domingo, 15 de março de 2020

A testosterona é amplamente, às vezes terrivelmente, mal compreendida

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Testosterone is widely, and sometimes wildly, misunderstood, publicado no site AEON no dia 10 de Março de 2020 pelo professor de antropologia da Brown University Matthew Gutmann, que é autor de vários livros, dentre eles Are Men Animals? How Modern Masculinity Sells Men Short (2019). Uma observação sobre o título original do artigo é que ele faz um jogo de palavras, impossível se ser captado na tradução, com as expressões "widely" (amplamente, consideravelmente) e "wildly" (extremamente, violentamente), cujas pronúncias são semelhantes.

Nós damos um crédito injustificado às explicações biológicas do comportamento masculino. Em nenhum caso isso é mais verdadeiro do que com a testosterona. Especialistas contemporâneos invocam o hormônio, apelidado de 'T', para provar ideias sobre a masculinidade e a virilidade, para mostrar como são diferentes homens e mulheres e também para explicar por que alguns homens (presumivelmente aqueles com mais T) têm maior libido. No entanto, apesar das propriedades míticas popularmente associadas ao T, em todos os rigorosos estudos científicos realizados até o momento não há correlação significativa, em homens saudáveis, ​​entre os níveis de T e o desejo sexual.

Começando na década de 1990 e ganhando força nos anos 2000, as vendas de terapias de reposição de testosterona (testosterone replacement therapies - TRTs) passaram [a lucrar] de praticamente zero a mais de 5 bilhões de dólares por ano  em 2018. Isso ocorreu porque houve um surto repentino de 'Baixo T', momento em que uma grande epidemia médica foi finalmente reconhecida - ou porque o T tornou-se comercializado como uma droga milagrosa para os homens que entraram em pânico quando descobriram que seus níveis de T diminuíam 1% ao ano após atingirem 30 anos. 

A resposta não é que o corpo dos homens mudou ou que a baixa de T foi terrivelmente subdiagnosticada antes, mas que, na mente de muitos, ela se tornou nada menos que uma molécula masculina mágica que poderia curar homens com declínio de energia e desejo sexual à medida que envelheciam.

Além do mais, muitos foram instruídos a acreditar que, se você quer saber o que faz com que alguns homens sejam agressivos, basta testar seus níveis de T, certo? Na verdade, errado: a ciência também não apoia esta conclusão. Alguns dos famosos estudos iniciais que ligavam T à agressão foram realizados com populações carcerárias e foram usados ​​efetivamente para 'provar' que níveis mais altos de T eram encontrados em alguns homens (leia-se: homens de pele mais escura), o que explicava por que eles eram mais violentos e por que tinham de ser presos de uma forma desproporcional. As falhas metodológicas nesses estudos levaram décadas para serem esclarecidas, e novas pesquisas rigorosas, que mostram uma reduzida relação entre T e agressão (exceto em níveis muito altos ou muito baixos), tem somente agora chegado ao público geral.

Além do mais, entende-se atualmente que o T não é apenas uma coisa (um hormônio sexual) com um objetivo (reprodução masculina). O T também é essencial para o desenvolvimento de embriões, músculos, cérebros femininos e masculinos e glóbulos vermelhos. A depender de uma série de fatores biológicos, ambientais e sociais, sua influência é variada - ou insignificante.

Robert Sapolsky, um neurocientista da Universidade de Stanford, na Califórnia, compilou uma tabela mostrando que havia apenas 24 artigos científicos sobre a relação entre T e agressão entre 1970 e 1980, e mais de 1.000 somente na década de 2010. Isto significa que foram feitas novas descobertas sobre a relação entre agressão e T? Na verdade não, embora tenha surgido nesse período novas descobertas mostrando a importância do T no estímulo à ovulação em mulheres. Há que se atentar também para a diferença entre correlação e causa (a relação entre níveis de T e agressão, por exemplo, proporciona um desafio clássico do tipo "ovo ou galinha"). Como os principais especialistas em hormônios nos mostram há anos, para a grande maioria dos homens, é impossível prever quem será ou não agressivo com base no nível de T, assim como se você encontrar um homem (ou uma mulher) agressivo(a), não pode prever seu nível de T.

A testosterona é uma molécula que foi incorretamente rotulada,  há quase 100 anos, como um 'hormônio sexual', porque (algumas coisas nunca mudam) os cientistas procuravam diferenças biológicas definitivas entre homens e mulheres, e o T deveria desvendar os mistérios da masculinidade inata. E de fato o T é importante os cérebros, biceps e testículos dos homens mas também é essencial para os corpos femininos. E, para constar, a dimensão nos níveis de T não significa necessariamente nada: às vezes, a mera presença de T é mais importante que a quantidade do hormônio. É mais ou menos como ligar um carro: você só precisa de combustível, sejam dois galões ou 200. Além disso o T nem sempre cria diferenças entre homens e mulheres, ou mesmo entre homens. Acrescente-se à tudo isso que ainda existem evidências de que os homens que relatam alterações após tomar suplementos de T estão relatando apenas efeitos placebos mais do que qualquer outra coisa.

Ainda assim, continuamos atribuindo ao T poderes sobrenaturais. Em 2018, uma vaga para a Suprema Corte dos EUA acabou suscitando discussões sobre isso. As questões nas audiências de confirmação [de um indicado à Suprema Corte] se focaram na violência sexual masculina contra as mulheres. Descrições e análises minuciosas foram necessárias. Analistas prós e contras eventualmente se utilizaram da testosterona para descrever, denunciar ou defender o comportamento passado do juiz Brett Kavanaugh [saiba mais sobre esse caso clicando aqui]: um comentarista da Forbes escreveu sobre 'estupros grupais induzidas por testosterona'; outro, entrevistado na CNN, perguntou: 'Mas estamos falando de um garoto de 17 anos no ensino médio com testosterona à flor da pele. Diga-me, que garoto não fez isso na escola?'; e um terceiro, em uma coluna do The New York Times escreveu: "Ele estava surfando em uma onda da testosterona e bebida..." [that's him riding a wave of testosterone and booze]

E é improvável que muitos leitores tenham questionado a "lógica hormonal" de Christine Lagarde, então presidente do Fundo Monetário Internacional, quando ela afirmou que o colapso econômico de 2008 se deveu em parte ao fato de muitos homens serem responsáveis ​​pelo setor financeiro: 'Eu sinceramente penso que nunca deveria haver tanta testosterona em uma sala'.

Você pode encontrar o T sendo utilizado como biomarcador para explicar (e às vezes desculpar) o comportamento masculino em artigos e discursos todos os dias. Licença poética, pode-se dizer. Ou apenas uma maneira curta e grossa de dizer que os machos devem permanecer no comando. No entanto, quando elevamos o T a algo significativo para explicar o comportamento masculino, podemos inadvertidamente desculpar o comportamento masculino como se este estivesse além da capacidade de controle dos homens reais. Apelos à masculinidade biológica implicam que os relacionamentos patriarcais estão enraizados na natureza.

Quando normalizamos a ideia de que o T está presente em todos os garotos do ensino médio e que isso explica por que o estupro ocorre, nós abandonamos um eufemismo e passamos a oferecer aos homens a impunidade de agredir sexualmente as mulheres, oferecendo-lhes uma defesa do tipo 'eu não sou culpado, a culpa é dos hormônios'.

Invocar a biologia dos homens para explicar seus comportamentos muitas vezes acaba por absolvê-los de suas ações. Quando utilizamos termos como T ou cromossomos Y, isso ajuda a disseminar a ideia de que os homens são controlados por seus corpos. Pensar que hormônios e genes podem explicar por que os meninos agem como meninos liberta os homens de todos os tipos de pecados. Se você acredita que a testosterona diz algo significativo sobre como os homens agem e pensam, você está enganando a si mesmo. Os homens se comportam da maneira que fazem porque a cultura permite, não porque a biologia exige.


Ninguém poderia argumentar seriamente que a biologia é a única responsável por determinar o que significa ser homem. Mas palavras como testosterona e cromossomos Y se encaixam em nossas descrições das atividades dos homens, como se elas explicassem mais do que realmente explicam. A testosterona não governa a agressividade e a sexualidade dos homens. E é uma pena que não ouvimos muito falar sobre pesquisas que mostram que níveis mais altos de T nos homens se correlacionam tanto com a generosidade quanto com a agressividade. Mas a generosidade é uma virtude  masculina menos estereotipada, e isso estragaria toda a narrativa sobre a agressividade inerente dos homens, especialmente sobre a viril agressividade dos homens. E isso tem um profundo impacto sobre o que homens e mulheres pensam sobre as inclinações naturais dos homens.

Nós precisamos continuar falando sobre masculinidade tóxica e patriarcado porque são fenômenos reais e perniciosos. E também precisamos de novas maneiras de falar sobre homens, masculinidade e virilidade que nos permitam escapar da armadilha de pensar que a biologia dos homens é o seu destino. De fato, quando eliminamos os efeitos placebo e todo o blábláblá biológico [biobabble], o T não é uma molécula masculina mágica, e sim - como argumentam as pesquisadoras Rebecca Jordan-Young e Katrina Karkazis no livro Testosterone (2019) - uma molécula social.

Independentemente de como você a compreende, a testosterona é freqüentemente usada como desculpa para perimitir que os homens se safem e para justificar o privilégio masculino.
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

ferreirastephan66@gmail.com disse...

Muito bom! Tinha uma visão equivocada sobre homens supermachos criminosos que tinham cromossomos Y a mais e produziam mais testosterona. Li um livro sobre genética que mostrou o contrário.