segunda-feira, 13 de abril de 2020

É normal se sentir anormal em situações anormais - e outras lições de Viktor Frankl para a quarentena

“Em busca de sentido”, obra clássica do neuropsiquiatria austríaco Viktor Frankl, foi escrita e publicada no ano de 1946 – um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um dos relatos mais impressionantes já escritos sobre a vida em um campo de concentração – e também, ao mesmo tempo, de uma brilhante apresentação da Logoterapia, abordagem psicoterapêutica desenvolvida por Frankl que aponta para a necessidade de buscarmos um sentido para vida, mesmo (e especialmente) em contextos ou situações extremas, como a que ele viveu sob o regime Nazista. Tendo sido conduzido ao terrível campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, no ano de 1944 juntamente com sua esposa (grávida naquele momento) e sua mãe, Frankl só foi libertado ao final da guerra, em abril de 1945. Neste ínterim viveu situações terríveis, relatadas em detalhes no livro, e ainda perdeu quase todos os seus familiares. Mas Frankl não perdeu a capacidade de pensar (e nem a mais terrível prisão tem a capacidade de impedir que o sujeito pense), e ele usou desta “liberdade interior” – única liberdade possível naquele contexto - para refletir sobre o que via, sobre o que vivia e sobre a vida em si. E após ser libertado de Auschwitz decidiu colocar tais reflexões no papel e escreveu, em apenas 9 dias, sua obra mais famosa, que vendeu, até o ano de sua morte em 1997, mais de 10 milhões de exemplares em todo o mundo.

Gostaria, neste breve ensaio, de analisar algumas lições que podemos tirar do relato e das reflexões de Frankl para compreendermos a complexa e atípica situação que vivemos no momento. Antes de tudo gostaria de ressaltar que não pretendo, com isso, equiparar o Holocausto e a terrível experiência vivida nos campos de concentração com as consequências da também terrível pandemia de coronavírus. São situações muito diferentes, embora ambas possam ser vistas como eventos “anormais”, extraordinários, atípicos, que tiraram os sujeitos de suas rotinas e dos automatismos da vida cotidiana e os colocaram em um cenário novo, com novas dificuldades para as quais eles não tinham qualquer experiência prévia. No contexto atual, do dia para a noite, milhões de pessoas em todo o mundo tiveram suas rotinas completamente alteradas pela necessidade de isolamento social apregoada pelas organizações e entidades de saúde para frear o avanço do Covid-19 – na verdade, a recomendação é de um isolamento físico e não propriamente de um isolamento social, já que, com todas as tecnologias que dispomos atualmente, é totalmente possível se “socializar” à distância, sem qualquer proximidade ou contato físico. De toda forma, essa necessidade de permanecer em casa e abandonar temporariamente os estudos e o trabalho - ao menos na modalidade presencial - tem gerado em muitas pessoas grande tristeza, angústia e ansiedade – que certamente são agravadas pela incerteza de quando (e se) isso tudo irá acabar e a vida voltará ao “normal”.

Inspirado nas lições e reflexões de Frankl penso ser importante compreendermos que tais sentimentos, por mais “anormais” que pareçam para quem os sente, são completamente normais em uma situação anormal como a que vivemos - dentro de certos limites, claro. Em determinado momento do livro Em busca de sentido, Frankl reflete sobre o terrível mal-estar que ele e muitos de seus companheiros sentiam diante das inúmeras pressões e privações vivenciadas no campo de concentração. Daí ele resgata uma frase do poeta e dramaturgo alemão Gotthold Ephraim Lessing segundo o qual “Quem não perde a cabeça com certas coisas é porque não tem cabeça para perder”. Frankl concorda com essa ideia. Em sua visão, ficar triste, angustiado ou ansioso em um contexto difícil é mais do que compreensível, é esperado – enfim, é normal. Como aponta mais explicitamente em outro momento, “numa situação anormal, uma reação anormal simplesmente é a conduta normal”. Para Frankl um prisioneiro em um campo de concentração que demonstra um “estado de espírito anormal” está tendo uma “reação psicológica natural e típica naquelas circunstâncias". E o mesmo vale, em sua visão, para quaisquer circunstâncias atípicas ou anormais, como a que vivenciamos neste momento.

Uma outra lição preciosa que podemos tirar dos escritos de Frankl diz respeito à importância do sentido para a vida – ou, mais precisamente, do sentido ou dos sentidos que encontramos ou construímos para nossa própria vida. Logo no início da segunda parte de seu livro, voltada para a apresentação de sua abordagem logoterapêutica, Frankl cita o filósofo alemão Friedrich Nietzsche que teria afirmado que “Quem tem por que viver suporta quase qualquer como”. Em sua visão tais palavras podem servir como um lema válido para todas as abordagens de psicoterapia – que teriam como função, dentre outras coisas, ajudar a pessoa a encontrar o sentido ou os sentidos para a vida – mas também podem e devem servir de norte para cada um de nós. Se temos um ou vários motivos para viver, enfrentamos determinadas situações ou momentos difíceis e mesmo extremos com menos peso e angústia do que se não tivéssemos – e isso ocorre porque não focamos nossa atenção apenas nas dificuldades do presente mas também no futuro, em especial naquilo que pretendemos fazer ou continuar fazendo quando essa situação passar. Aqueles que tem planos e objetivos para “quando a quarentena acabar” e já tem se engajado, na medida do possível, na realização de tais projetos, muito provavelmente vivenciam o isolamento de uma forma menos angustiante do que aqueles para quem o futuro deixou de existir - e a vida se reduziu ao "terrível presente". Para tais pessoas é fundamental resgatar ou construir esse sentido de futuro – esse “por que” ou “para que” que permite a cada um de nós atravessar ou suportar momentos difíceis e seguir adiante.

Por fim, uma importante lição do relato e das reflexões de Frankl se relaciona ao sentido do sofrimento. De acordo com o autor, é possível encontrar sentido ou sentidos na vida apesar dos nossos sofrimentos. Mas não só: para Frankl é possível encontrar um sentido no próprio sofrimento – o que, cabe apontar, não é o mesmo que dizer que o sentido da vida é o sofrimento, ideia que para ele não faz nenhum sentido. A questão é que podemos sempre enxergar um “por que” ou um “para que” em determinado sofrimento, mesmo quando este se relaciona a situações que fogem ao nosso controle – e inúmeras situações, talvez a maioria, fogem ao nosso controle. Por exemplo, aqueles que sofrem neste momento devido ao isolamento físico e às mudanças na rotina podem encontrar algum sentido nesse sofrimento ao compreenderem tais ações como atos de sacrifício em prol do bem-comum – ou então como possibilidades para o crescimento pessoal. E ao dar sentido ao sofrimento, este é amenizado. Como afirma Frankl, “sofrimento de certa forma deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício”. Tudo isto significa que embora o sofrimento faça parte da vida, a forma como o encaramos – e também como encaramos as situações às quais ele está relacionado – é decisiva para a forma como nos sentimos e nos comportamos. Em momentos difíceis como o que vivemos agora, é preciso antes de tudo compreender que a tristeza, a angústia e a ansiedade são partes constitutivas da experiência humana. Feita esta compreensão é necessário dar um passo e em seguida um salto: primeiro tentar construir um sentido para o sofrimento presente e depois olhar para o futuro e buscar um sentido ou vários sentidos para a própria vida. Não é um caminho fácil, sem dúvida, especialmente porque o sentido não pode ser dado ou recebido, apenas encontrado ou construído pela própria pessoa. Mas é possível. Como bem afirma Viktor Frankl “a vida está repleta de oportunidades para dotá-la de sentido”.

Entre o otimismo e o ufanismo neurocientífico: breves reflexões sobre o documentário I am human

Muito interessante o documentário "I am human", recém-incluído no catálogo do Amazon Prime Video. O filme retrata os avanços, as possibilidades, as dificuldades e os limites das chamadas interfaces cérebro-máquina. O documentário apresenta, em especial, três casos de pessoas com certas doenças ou incapacidades (um sujeito tetraplégico, outro cego e uma mulher diagnosticada com Parkinson) que foram beneficiadas por implantes cerebrais. E de fato a possibilidade de que certas tecnologias invasivas (caso da Estimulação Cerebral Profunda) ou não-invasivas (caso da Estimulação Magnética Transcraniana) auxiliem pessoas com doenças ou incapacidades graves é real e certamente avançará muito no futuro - assim eu espero. Minha crítica com relação ao filme diz respeito ao seu exagerado "ufanismo neurocientifico" (expressão criada pelo antropólogo Rogério Azize), isto é, à visão excessivamente deslumbrada de que um dia (sempre um dia) as neurociências entenderão completamente a mente e o cérebro humanos e resolverão todos os nossos problemas. Este otimismo exacerbado com relação às possibilidades da ciência - em especial das neurociências - leva alguns entrevistados do filme a imaginarem um cenário implausível no qual todas as doenças mentais serão irremediavelmente curadas (como se elas se relacionassem apenas ao funcionamento cerebral e como se o cérebro não tivesse qualquer relação com o resto do corpo e com o mundo) e as pessoas se comunicarão umas com as outras "telepaticamente" através de interfaces cérebro-máquina. Tais visões excessivamente (às vezes alucinadamente) otimistas das possibilidades e potencialidades das intervenções tecnológicas no cérebro e na mente humanos tornam o filme uma mistura de documentário e ficção científica. Enquanto documentário é excelente, enquanto ficção científica é otimista demais - e ficção científica e otimismo definitivamente não combinam.

"Tudo em seu lugar": breves comentários sobre o novo livro póstumo de Oliver Sacks

Oliver Sacks é um dos meus escritores favoritos - e um dos que mais me influenciaram a escrever ensaios. Já li toda a sua obra e considero alguns de seus livros verdadeiras obras-primas, em especial aqueles que analisam casos de pessoas com doenças neurológicas graves e estranhas como "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", "Um antropólogo em marte" ou "O olhar da mente" - isto pra não falar do clássico "Tempo de despertar", que inspirou o belíssimo filme lançado em 1990. Já seus livros autobiográficos e de relato de viagens (Tio Tungstênio, Diário de Oaxaca, Sempre em movimento, etc) não considero excelentes - no máximo bons. Não pretendo aqui analisar toda sua obra - pois já fiz isso em um texto que publiquei neste blog em 2018, três anos após sua morte. Gostaria de analisar agora, também brevemente, seu novo livro - isto é, seu terceiro livro póstumo: "Tudo em seu lugar", recém-lançado pela Companhia das Letras (os anteriores são "Gratidão" e "Rio da consciência"). Nesta coletânea de ensaios, 33 no total, Sacks traz um pouco de tudo o que lhe tornou célebre: relatos autobiográficos, análises de casos neurológicos e reflexões sobre a vida e o mundo. Não considero que esse livro acrescente em nada - ou muito pouco - ao que ele escreveu e publicou ainda em vida. Gostei de fato de poucos ensaios (3 pra ser mais exato, todos relatos ou discussões sobre doenças neurológicas). Os ensaios autobiográficos - como seus próprios livros autobiográficos - não são assim tão interessantes e são muitas vezes massantes. Enfim, este livro está longe, muito longe, de figurar entre seus melhores mas ainda assim sua leitura vale a pena - como dizem de Woody Allen, o pior Sacks ainda é melhor que grande parte do que é lançado todos os dias. Uma dúvida que eu fiquei é o porquê do título - não há nenhum capítulo que se chama "Tudo em seu lugar" e eu não me lembro de ver a expressão em nenhuma passagem do livro. E como a editora não inseriu nenhuma introdução ou prefácio - o que considero uma falha - eu fiquei sem entender.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Quanto mais nos expomos, tanto mais nos escondemos: breves reflexões sobre a série Você

Antes de assistir à primeira temporada da fantástica série Você, lançada em 2019 pela Netflix, li algumas análises dizendo que a série retratava um psicopata que perseguia uma mulher, mas esta, na minha visão, não é uma boa descrição da série. Isto porque o protagonista, Joe, não é propriamente um psicopata. Ele mata pessoas, sim, mas é um sujeito com sentimentos e empatia - basta observar a relação quase paternal dele com o garoto Paco, seu vizinho. Joe está mais para um "stalker" - ou "perseguidor", em português. Mas essa expressão ainda não capta a complexidade deste genial personagem. Joe é, e se vê, como um protetor, isto é, como alguém capaz de fazer coisas ruins para proteger as pessoas que ama - em especial Beck, outra personagem fascinante. Joe é completamente obcecado por Beck e seu amor (se é que é possível chamar assim) é tão imenso quanto sua vontade de protegê-la. A série problematiza, nesse sentido, a por vezes sutil diferença entre o amor e a obsessão e entre o cuidado, o controle e o cerceamento. Uma outra reflexão que fiz a partir da série "Você" - em especial sobre a primeira temporada - diz respeito à nossa exposição nas redes sociais. Bem no começo da série Joe conhece Beck, se encanta por ela, e passa a tentar compreendê-la. Para tanto ele acessa todas as suas redes sociais e acaba por descobrir inúmeros fatos sobre sua vida: onde ela nasceu, onde estudou, quem são seus pais, que livros ela gosta, etc - e com isso a série me fez pensar sobre o quanto estamos potencialmente expostos à pessoas mal intencionadas ao compartilharmos determinados fatos e acontecimentos de nossa vida. No entanto, para compreender "quem é Beck" tais informações, por mais numerosas que sejam, não são suficientes. E o motivo é que nas redes sociais escolhemos muito bem o que compartilhamos, isto é, o que expomos de nós mesmos e de nossas vidas - em geral deixamos que os outros vejam apenas nossas partes belas e nobres (ou simulações disso). E isto significa que toda esta exposição nas redes sociais ao mesmo tempo em que mostra, oculta. Quanto mais nos expomos, tanto mais nos escondemos - eis um paradoxo contemporâneo. Observando somente o que determinada pessoa posta nas redes sociais não é possível compreender, em profundidade, quem ela é. E é exatamente por isso que Joe passa a observar (ou melhor, espionar) Beck na vida real, não apenas na vida virtual. E mesmo assim, só observando à distância, ainda não é possível compreender quem é a pessoa. Aliás, essa pergunta "Quem é tal pessoa", me parece de certa forma irrespondível. As pessoas são tão complexas, tão contraditórias e ambíguas, que nem elas próprias tem a capacidade de se entenderem completamente. Somos e seremos sempre enigmas, independente do que e do quanto nos expomos nas redes sociais. 

domingo, 15 de março de 2020

A testosterona é amplamente, às vezes terrivelmente, mal compreendida

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Testosterone is widely, and sometimes wildly, misunderstood, publicado no site AEON no dia 10 de Março de 2020 pelo professor de antropologia da Brown University Matthew Gutmann, que é autor de vários livros, dentre eles Are Men Animals? How Modern Masculinity Sells Men Short (2019). Uma observação sobre o título original do artigo é que ele faz um jogo de palavras, impossível se ser captado na tradução, com as expressões "widely" (amplamente, consideravelmente) e "wildly" (extremamente, violentamente), cujas pronúncias são semelhantes.

Nós damos um crédito injustificado às explicações biológicas do comportamento masculino. Em nenhum caso isso é mais verdadeiro do que com a testosterona. Especialistas contemporâneos invocam o hormônio, apelidado de 'T', para provar ideias sobre a masculinidade e a virilidade, para mostrar como são diferentes homens e mulheres e também para explicar por que alguns homens (presumivelmente aqueles com mais T) têm maior libido. No entanto, apesar das propriedades míticas popularmente associadas ao T, em todos os rigorosos estudos científicos realizados até o momento não há correlação significativa, em homens saudáveis, ​​entre os níveis de T e o desejo sexual.

Começando na década de 1990 e ganhando força nos anos 2000, as vendas de terapias de reposição de testosterona (testosterone replacement therapies - TRTs) passaram [a lucrar] de praticamente zero a mais de 5 bilhões de dólares por ano  em 2018. Isso ocorreu porque houve um surto repentino de 'Baixo T', momento em que uma grande epidemia médica foi finalmente reconhecida - ou porque o T tornou-se comercializado como uma droga milagrosa para os homens que entraram em pânico quando descobriram que seus níveis de T diminuíam 1% ao ano após atingirem 30 anos. 

A resposta não é que o corpo dos homens mudou ou que a baixa de T foi terrivelmente subdiagnosticada antes, mas que, na mente de muitos, ela se tornou nada menos que uma molécula masculina mágica que poderia curar homens com declínio de energia e desejo sexual à medida que envelheciam.

Além do mais, muitos foram instruídos a acreditar que, se você quer saber o que faz com que alguns homens sejam agressivos, basta testar seus níveis de T, certo? Na verdade, errado: a ciência também não apoia esta conclusão. Alguns dos famosos estudos iniciais que ligavam T à agressão foram realizados com populações carcerárias e foram usados ​​efetivamente para 'provar' que níveis mais altos de T eram encontrados em alguns homens (leia-se: homens de pele mais escura), o que explicava por que eles eram mais violentos e por que tinham de ser presos de uma forma desproporcional. As falhas metodológicas nesses estudos levaram décadas para serem esclarecidas, e novas pesquisas rigorosas, que mostram uma reduzida relação entre T e agressão (exceto em níveis muito altos ou muito baixos), tem somente agora chegado ao público geral.

Além do mais, entende-se atualmente que o T não é apenas uma coisa (um hormônio sexual) com um objetivo (reprodução masculina). O T também é essencial para o desenvolvimento de embriões, músculos, cérebros femininos e masculinos e glóbulos vermelhos. A depender de uma série de fatores biológicos, ambientais e sociais, sua influência é variada - ou insignificante.

Robert Sapolsky, um neurocientista da Universidade de Stanford, na Califórnia, compilou uma tabela mostrando que havia apenas 24 artigos científicos sobre a relação entre T e agressão entre 1970 e 1980, e mais de 1.000 somente na década de 2010. Isto significa que foram feitas novas descobertas sobre a relação entre agressão e T? Na verdade não, embora tenha surgido nesse período novas descobertas mostrando a importância do T no estímulo à ovulação em mulheres. Há que se atentar também para a diferença entre correlação e causa (a relação entre níveis de T e agressão, por exemplo, proporciona um desafio clássico do tipo "ovo ou galinha"). Como os principais especialistas em hormônios nos mostram há anos, para a grande maioria dos homens, é impossível prever quem será ou não agressivo com base no nível de T, assim como se você encontrar um homem (ou uma mulher) agressivo(a), não pode prever seu nível de T.

A testosterona é uma molécula que foi incorretamente rotulada,  há quase 100 anos, como um 'hormônio sexual', porque (algumas coisas nunca mudam) os cientistas procuravam diferenças biológicas definitivas entre homens e mulheres, e o T deveria desvendar os mistérios da masculinidade inata. E de fato o T é importante os cérebros, biceps e testículos dos homens mas também é essencial para os corpos femininos. E, para constar, a dimensão nos níveis de T não significa necessariamente nada: às vezes, a mera presença de T é mais importante que a quantidade do hormônio. É mais ou menos como ligar um carro: você só precisa de combustível, sejam dois galões ou 200. Além disso o T nem sempre cria diferenças entre homens e mulheres, ou mesmo entre homens. Acrescente-se à tudo isso que ainda existem evidências de que os homens que relatam alterações após tomar suplementos de T estão relatando apenas efeitos placebos mais do que qualquer outra coisa.

Ainda assim, continuamos atribuindo ao T poderes sobrenaturais. Em 2018, uma vaga para a Suprema Corte dos EUA acabou suscitando discussões sobre isso. As questões nas audiências de confirmação [de um indicado à Suprema Corte] se focaram na violência sexual masculina contra as mulheres. Descrições e análises minuciosas foram necessárias. Analistas prós e contras eventualmente se utilizaram da testosterona para descrever, denunciar ou defender o comportamento passado do juiz Brett Kavanaugh [saiba mais sobre esse caso clicando aqui]: um comentarista da Forbes escreveu sobre 'estupros grupais induzidas por testosterona'; outro, entrevistado na CNN, perguntou: 'Mas estamos falando de um garoto de 17 anos no ensino médio com testosterona à flor da pele. Diga-me, que garoto não fez isso na escola?'; e um terceiro, em uma coluna do The New York Times escreveu: "Ele estava surfando em uma onda da testosterona e bebida..." [that's him riding a wave of testosterone and booze]

E é improvável que muitos leitores tenham questionado a "lógica hormonal" de Christine Lagarde, então presidente do Fundo Monetário Internacional, quando ela afirmou que o colapso econômico de 2008 se deveu em parte ao fato de muitos homens serem responsáveis ​​pelo setor financeiro: 'Eu sinceramente penso que nunca deveria haver tanta testosterona em uma sala'.

Você pode encontrar o T sendo utilizado como biomarcador para explicar (e às vezes desculpar) o comportamento masculino em artigos e discursos todos os dias. Licença poética, pode-se dizer. Ou apenas uma maneira curta e grossa de dizer que os machos devem permanecer no comando. No entanto, quando elevamos o T a algo significativo para explicar o comportamento masculino, podemos inadvertidamente desculpar o comportamento masculino como se este estivesse além da capacidade de controle dos homens reais. Apelos à masculinidade biológica implicam que os relacionamentos patriarcais estão enraizados na natureza.

Quando normalizamos a ideia de que o T está presente em todos os garotos do ensino médio e que isso explica por que o estupro ocorre, nós abandonamos um eufemismo e passamos a oferecer aos homens a impunidade de agredir sexualmente as mulheres, oferecendo-lhes uma defesa do tipo 'eu não sou culpado, a culpa é dos hormônios'.

Invocar a biologia dos homens para explicar seus comportamentos muitas vezes acaba por absolvê-los de suas ações. Quando utilizamos termos como T ou cromossomos Y, isso ajuda a disseminar a ideia de que os homens são controlados por seus corpos. Pensar que hormônios e genes podem explicar por que os meninos agem como meninos liberta os homens de todos os tipos de pecados. Se você acredita que a testosterona diz algo significativo sobre como os homens agem e pensam, você está enganando a si mesmo. Os homens se comportam da maneira que fazem porque a cultura permite, não porque a biologia exige.


Ninguém poderia argumentar seriamente que a biologia é a única responsável por determinar o que significa ser homem. Mas palavras como testosterona e cromossomos Y se encaixam em nossas descrições das atividades dos homens, como se elas explicassem mais do que realmente explicam. A testosterona não governa a agressividade e a sexualidade dos homens. E é uma pena que não ouvimos muito falar sobre pesquisas que mostram que níveis mais altos de T nos homens se correlacionam tanto com a generosidade quanto com a agressividade. Mas a generosidade é uma virtude  masculina menos estereotipada, e isso estragaria toda a narrativa sobre a agressividade inerente dos homens, especialmente sobre a viril agressividade dos homens. E isso tem um profundo impacto sobre o que homens e mulheres pensam sobre as inclinações naturais dos homens.

Nós precisamos continuar falando sobre masculinidade tóxica e patriarcado porque são fenômenos reais e perniciosos. E também precisamos de novas maneiras de falar sobre homens, masculinidade e virilidade que nos permitam escapar da armadilha de pensar que a biologia dos homens é o seu destino. De fato, quando eliminamos os efeitos placebo e todo o blábláblá biológico [biobabble], o T não é uma molécula masculina mágica, e sim - como argumentam as pesquisadoras Rebecca Jordan-Young e Katrina Karkazis no livro Testosterone (2019) - uma molécula social.

Independentemente de como você a compreende, a testosterona é freqüentemente usada como desculpa para perimitir que os homens se safem e para justificar o privilégio masculino.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sex education e a importância da psicoterapia

Assisti a primeira temporada da série Sex education, produzida pela Netflix, e gostei muito. Para além dos dramas e romances adolescentes, já extensamente retratados em outras produções, a série foca sua atenção na questão sexual - e o faz com uma naturalidade e uma honestidade impressionantes. Para quem não assistiu ainda, Sex education tem como protagonista o jovem Otis, cuja mãe é uma experiente terapeuta sexual, e que passa a atuar em sua escola, ele próprio, como uma espécie de terapeuta sexual amador. A questão é que Otis tem uma série de dificuldades na esfera sexual - ele não consegue se masturbar, por exemplo - mas apesar ou em decorrência de seus problemas ou limites pessoais, ele consegue, de fato, ajudar seus colegas com suas dificuldades sexuais e amorosas. Enquanto psicólogo, percebo que a série ilustra muitíssimo bem o peso das palavras (ditas e ouvidas), e, de uma forma mais específica, a importância da terapia. Muito embora o que Otis faça não seja propriamente uma terapia - está mais um processo de orientação - todos os principais elementos de uma psicoterapia estão presentes em seus atendimentos: uma escuta atenta, uma abordagem empática, a busca por soluções e orientações personalizadas, etc. Da mesma forma, a série expõe a importância de tais atendimentos para as pessoas que passam por dificuldades - e que vivenciam e tentam lidar com seus problemas muitas vezes sozinhas, especialmente no que diz respeito à sexualidade - e também o peso e a importância que as palavras do terapeuta tem na vida das pessoas que são por ele atendidas. Suas palavras não apenas confortam mas também ajudam as pessoas a tomarem decisões e mudarem os rumos da própria vida. "As palavras importam", a série parece dizer todo o tempo. Enfim, para além de trazer à tona toda a complexidade da vida afetiva e sexual das pessoas, não apenas dos adolescentes, e ainda tratar de temas difíceis como o aborto com grande naturalidade e honestidade, a série ainda acaba por se constituir, sem que talvez pretenda, como uma obra em defesa da psicoterapia - ou, mais amplamente, da escuta e da empatia- para o crescimento das pessoas, seja na esfera sexual seja em outras esferas da vida.

A atração pela pesquisa cerebral está sufocando a psicoterapia

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The lure of ‘cool’ brain research is stifling psychotherapy, publicado no site AEON no dia 04 de Março de 2020 pelo famoso psiquiatra Allen Frances, professor da Duke University School of Medicine in North Carolina e que foi presidente da força-tarefa que elaborou o DSM-IV. Allen é autor de diversos livros, dentre eles Fundamentos do diagnóstico psiquiátrico e Voltando ao normal, ambos já publicados no Brasil.

"Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e errada" 
HL Mencken no livro Prejudices (1920)

Nunca houve um problema mais complexo para a humanidade do que entender nossa própria natureza. E não faltam respostas simples, elegantes e erradas alegando examinar essa questão.

Tendo tratado milhares de pacientes psiquiátricos em minha carreira, e trabalhado nos esforços da American Psychiatric Association (APA) para classificar os sintomas psiquiátricos (publicados como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou DSM-IV e DSM-5), posso afirmar com confiança que não há respostas simples na psiquiatria. O melhor que podemos fazer é adotar um modelo quadridimensional ecumênico que inclua todos as possíveis contribuições para o funcionamento humano: o biológico, o psicológico, o social e o espiritual. Reduzir as pessoas a apenas um elemento - seu funcionamento cerebral, suas tendências psicológicas, seu contexto social ou sua luta por significado - resulta em uma imagem distorcida e rasa que deixa de fora mais do que consegue capturar.

O Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) foi criado em 1949 pelo governo federal dos Estados Unidos com o objetivo prático de fornecer 'uma análise nacional, objetiva e detalhada, dos problemas humanos e econômicos relacionados à saúde mental'. Até 30 anos atrás, o NIMH valorizava a necessidade dessa abordagem abrangente e mantinha um orçamento de pesquisa equilibrado que cobria uma gama extraordinariamente ampla de tópicos e técnicas.

Mas em 1990, o NIMH mudou anos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.repentinamente e radicalmente de curso, embarcando naquilo que foi chamado de "Década do Cérebro". Desde então, o NIMH tem cada vez mais estreitado seu foco, se dedicando quase exclusivamente à biologia cerebral - e deixando de fora tudo o que nos torna humanos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.

Esse reducionismo equivocado teve início com a disponibilidade de ferramentas de pesquisa espetaculares (por exemplo, o Projeto Genoma Humano, a ressonância magnética funcional, a biologia molecular e o aprendizado da máquina [machine learning]) combinadas com a ingênua crença de que a biologia cerebral poderia explicar todos os aspectos do funcionamento mental. Os resultados foram uma gigantesca aventura intelectual mas um colossal fracasso clínico. Abrimos uma fantástica janela para o funcionamento dos genes e do cérebro, mas que pouco ajudou na prática clínica.

Quanto mais aprendemos sobre genética e cérebro, mais incrivelmente complicados ambos se revelam. Depois de três décadas e mais de 50 bilhões investidos, nós não colhemos os frutos de tais pesquisas simplesmente porque não há frutos a serem colhidos. O cérebro humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios, cada um se comunicando com milhares de outros através de centenas de moduladores químicos, levando a trilhões de potenciais conexões. Não é de se admirar que ele revele seus segredos apenas muito gradualmente e de maneira fragmentada.

A genética oferece a mesma desconcertante complexidade. Por exemplo, variações em mais de 100 genes contribuem para a vulnerabilidade à esquizofrenia, com cada gene contribuindo apenas um pouquinho, e interagindo das maneiras mais incrivelmente complicadas com outros genes e também com o ambiente físico e social. De forma ainda mais desanimadora, os mesmos genes geralmente estão implicados na vulnerabilidade a vários transtornos mentais - eliminando qualquer esforço para estabelecer uma especificidade. As permutações quase intermináveis ​​derrotarão qualquer resposta genética fácil, não importa quantas décadas e bilhões sejam investidos.

O NIMH se enquadrou em um portfólio de pesquisa bastante desequilibrado. Entreter-se com os divertidos "brinquedos"  da pesquisa genética e cerebral tem infelizmente superado a tarefa muito mais difícil e menos intelectualmente gratificante de ajudar pessoas reais.

Agora contraponha este fracassso atual do NIMH com a gradiosa história de sucesso desta instituição. Um dos pontos altos da minha carreira foi fazer parte de um comitê do NIMH, que fundou os estudos sobre psicoterapia nos anos 80. Ajudamos a apoiar a pesquisa da psicóloga americana Marsha Linehan que a levou a desenvolver a terapia comportamental dialética; contribuimos para o desenvolvimento da terapia cognitiva concebida pelo psiquiatra norte-americano Aaron T. Beck; além de apoiar muitos outros pesquisadores e temas. Estudos subsequentes estabeleceram que a psicoterapia é tão eficaz quanto os medicamentos para depressão leve a moderada, ansiedade e outros problemas psiquiátricos e ainda evita o ônus dos efeitos colaterais e das complicações dos medicamentos. Milhares de pessoas em todo o mundo foram beneciciadas pelas pesquisas sobre psicoterapia realizadas pelo NIMH.

Em um mundo racional, o NIMH continuaria a direcionar um orçamento robusto para a pesquisa sobre psicoterapia e promoveria seu uso como uma iniciativa de saúde pública para reduzir a atual superprescrição de medicamentos psiquiátricos nos EUA. A psicoterapia breve seria o tratamento de primeira linha para maioria dos problemas psiquiátricos que requerem intervenção. Os tratamentos com medicamentos seriam reservados para problemas psiquiátricos graves e para aquelas pessoas que não responderam suficientemente à observação assistida ou à psicoterapia.

Infelizmente, não vivemos em um mundo racional. As empresas farmacêuticas gastam centenas de milhões de dólares todos os anos influenciando políticos, fazendo propaganda enganosa para médicos e promovendo tratamentos farmacêuticos para o público. Eles venderam com sucesso a falsa ideia de que todos os sintomas emocionais se devem a um "desequilíbrio químico" no cérebro e, portanto, exigem uma solução medicamentosa. O resultado: 20% dos cidadãos norte-americanos usam medicamentos psicotrópicos, a maioria dos quais não passa de placebos caros e que  podem resultar em danosos efeitos colaterais.

As empresas farmacêuticas são um Golias comercial com enorme poder político e econômico. A psicoterapia é um pequenino David, sem orçamento para marketing; nenhum vendedor assediando os consultórios médicos; nenhum anúncio de TV; sem pop-ups na internet; nenhuma influência com políticos ou companhias de seguro. Não surpreende, portanto, que a negligência do NIMH na pesquisa sobre psicoterapia tenha sido acompanhada por sua negligência na prática clínica. E o apoio do NIMH ao reducionismo biológico fornece uma legitimação involuntária e injustificada para a alegação das empresas farmacêuticas de que existe uma pílula para cada problema humano.

Um orçamento equilibrado do NIMH ajudaria bastante a corrigir as duas maiores catástrofes da saúde mental na atualidade. Estudos comparando psicoterapia versus medicação para uma ampla variedade de transtornos mentais leves a moderados ajudariam a equilibrar o jogo para os duas modalidades de tratamento e, eventualmente, reduziriam nossa enorme dependência de tratamentos medicamentosos para “desequilíbrios químicos” inexistentes. A pesquisa sobre serviços de saúde é urgentemente necessária para determinar as melhores práticas para ajudar as pessoas com doenças mentais graves a evitar e superar o encarceramento e o desabrigamento [homelessness].

O NIMH tem o direito de manter o olho no futuro, mas não à custa das necessidades desesperadas do presente. A pesquisa cerebral deve continuar sendo uma parte importante de uma agenda equilibrada do NIMH, mas não sua única preocupação. Após 30 anos percorrendo um beco sem saída bio-reducionista, já passou da hora do NIMH considerar um retomada biopsicossocial e reequilibrar seu portfólio de pesquisa bastante desigual .

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Os seres humanos e suas obsessões: breves reflexões sobre duas séries documentais do Netflix

O que seria do mundo sem as pessoas obsessivas? Fiquei pensando nessa questão após finalizar duas minisséries documentais fantásticas recém-lançadas pela Netflix: "Prescrição fatal" e "Quem matou Malcolm X?". Nos dois casos temos como personagens centrais sujeitos extremamente obsessivos, cada uma com determinada questão, e, que, por conta de tais obsessões, fizeram investigações super-importantes. No caso de Prescrição fatal, originalmente denominada The pharmacist, acompanhamos as investigações realizadas de forma minuciosa pelo farmacêutico Dan Schneider: inicialmente sobre a morte de seu filho, enquanto este comprava drogas em um bairro pobre de sua cidade, e posteriormente sobre um complexo esquema de prescrição e venda de um opióide fortíssimo, altamente viciante e propício à overdose chamado Oxycontin. É a investigação iniciada por este sujeito que descortina toda uma rede de médicos antiéticos e indústria farmacêutica gananciosa e desencadeia um importante processo de ampliação do controle das prescrições de opióides - e também, como efeito colateral indesejado, um aumento no consumo de heroína nos Estados Unidos. Já no segundo caso, o documentário acompanha as investigações, igualmente minuciosas, realizadas pelo "historiador leigo" Abdur-Rahman Muhammad sobre quem teria assassinado o grande lider negro Malcolm X em 1965. A obsessão de Abdur com esse caso, relacionada à sua admiração por Malcolm X e à sua percepção de que a versão oficial dos acontecimentos não é verdadeira, dominou toda a sua vida e o tornou o maior especialista vivo sobre este assassinato. Mas para além dos temas específicos destas duas minisséries, elas expõem de forma bastante interessante a importância de indivíduos obsessivos e obcecados como Dan e Abdur. Se todos fossem absolutamente sensatos, ajustados e obedientes - o que costumamos chamar de "normal" - a humanidade perderia tremendamente, não só em diversidade, mas também no avanço do conhecimento sobre si mesma e sobre o mundo.

A consciência é real

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo Consciousness is real, publicado no site AEON no dia 16 de Dezembro de 2019 pelo professor de filosofia da City College of New York Massimo Pigliucci. Não concordo com partes da argumentação do autor - em especial com sua crítica à visão dualista, que ele acaba defendendo sem se dar conta (o que é muito comum) e também com sua expectativa de que um dia a neurociência compreenderá plenamente o funcionamento da consciência fenomenal, o que duvido muito - mas acho importante sua visão da consciência como algo real e não uma ilusão, como alguns filósofos e neurocientistas tem defendido, de forma equivocada, ao longo dos anos.

Atualmente está na moda rotular a consciência como uma "ilusão". Isso, por sua vez, gera a impressão, especialmente entre o público leigo, de que a maneira como normalmente pensamos  sobre nossa vida mental tem sido drasticamente alterada pela ciência. Embora isso seja verdade em um sentido muito específico e técnico, a consciência permanece indiscutivelmente a característica evolutiva mais distinta da humanidade, permitindo não apenas experimentarmos o mundo, como fazem outras espécies animais, mas também refletirmos deliberadamente sobre nossas experiências e mudarmos o curso de nossas vidas a partir de tais reflexões.

Muita confusão, como veremos, está relacionada ao que  queremos dizer exatamente com "consciência" e "ilusão". De forma a organizar tais ideias construtivamente, em vez de simplesmente vagarmos por uma vasta literatura sobre filosofia da mente e da ciência cognitiva, considere o fascinante ensaio de Keith Frankish para o site Aeon [denominado The consciousness illusion]. Ele começa fazendo uma distinção entre consciência fenomenal [phenomenal consciousness] e consciência de acesso [acess consciousness]. A consciência fenomenal é aquela que produz a qualidade subjetiva da experiência, que os filósofos chamam de 'qualia'. É essa consciência que possibilita a nós (e, presumivelmente, a várias outras espécies animais) experimentar como é, por exemplo, enxergar a cor vermelha, saborear uma fruta ou escrever ensaios sobre filosofia da mente.

Por outro lado, é a consciência de acesso que nos permite perceber as coisas ao nosso redor. Como afirma Frankish, a consciência de acesso é o que "torna a informação sensorial acessível ao resto da mente e, portanto, a 'você '- a pessoa constituída por esses sistemas mentais incorporados". Antes que você possa experienciar a cor vermelha, você precisa ser capaz de realmente enxergar tal cor. Frankish concorda que a consciência de acesso é uma coisa real, não uma ilusão, embora ele acrescente corretamente que ainda estamos muito distantes em nossa busca por entendê-la cientificamente. Talvez o aspecto mais conhecido da consciência de acesso seja o sistema visual, a parte do sistema nervoso central que nos permite ver o mundo. Conhecemos bastante sobre os aspectos anatômicos, fisiológicos e neurobiológicos desse sistema, e é razoável presumir que outros constituintes da consciência de acesso trabalhem de maneira semelhante e que a ciência possa, pelo menos em princípio, entendê-los melhor através de abordagens experimentais e observacionais.

Mas, argumenta Frankish, vários filósofos diriam que, mesmo se tivéssemos uma descrição completa da consciência de acesso, ainda haveria algo fundamentalmente incompleto em nosso retrato da consciência como um todo. Essa parte faltante - a consciência fenomenal - é o que fundamenta o que é sentir algo ou, como Thomas Nagel apontou em seu artigo clássico, 'Como é ser um morcego?' (1974).

Aqui é onde ocorre a divisão fundamental na filosofia da mente entre "dualistas" e "ilusionistas". Ambos os campos concordam que há mais na consciência do que o aspecto do acesso e, que além disso, a consciência fenomenal parece ter propriedades não-físicas. A partir daí, pode-se seguir em duas direções muito diferentes: o caminho científico, tentando explicar como a ciência pode nos fornecer uma descrição satisfatória da consciência fenomenal, como faz Frankish; ou o caminho anti-científico, alegando que a consciência fenomenal está fora do domínio de competência da ciência, como [o filósofo] David Chalmers tem discutido durante a maior parte de sua carreira, por exemplo, em seu livro The Conscious Mind (1996).

Ao adotar a posição anti-científica, Chalmers e companhia são forçados a se tornar dualistas. Dualismo é a noção de que os fenômenos físicos e mentais são de alguma forma irreconciliáveis, dois tipos diferentes de seres, por assim dizer. Classicamente, o dualismo diz respeito a duas substâncias: segundo [o filósofo] René Descartes, o corpo é feito de uma substância física (em latim, res extensa), enquanto a mente é feita de uma substância mental (em latim, res cogitans). Atualmente, graças aos avanços na física e na biologia, ninguém mais leva a sério o dualismo de substâncias. A alternativa é algo chamado dualismo de propriedades, que reconhece que tudo - corpo e mente - é feito das mesmas coisas básicas (quarks e assim por diante), mas que essas coisas de alguma forma (observe a imprecisão aqui) mudam quando são organizadas em cérebros e fazem surgir certas propriedades especiais que não existem em nenhum outro lugar do mundo material (Para saber mais sobre a diferença entre o dualismo de propriedades e de substâncias, consulte a definição de Scott Calef)

Os "ilusionistas", por outro lado, seguem o caminho científico, aceitando o fisicalismo (ou o materialismo, ou algum outro "ismo" similar), o que significa que eles pensam - em consonância com a ciência moderna - não apenas que tudo é feito do mesmo tipo básico de coisas, mas que não existem barreiras especiais que separam os fenômenos físicos dos mentais. No entanto, como essas pessoas concordam com os dualistas que a consciência fenomenal parece algo fantasmagórico, a única opção para eles parece ser a de negar a existência do que quer que pareça ser não-físico. Daí a noção de que a consciência fenomenal é um tipo de ilusão.

O ilusionismo foi qualificado como "a afirmação mais idiota já feita" por Galen Strawson na The New York Review of Books no ano passado, mas é defendido por outros filósofos importantes, principalmente por Daniel Dennett. De fato, Dennett provavelmente foi quem iniciou essa tendência no início dos anos 90, com a publicação de seu influente livro Consciousness Explained  (1991) - que, embora certamente seja muito interessante, não explicava de fato a consciência. De fato, meu preferido dentre os livros de Dennett sobre esse assunto é o Elbow Room: The Varieties of Free Will Will Worth Wanting (1984).

Embora eu esteja tentado a simpatizar com Strawson aqui, acho que Dennett está mais próximo da realidade. Para entender o porquê, vamos considerar sua renomada analogia sobre a consciência fenomenal, que ele chama de "bombeamento de intuição" [intuition pump], conforme apresentado em Consciousness Explained. Dennett sugere que a consciência fenomenal é uma "ilusão do usuário" [user illusion], semelhante aos ícones que estamos acostumados a ver nas telas de nossos computadores (e também em tablets e smartphones). Aqui está como ele desenvolve sua analogia:

Quando eu interajo com um computador, tenho acesso limitado aos eventos que ocorrem dentro dele. Graças aos esquemas de apresentação elaborados pelos programadores, eu tenho acesso a uma metáfora audiovisual elaborada, a um drama interativo encenado no palco do teclado, mouse e tela. Eu, como usuário, estou sujeito a uma série de ilusões benignas: tenho a impressão de que sou capaz de mover o cursor do mouse (um servo poderoso e visível) para o mesmo lugar no computador em que mantenho um arquivo e, uma vez que vejo que o cursor chega 'lá', pressionando uma tecla eu consigo acessar o arquivo, movendo-o por um percurso que se desenrola na frente de uma janela (a tela) sob meu comando. Posso fazer todo tipo de coisa acontecer dentro do computador digitando vários comandos, pressionando vários botões, e não preciso saber os detalhes. Eu mantenho o controle confiando no meu entendimento das metáforas audiovisuais detalhadas proporcionadas pela ilusão do Usuário [User illusion].

Esta é realmente uma descrição muito poderosa (metafórica) da relação entre a consciência fenomenal e o mecanismo neural subjacente que a torna possível. Mas por que diabos a chamaríamos de "ilusão"? O termo lembra truques, fumaça e espelhos, o que definitivamente não é o que está acontecendo. Ícones de computador, cursores e outros elementos não são ilusões, são representações causalmente eficazes dos processos subjacentes da linguagem de máquina. Seria tedioso demais para a maioria dos usuários pensar em termos de linguagem da máquina e lento demais para interagir com o computador dessa maneira. É por isso que os programadores nos deram ícones e cursores. Mas eles estão causalmente conectados ao código subjacente da máquina, e é por isso que podemos realmente fazer as coisas acontecerem em um computador. Se fossem ilusões, nada aconteceria - seriam epifenômenos causalmente inertes.

Ou pegue um exemplo mais mundano. Você chamaria o volante de seu carro de uma ilusão? E, no entanto, quando você muda de um lado para o outro, definitivamente não está ciente dos (cada vez mais) complexos mecanismos que traduzem os movimentos simples que você faz em seu carro. Quando você gira o volante de maneira circular, as rodas do seu carro não giram da mesma maneira, elas mudam para a direita ou para a esquerda no plano horizontal (é por isso que você poderia ter carros com alavancas se movendo para a direita ou para a esquerda, ao invés de girar volantes). O volante, portanto, é, de certo modo, uma representação do que o carro fará se você agir de uma maneira ou de outra, e funciona porque está conectado causalmente à maquinaria subjacente de uma maneira que possibilita você operar com eficiência essas máquinas sem estar ciente disso.

A consciência fenomenal opera de forma semelhante. Os sentimentos e pensamentos que temos de como é experimentar determinada sensação são representações de alto nível dos mecanismos neurais subjacentes (de natureza totalmente diferente) que nos permitem perceber, reagir e navegar pelo mundo. Ao invés de programadores mais ou menos inteligentes, temos que agradecer bilhões de anos de uma evolução cega por seleção natural por essas representações causalmente eficazes. Chamá-las de ilusões é conduzir nosso pensamento para caminhos improdutivos, levando-nos - se não formos cuidadosos - a afirmações metafísicas e científicas que são tão problemáticas quanto as de Chalmers e companhia, e que Strawson não está inteiramente errado ao chamar de 'idiotas'.

Certamente é verdade, como sustentam os ilusionistas, que não temos acesso aos nossos próprios mecanismos neurais. Mas não precisamos disso, assim como um usuário de computador não precisa conhecer a linguagem da máquina - e, de fato, é muito melhor que não conheça. Isso não significa que estamos de alguma forma enganados sobre nossos próprios pensamentos e sentimentos. Não mais do que eu, como usuário de computador, posso estar enganado sobre qual 'pasta' contém o 'arquivo' no qual escrevi este ensaio.

Este papo sobre ilusão pode ser desencadeado pelo que eu vejo como uma tentação reducionista, a noção de que níveis mais baixos de descrição - neste caso, o neurobiológico - são de algum modo mais verdadeiros ou os únicos verdadeiros. A falácia desse tipo de pensamento pode ser trazida à luz de duas maneiras. Em primeiro lugar, e mais obviamente, por que parar no nível neurobiológico? Por que não dizer que os neurônios são ilusões, uma vez que são realmente feitos de moléculas? Mas espere! As moléculas também são ilusões, pois são realmente feitas de quarks. Ou cordas. Ou campos. Ou o que quer que seja a última novidade na física fundamental.

De fato, esse modo de pensar é atraente para alguns reducionistas gananciosos, mas é realmente tolo pela simples razão de que é insustentável. E é insustentável porque, quando se trata do entendimento humano, diferentes níveis de descrição são úteis para diferentes propósitos. Se estamos interessados ​​na bioquímica do cérebro, o nível adequado de descrição é o subcelular, tomando níveis mais baixos (por exemplo, o quantum) como condições de base [backgroud conditions]. Se queremos uma imagem mais ampla de como o cérebro funciona, precisamos avançar para o nível anatômico, que possui todos os níveis anteriores, do subcelular ao quântico, como condições de base. Mas se queremos conversar com outros seres humanos sobre como nos sentimos e o que estamos vivenciando, é o nível psicológico da descrição (o equivalente aos ícones e cursores de Dennett) que, longe de ser ilusório, é o mais valioso. É por isso que a antiga proposta de Paul e Patricia Churchland - de substituirmos a linguagem da "psicologia popular", digamos, sobre dor, por uma linguagem mais "científica" sobre o disparo de fibras C (parte do substrato neural que torna possível sentir a dor) - era realmente boba. Isso simplesmente não vai acontecer, assim como todos nós, usuários de computador, não vamos aprender de repente a linguagem da máquina e deixar de lado os cursores e ícones.

Quando os ilusionistas argumentam que o que experienciamos como qualia não é 'nada parecido' com nossos mecanismos mentais internos reais, eles estão, de certa forma, certos. Mas eles também parecem se esquecer que tudo o que percebemos do mundo exterior é uma representação e não a coisa-em-si. Veja o sistema visual, que, como mencionei anteriormente, é um dos exemplos mais bem compreendidos de consciência de acesso e que torna a consciência fenomenal possível. Na realidade, nossos olhos percebem uma faixa muito estreita do espectro eletromagnético, determinada pelo ambiente específico em que evoluímos como primatas sociais, bem como pelo tipo de radiação que sai do Sol e passa pelos filtros da atmosfera da Terra. Em outras palavras, há muita coisa que não vemos. De modo algum.

Mesmo o fato de vermos o mundo do jeito certo, ao invés de de cabeça para baixo, é um truque (uma "ilusão"?) do cérebro, uma vez que a ótica de nossos olhos é tal que objetos externos geram um conjunto invertido de sinais atingindo nossa retina. É o cérebro que reinterpreta os impulsos elétricos correspondentes para que possamos ver o mundo corretamente (veja aqui) Algumas pessoas (mas não todas) podem experimentar o quão bizarro isso é usando um óculos invertido [upside-down goggles]. Esses óculos invertem a imagem vinda de fora antes que os sinais estimulem a retina, mostrando aos sujeitos como seria o mundo se o cérebro deles não compensasse a inversão. Em algumas pessoas, o cérebro se adapta rapidamente e reinverte o padrão de sinal, para que o mundo acabe parecendo "normal" novamente. Isto é, até que os sujeitos tirem os óculos e vejam o mundo de cabeça para baixo até o cérebro compensar mais uma vez. Por que diabos as coisas funcionam dessa maneira? Porque o olho humano evoluiu para utilizar os princípios básicos da ótica, mas o cérebro aperfeiçoou este mecanismo desde que percebeu que é mais fácil para os seres humanos navegar no mundo se o enxergarem do lado certo, e não de forma invertida.

Seguindo John Searle, penso que a consciência é um avançado mecanismo biológico com valor adaptativo e que tratá-la como uma ilusão é, em grande medida, uma negação dos dados que precisam ser explicados. Em seu livro A redescoberta da mente (1992), Searle escreve:

Aquilo em que quero insistir incessantemente é que podemos aceitar os fatos óbvios da física - por exemplo, que o mundo é composto inteiramente de partículas físicas em campos de força - sem, ao mesmo tempo, negar os fatos óbvios de nossas próprias experiências - por exemplo, que somos todos conscientes e que nossos estados conscientes têm propriedades fenomenológicas irredutíveis bastante específicas. 

'Irredutibilidade' aqui não é um conceito místico e pode ser compreendido de várias maneiras. Não sei em que direção o próprio Searle se inclina, mas penso na consciência como um fenômeno fracamente emergente [weakly emergent], não muito diferente, digamos, da umidade da água (embora muito mais complicado). Moléculas individuais de água têm várias propriedades físico-químicas, mas a umidade não é uma delas. Elas desenvolvem essa propriedade somente sob circunstâncias ambientais específicas (em termos de temperatura e pressão ambiental) e somente quando há um número suficientemente grande delas. Fundamentalmente, as propriedades da água dependem não apenas do número e do arranjo das moléculas, mas também de como as próprias moléculas são constituídas. Se elas tivessem um número diferente de nêutrons ou elétrons em seus átomos, ou um número diferente de átomos, elas teriam diferentes propriedades.

Os fenômenos mentais funcionam de forma semelhante, tanto no caso da consciência de acesso quanto no caso da consciência fenomenal. Embora não exista nada de fantasmagórico nisso (é preciso dizer adeus a toda forma de dualismo), números e arranjos específicos de neurônios parecem não ser suficientes para produzir tais fenômenos. Os neurônios envolvidos também precisam ser feitos das (e produzir as) coisas certas: não é apenas a forma como eles estão organizados no cérebro que gera o truque, mas também são necessárias certas propriedades físicas e químicas específicas que as células baseadas em carbono possuem, que as alternativas baseadas em silício podem possuir ou não (é uma questão empírica aberta) e que cartolina, por exemplo, definitivamente não possui.

Segue-se que uma explicação da consciência fenomenal virá (se vier - não há garantia de que, apenas porque queremos saber algo, eventualmente descobriremos uma maneira de realmente compreendê-lo) da neurociência e da biologia evolutiva, uma vez que a compreensão do cérebro humano será comparável à nossa compreensão do funcionamento interno de nossos próprios computadores. Veremos claramente a conexão entre os mecanismos subjacentes e as representações causalmente eficazes (não ilusões!) que nos permitem trabalhar eficientemente com computadores, sobreviver e reproduzir em nosso mundo como organismos biológicos.

Os seres humanos e suas imperfeições: breves reflexões sobre a série Fleabag

Assisti as duas pequenas temporadas da premiada série britânica Fleabag - são apenas 12 episódios com cerca de 25 minutos cada - e minhas impressões são contraditórias. Ao mesmo tempo em que não achei a série tudo isso que as premiações e as críticas dão a entender, algumas questões e situações da série não saem da minha mente. Pra começo de conversa, a série não é, definitivamente, uma comédia, apesar de ter momentos hilários - especialmente na primeira temporada. Fleabag é um drama - pesado até - sobre as complicadas e ambíguas relações humanas. Mais precisamente é possível dizer que se trata de um drama existencial - com proximidades temáticas e etárias (os protagonistas estão na casa dos 30) com a série Master of none. A protagonista, interpretada pela talentosa atriz Phoebe Waller-Bridge, que também é responsável pelo roteiro, é uma mulher no mínimo complicada e de fato bastante desagradável - e é o talento e complexidade da interpretação da atriz que faz com que de alguma forma gostemos e nos identifiquemos com Fleabag (literalmente "saco de pulgas" mas que, na verdade, é uma expressão inglesa usada para se referir a pessoas desagradáveis). Pois bem, Fleabeg faz muita merda, repetidas vezes, prejudicando aqueles que ela ama e especialmente a si mesma - mas acabamos por perdoá-la por entender que se trata de uma pessoa triste, perdida e solitária. O forte da série aliás, é a identificação que ela proporciona (ou, pelo menos proporcionou para mim) com a imperfeita e frágil protagonista. Fleabag não é perfeita nem feliz como as pessoas tentam se mostrar nas redes sociais. Ela não tem respostas para muitas perguntas e se encontra constantemente perdida com relação ao próprio caminho. E nesta busca por respostas e caminhos ela se equivoca de formas inimagináveis - como todos nós (#quemnunca?). Enfim, trata-se de uma série que faz pensar sobre as imperfeições dos seres humanos e de suas relações. Terminei a série melancólico, com um gosto amargo na boca.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Humildade e insegurança são características de um bom terapeuta

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Humility and self-doubt are hallmarks of a good therapist, publicado no site AEON no último dia 5 de Fevereiro pela professora e pesquisadora de psicologia clínica da Universidade de Oslo Helene Nissen-Lie. OBS: optei por traduzir self-doubt por insegurança em função da tradução literal, auto-dúvida (no sentido de dúvidas sobre a própria capacidade) não ser comumente utilizada em português. 

"O problema do mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre seguros de si e as pessoas mais sábias cheias de dúvidas." Esse fenômeno - observado na década de 1930 pelo filósofo inglês Bertrand Russell - tem um nome técnico, o efeito Dunning-Krüger. Este efeito diz respeito à tendência de as pessoas com os piores desempenhos superestimarem a própria performance, enquanto aquelas com os melhores desempenhos subestimarem a si mesmas. O paradoxo de Dunning-Krüger foi encontrado em ambientes acadêmicos e empresariais, mas e no contexto da psicoterapia? É melhor ter um terapeuta confiante ou alguém com inseguranças?

Infelizmente, a auto-avaliação dos psicoterapeutas também é tendenciosa. Quando solicitados a classificar seus próprios desempenhos na psicoterapia, os terapeutas tendem a se superestimar. Além disso, como apontou um estudo, o excesso de confiança era mais típico daqueles terapeutas classificados como menos competentes por um avaliador independente. Em contraste, outros estudos descobriram que são os terapeutas que se avaliam mais negativamente que geralmente são considerados os mais competentes por especialistas independentes.

Inspirado por essas descobertas, um estudo alemão recente comparou as estimativas dos terapeutas sobre o progresso de seus clientes com a melhora real destes com a terapia. Os resultados fornecem a evidência mais convincente até o momento da humildade como uma virtude terapêutica. Quanto mais modesta ou conservadora a estimativa de um terapeuta sobre o progresso de seus clientes, mais os sintomas destes diminuíam e a qualidade de vida aumentava.


Tais achados ajudam a explicar o resultado de uma série de estudos de psicoterapia naturalista que meus colegas e eu conduzimos recentemente, nos quais avaliamos a contribuição de inúmeras variáveis ​​do terapeuta para os resultados da terapia. Uma descoberta em particular se destacou: os terapeutas com pontuações mais altas em insegurança profissional (por exemplo, aqueles que não tinham confiança de que poderiam ter efeitos benéficos sobre os clientes e se sentiam inseguros sobre a melhor maneira de lidar eficazmente com determinada pessoa) tendem a receber classificações mais positivas de seus clientes em termos da aliança terapêutica (isto é, da qualidade do relacionamento entre terapeuta e cliente) e dos resultados da terapia. Essa descoberta nos surpreendeu a princípio. Acreditávamos que menos - e não mais - insegurança seria algo benéfico para o cliente. No entanto, o resultado faz todo sentido à luz das pesquisas anteriores que mostraram os benefícios da humildade do terapeuta.

A disposição para ouvir o outro provavelmente é central para explicar por que a humildade é benéfica. Uma atitude humilde também pode ser necessária para que os terapeutas estejam abertos ao feedback sobre o progresso real de seus clientes, em vez de apenas supor que tudo está indo bem ou culpar o cliente pela falta de progresso. A humildade também pode dar aos terapeutas a disposição para se auto-corrigir quando necessário e motivá-los a se envolver em 'uma prática deliberada' (que visa melhorar suas habilidades com base no monitoramento cuidadoso do desempenho e no recebimento de feedback). Referindo-se a suas próprias descobertas, bem como a pesquisas sobre 'terapeutas mestres' (terapeutas considerados especialmente competentes por seus pares), Michael Helge Rønnestad, da Universidade de Oslo, e Thomas Skovholt, da Universidade de Minnesota - ambos especialistas no desenvolvimento de psicoterapeutas - sintetizaram assim em seu livro The Developing Practitioner: Growth and Stagnation of Therapists and Counsellors  (2013): 'A humildade parece ser uma característica dos experts [em psicoterapia] em muitos estudos'.

Outras evidências da importância da humildade para a psicoterapia vem de pesquisas sobre a "humildade cultural" dos terapeutas. Adotar uma abordagem culturalmente humilde significa buscar uma postura curiosa, sem julgamentos e sensível ao que a identidade cultural dos clientes significa para eles (no caso de etnia, religião, fé, orientação sexual ou identidade de gênero) e inseri-la no trabalho terapêutico. Há um crescente corpo de evidências ligando a humildade cultural à eficácia terapêutica, com clientes que veem seus terapeutas como mais humildes culturalmente tendendo a alcançar melhores resultados.

A humildade é um componente paradoxal da expertise? Na verdade, não: um expert (ou especialista) é, antes de tudo, alguém que continua aprendendo - e isso parece se aplicar tanto aos psicoterapeutas quanto a outras profissões. Como Joshua Hook, psicólogo da Universidade do Norte do Texas e co-autor de Cultural Humility (2017), e seus colegas afirmaram recentemente: “Por seu próprio valor, a humildade pode parecer o oposto da experiência, mas argumentamos que a humildade é fundamental [para se alcançar a excelência clínica]". Tomadas em conjunto, as crescentes evidências dos benefícios da humildade do terapeuta apoiam a observação do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, que escreveu em 1859 que "toda ajuda verdadeira começa com a humildade".

No entanto, a humildade do terapeuta por si só não é suficiente para que a terapia seja eficaz. Em nosso último estudo, avaliamos o quanto os terapeutas tratam a si mesmos de maneira gentil e com perdão em suas vidas pessoais (ou seja, relatam mais 'auto-aceitação' [self-affiliation]) e em suas percepções de si mesmos em termos profissionais. Previmos que o nível de auto-aceitação pessoal dos terapeutas aumentaria o efeito que a insegurança profissional tem sobre a mudança terapêutica. Nossa hipótese foi apoiada: os terapeutas que relataram mais inseguranças em seu trabalho aliviam mais o sofrimento do cliente se eles também relatam ser gentis consigo mesmos fora do trabalho (em contraste, os terapeutas que obtiveram pontuação baixa em insegurança e elevada em auto-aceitação contribuíram menos para a mudança).

Interpretamos esse achado de forma a sugerir que uma postura autocrítica benigna é benéfica para o terapeuta, mas que o autocuidado e o autoperdão sem a autocrítica reflexiva não são. A combinação de auto-aceitação e dúvida profissional parece abrir caminho para uma atitude aberta e auto-reflexiva que permite aos psicoterapeutas respeitar a complexidade de seu trabalho e, quando necessário, corrigir o curso terapêutico para ajudar os clientes de maneira mais eficaz.


O que tudo isso significa? Em uma época em que as pessoas tendem a pensar que o valor está baseado no quão confiantes elas são e que elas devem "vender" a si próprias em todas as situações, a descoberta de que a humildade do terapeuta é uma virtude subestimada e um ingrediente paradoxal da experiência pode ser um alívio. Certamente eu descobri que os achados sobre a importância da humildade tem ressonância com os terapeutas, muitos dos quais demonstram ceticismo com relação aos profissionais excessivamente confiantes no campo psicoterapêutico e em outros campos. Agora precisamos incorporar a mensagem de que a humildade é uma qualidade importante do terapeuta no treinamento e na supervisão. Parte disso envolverá uma mudança cultural, para que terapeutas qualificados possam agir como modelos de humildade para clientes e estudantes, sem medo de perder o respeito ou a autoridade.