquisa (além da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a Opas) foram grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire. Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se isso não é conflito de interesses, então é necessário revisar esse conceito!



O DSM-V chega sendo objeto de grandes controvérsias. Basta uma consulta na internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV. O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que vêm se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência de assegurar e ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.

Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM nos possibilita constatar, principalmente a partir dessa sua quinta versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos sofrimentos mentais, e, sim, produzir mais mercado para as intervenções psiquiátricas, cumpre à sociedade recusar esse projeto medicalizante e patologizante. As entidades de saúde, particularmente as médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde, Ministério Público, conselhos profissionais, dentre outros) precisam se posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de tais iniciativas.