quinta-feira, 23 de maio de 2019

Em choque: uma breve história da Eletroconvulsoterapia

Aplicação de ECT no Hospital de Virginia, nos EUA, em 1949
Em uma polêmica Nota Técnica publicada em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde estabeleceu novas diretrizes para a política de saúde mental no Brasil. Dentre outras medidas questionáveis, o Ministério estabeleceu a ampliação da rede de hospitais psiquiátricos, a possibilidade de internação de crianças e adolescentes e também a aquisição e disponibilização pelo SUS de equipamentos de Eletroconvulsoterapia (ECT) para o "tratamento de pacientes que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas". Popularmente conhecido como "eletrochoque" este tratamento tornou-se, juntamente com a lobotomia, um símbolo dos equívocos e crueldades cometidos - em nome da razão - pela psiquiatria e pela medicina de uma forma geral. No entanto, também como a lobotomia, a ECT foi vista na época de sua criação como um tratamento inovador, seguro, eficaz e - acredite se quiser - muito menos agressivo e desumano que as outras opções terapêuticas disponíveis naquele momento, como a Terapia por Choque de Insulina (que induzia os pacientes ao coma), a Malarioterapia ou Piroterapia por infecção de malária (que causava terríveis febres) e a Terapia convulsiva (que induzia a violentas convulsões). Posteriormente a ECT passou a ser mal vista e foi deixada de lado; no entanto, ela nunca deixou de ser aplicada. Até os dias atuais ela é utilizada, de uma maneira bastante diferente de quando foi criada, em pessoas com graves transtornos mentais refratárias a outros tratamentos. Especificamente com relação à referida Nota Técnica a preocupação de muitos profissionais e pesquisadores da área da saúde mental é que a aquisição e disponibilização de equipamentos de ECT pelo SUS possa favorecer um uso equivocado e banalizado da técnica, como ocorreu logo após sua criação, na década de 1930. Esta é, sem dúvida alguma, uma preocupação legítima, haja vista a falta de fiscalização adequada em inúmeros serviços públicos; além disso há o questionamento, igualmente pertinente, sobre se realmente vale a pena investir os escassos recursos da área da saúde em dispendiosos aparelhos de ECT - e também no provisionamento das clínicas e na capacitação dos aplicadores e equipe de apoio - ao invés de empregar tais recursos na melhoria dos serviços e dispositivos de saúde mental já incorporados ao SUS. Por fim, há que se questionar também se esta politica não estaria atendendo e beneficiando prioritariamente o lobby da indústria dos dispositivos médicos, mais do que os próprios pacientes. Por outro lado, se as diretrizes para o uso da técnica forem rigorosamente seguidas e sua utilização ocorrer apenas como último recurso terapêutico, e jamais como método punitivo e disciplinar, creio que as resistências à sua utilização diminuiriam consideravelmente - a questão é que eu duvido muito que a fiscalização desta atividade consiga ser realizada a contento, de forma a evitar excessos e usos equivocados. De toda forma, para além de toda esta polêmica, gostaria no presente texto de apresentar brevemente a história da ECT desde seu desenvolvimento até a atualidade. 

Violenta convusão induzida por Metrazol
A eletroconvulsoterapia, como o próprio nome indica, é um procedimento terapêutico que pretende gerar convulsões nos pacientes por meio da aplicação de correntes elétricas na região da cabeça - entende-se, neste caso, que as convulsões possuem um valor terapêutico na medida em que teriam a capacidade de aliviar certos sintomas psiquiátricos. No entanto, a ECT não foi o primeiro procedimento médico que visou a geração de "convulsões terapêuticas" nos pacientes. No início do século XX alguns psiquiatras notaram uma certa incompatibilidade entre a psicose e a epilepsia, o que significava que pacientes psicóticos muito raramente eram epiléticos ou apresentavam crises convulsivas. Com esta observação em mente - posteriormente refutada pela comunidade científica - o psiquiatra húngaro Ladisla Joseph von Meduna (1896-1964) começou, em 1933, a experimentar diferentes substâncias para induzir convulsões em animais e, posteriormente, em pacientes psicóticos. Inicialmente tentou a injeção de cânfora e de outras substâncias de forma intramuscular, mas os resultados não foram significativos; finalmente testou a injeção intravenosa de uma preparação de cânfora sintética menos tóxica denominada pentilenotetrazol, também conhecida como metrazol ou cardiazol. E acabou por descobrir que os sintomas psicóticos diminuiam consideravelmente após um ataque convulsivo induzido por esta substância - tratamento que acabou por ser chamado de terapia convulsiva. O grande problema é que o metrazol induzia nos pacientes um terrível sentimento de morte iminente e também levava a convulsões extremamente violentas. Como aponta o psiquiatra Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria - Uma história não contada, um estudo realizado em 1939 revelou que 43% dos pacientes submetidos à terapia convulsiva tiveram vértebras fraturadas durante as terríveis convulsões causadas pelo metrazol. Em função destes e outros problemas, os médicos começaram, então, a buscar outras maneiras, mais seguras e menos agressivas, de induzir convulsões nos pacientes.

Protótipo do primeiro aparelho de "eletrochoque"
Esta busca levou, no final da década de 1930, na Itália, ao desenvolvimento da Eletroconvulsoterapia pelo neurologista e neurocirurgião italiano Ugo Cerletti (1877-1963) em parceria com seu colega Lucio Bini (1908-1964). Inicialmente, Cerletti induziu experimentalmente convulsões em cachorros por meio de choques elétricos aplicados na cabeça. O pesquisador chegou a conceber a aplicação do mesmo método em seres humanos mas foi dissuadido por colegas. Posteriormente, enquanto comprava carne em um açougue local descobriu que os porcos eram abatidos depois de serem entorpecidos pela aplicação de correntes elétricas em suas cabeças, o que o fez questionar se o mesmo efeito "anestésico" ocorreria em humanos. Com esta ideia em mente, Cerletti recorreu a Bini para construir, em 1938, o primeiro aparelho voltado para aplicação de "choques terapêuticos" em seres humanos. No dia 15 de Abril deste ano, os pesquisadores utilizaram o aparelho, pela primeira vez, em um paciente esquizofrênico e o resultado ocorreu exatamente como esperado: após despertar da anestesia causada pelo choque os pesquisadores observaram significativas melhoras no quadro sintomático do paciente. De acordo com Franz Alexander e Sheldon Selesnick no livro História da psiquiatria, a partir desta primeira aplicação "tornou-se logo evidente que o eletrochoque era superior ao Metrazol, pois era menos perigoso, menos dispendioso e causava convulsão mais branda. Devido à simplicidade de seu processo e aos resultados favoráveis, o eletrochoque, na década de 1940, já substituia os tratamentos de choque de insulina na esquizofrenia". Na mesma direção, Jeffrey Lieberman, no já mencionado livro Psiquiatria - Uma história não contada, afirma que "a ECT significou um substituto bem vindo à terapia do metrazol porque era mais barata, menos aterrozizante para os pacientes (não havia mais a sensação de morte iminente), menos perigosa (nada de costelas quebradas), mais conveninente (bastava ligar e desligar a máquina) e mais eficaz. Pacientes deprimidos, em particular, frequentemente apresentavam melhoras surpreendentes de humor após apenas algumas sessões; e embora a ECT tivesse alguns efeitos colaterais, eles não eram nada comparados aos riscos alarmantes da terapia do coma, da terapia da malária ou da lobotomia. Era, de fato, um tratamento milagroso".

Cena do filme Um estranho no ninho (1975)
A partir da década de 1940 a técnica desenvolvida por Celetti e Bini foi amplamente aplicada em hospitais psiquiátricos de todo o mundo, inclusive no Brasil. Posteriormente, em função tanto do desenvolvimento das primeiras medicações psiquiátricas ou psicofármacos, no início da década de 1950, quanto dos crescentes questionamentos relativos aos efeitos colaterais e aos usos equivocados da técnica, a ECT acabou por perder muito de sua popularidade inicial. Especificamente com relação aos efeitos colaterais, um dos mais conhecidos e documentados é a perda de memória - que na maioria dos casos é temporária, e o paciente em pouco tempo retoma as lembranças, mas que em alguns casos torna-se definitiva, e o paciente passa a ter grandes dificuldades de memorização. Curiosamente, no início da aplicação da ECT este efeito colateral de esquecimento temporário foi considerado vantajoso na medida em que fazia o paciente se esquecer do desagradável procedimento de ser eletrocutado. Outros efeitos colaterais que ocorreram nos primeiros anos de aplicação da ECT - como fraturas ósseas e distensões musculares - se deviam ao fato de os aplicadores não utilizarem qualquer forma de anestesia ou relaxamento muscular. Posteriormente, com a introdução do suxametônio, um relaxante muscular, associado com um anestésico de curta duração, muitos desses outros efeitos colaterais foram minimizados, ainda que não totalmente eliminados. Já com relação aos usos equivocados da ECT são notórias as utilizações da técnica como forma de punição - e mesmo tortura - nas instituições psiquiátricas de todo o mundo - basta assistir ao clássico filme Um estranho no ninho (1975) e também ao brasileiro Bicho de sete cabeças (2001) para entender como isto ocorria. Em função de tudo isso, a técnica acabou por ser colocada de lado na área de saúde mental. No entanto, como já apontei acima, a ECT nunca deixou de ser utilizada. Após sua criação, no final da década de 1930, a técnica foi amplamente usada até a década de 1960, quando começou a ser preterida e marginalizada; na década de 1980 a ECT teve uma espécie de ressurgimento, ainda que impregnado por uma visão extremamente negativa, que permanece. Atualmente, a técnica é empregada de uma maneira completamente diferente de quando foi criada. Como aponta Jeffrey Lieberman, "hoje, o avanço tecnológico permite ajustar a ECT para cada paciente, de modo que seja usada a quantidade mínima de corrente elétrica para induzir ao surto [ou convulsão]. Além disso, a colocação estratégica dos eletrodos em lugares específicos da cabeça pode minimizar os efeitos colaterais. Agentes anestésicos modernos combinados com relaxantes musculares e oxigenação abundante tornam a ECT um procedimento extremamente seguro". Certamente há pesquisadores que questionam essa suposta segurança da ECT - indico, nesse sentido os artigos sobre o tema do blog Mad in Brasil; no entanto, ainda que não se trate de um procedimento 100% seguro - e nenhum procedimento ou intervenção é isento de riscos e efeitos colaterais - ainda assim a eletroconvulterapia continuará a existir e a ser aplicada. O que precisamos fazer, enquanto profissionais e pesquisadores da área de saúde mental, é continuar avaliando os efeitos positivos e negativos das intervenções biológicas em psiquiatria - que incluem desde a ECT até os psicofármacos - e paralelamente buscar alternativas psicossociais que nos ajudem a lidar com os sofrimentos e desequilíbrios humanos.

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