sexta-feira, 6 de março de 2020

A atração pela pesquisa cerebral está sufocando a psicoterapia

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The lure of ‘cool’ brain research is stifling psychotherapy, publicado no site AEON no dia 04 de Março de 2020 pelo famoso psiquiatra Allen Frances, professor da Duke University School of Medicine in North Carolina e que foi presidente da força-tarefa que elaborou o DSM-IV. Allen é autor de diversos livros, dentre eles Fundamentos do diagnóstico psiquiátrico e Voltando ao normal, ambos já publicados no Brasil.

"Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e errada" 
HL Mencken no livro Prejudices (1920)

Nunca houve um problema mais complexo para a humanidade do que entender nossa própria natureza. E não faltam respostas simples, elegantes e erradas alegando examinar essa questão.

Tendo tratado milhares de pacientes psiquiátricos em minha carreira, e trabalhado nos esforços da American Psychiatric Association (APA) para classificar os sintomas psiquiátricos (publicados como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou DSM-IV e DSM-5), posso afirmar com confiança que não há respostas simples na psiquiatria. O melhor que podemos fazer é adotar um modelo quadridimensional ecumênico que inclua todos as possíveis contribuições para o funcionamento humano: o biológico, o psicológico, o social e o espiritual. Reduzir as pessoas a apenas um elemento - seu funcionamento cerebral, suas tendências psicológicas, seu contexto social ou sua luta por significado - resulta em uma imagem distorcida e rasa que deixa de fora mais do que consegue capturar.

O Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) foi criado em 1949 pelo governo federal dos Estados Unidos com o objetivo prático de fornecer 'uma análise nacional, objetiva e detalhada, dos problemas humanos e econômicos relacionados à saúde mental'. Até 30 anos atrás, o NIMH valorizava a necessidade dessa abordagem abrangente e mantinha um orçamento de pesquisa equilibrado que cobria uma gama extraordinariamente ampla de tópicos e técnicas.

Mas em 1990, o NIMH mudou anos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.repentinamente e radicalmente de curso, embarcando naquilo que foi chamado de "Década do Cérebro". Desde então, o NIMH tem cada vez mais estreitado seu foco, se dedicando quase exclusivamente à biologia cerebral - e deixando de fora tudo o que nos torna humanos, tanto na doença quanto na saúde. Tendo em grande parte perdido o interesse pela situação das pessoas reais, o NIMH poderia agora ser renomeado com mais precisão de 'Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro'.

Esse reducionismo equivocado teve início com a disponibilidade de ferramentas de pesquisa espetaculares (por exemplo, o Projeto Genoma Humano, a ressonância magnética funcional, a biologia molecular e o aprendizado da máquina [machine learning]) combinadas com a ingênua crença de que a biologia cerebral poderia explicar todos os aspectos do funcionamento mental. Os resultados foram uma gigantesca aventura intelectual mas um colossal fracasso clínico. Abrimos uma fantástica janela para o funcionamento dos genes e do cérebro, mas que pouco ajudou na prática clínica.

Quanto mais aprendemos sobre genética e cérebro, mais incrivelmente complicados ambos se revelam. Depois de três décadas e mais de 50 bilhões investidos, nós não colhemos os frutos de tais pesquisas simplesmente porque não há frutos a serem colhidos. O cérebro humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios, cada um se comunicando com milhares de outros através de centenas de moduladores químicos, levando a trilhões de potenciais conexões. Não é de se admirar que ele revele seus segredos apenas muito gradualmente e de maneira fragmentada.

A genética oferece a mesma desconcertante complexidade. Por exemplo, variações em mais de 100 genes contribuem para a vulnerabilidade à esquizofrenia, com cada gene contribuindo apenas um pouquinho, e interagindo das maneiras mais incrivelmente complicadas com outros genes e também com o ambiente físico e social. De forma ainda mais desanimadora, os mesmos genes geralmente estão implicados na vulnerabilidade a vários transtornos mentais - eliminando qualquer esforço para estabelecer uma especificidade. As permutações quase intermináveis ​​derrotarão qualquer resposta genética fácil, não importa quantas décadas e bilhões sejam investidos.

O NIMH se enquadrou em um portfólio de pesquisa bastante desequilibrado. Entreter-se com os divertidos "brinquedos"  da pesquisa genética e cerebral tem infelizmente superado a tarefa muito mais difícil e menos intelectualmente gratificante de ajudar pessoas reais.

Agora contraponha este fracassso atual do NIMH com a gradiosa história de sucesso desta instituição. Um dos pontos altos da minha carreira foi fazer parte de um comitê do NIMH, que fundou os estudos sobre psicoterapia nos anos 80. Ajudamos a apoiar a pesquisa da psicóloga americana Marsha Linehan que a levou a desenvolver a terapia comportamental dialética; contribuimos para o desenvolvimento da terapia cognitiva concebida pelo psiquiatra norte-americano Aaron T. Beck; além de apoiar muitos outros pesquisadores e temas. Estudos subsequentes estabeleceram que a psicoterapia é tão eficaz quanto os medicamentos para depressão leve a moderada, ansiedade e outros problemas psiquiátricos e ainda evita o ônus dos efeitos colaterais e das complicações dos medicamentos. Milhares de pessoas em todo o mundo foram beneciciadas pelas pesquisas sobre psicoterapia realizadas pelo NIMH.

Em um mundo racional, o NIMH continuaria a direcionar um orçamento robusto para a pesquisa sobre psicoterapia e promoveria seu uso como uma iniciativa de saúde pública para reduzir a atual superprescrição de medicamentos psiquiátricos nos EUA. A psicoterapia breve seria o tratamento de primeira linha para maioria dos problemas psiquiátricos que requerem intervenção. Os tratamentos com medicamentos seriam reservados para problemas psiquiátricos graves e para aquelas pessoas que não responderam suficientemente à observação assistida ou à psicoterapia.

Infelizmente, não vivemos em um mundo racional. As empresas farmacêuticas gastam centenas de milhões de dólares todos os anos influenciando políticos, fazendo propaganda enganosa para médicos e promovendo tratamentos farmacêuticos para o público. Eles venderam com sucesso a falsa ideia de que todos os sintomas emocionais se devem a um "desequilíbrio químico" no cérebro e, portanto, exigem uma solução medicamentosa. O resultado: 20% dos cidadãos norte-americanos usam medicamentos psicotrópicos, a maioria dos quais não passa de placebos caros e que  podem resultar em danosos efeitos colaterais.

As empresas farmacêuticas são um Golias comercial com enorme poder político e econômico. A psicoterapia é um pequenino David, sem orçamento para marketing; nenhum vendedor assediando os consultórios médicos; nenhum anúncio de TV; sem pop-ups na internet; nenhuma influência com políticos ou companhias de seguro. Não surpreende, portanto, que a negligência do NIMH na pesquisa sobre psicoterapia tenha sido acompanhada por sua negligência na prática clínica. E o apoio do NIMH ao reducionismo biológico fornece uma legitimação involuntária e injustificada para a alegação das empresas farmacêuticas de que existe uma pílula para cada problema humano.

Um orçamento equilibrado do NIMH ajudaria bastante a corrigir as duas maiores catástrofes da saúde mental na atualidade. Estudos comparando psicoterapia versus medicação para uma ampla variedade de transtornos mentais leves a moderados ajudariam a equilibrar o jogo para os duas modalidades de tratamento e, eventualmente, reduziriam nossa enorme dependência de tratamentos medicamentosos para “desequilíbrios químicos” inexistentes. A pesquisa sobre serviços de saúde é urgentemente necessária para determinar as melhores práticas para ajudar as pessoas com doenças mentais graves a evitar e superar o encarceramento e o desabrigamento [homelessness].

O NIMH tem o direito de manter o olho no futuro, mas não à custa das necessidades desesperadas do presente. A pesquisa cerebral deve continuar sendo uma parte importante de uma agenda equilibrada do NIMH, mas não sua única preocupação. Após 30 anos percorrendo um beco sem saída bio-reducionista, já passou da hora do NIMH considerar um retomada biopsicossocial e reequilibrar seu portfólio de pesquisa bastante desigual .
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