terça-feira, 3 de outubro de 2017

Quando você divide o cérebro, você divide a pessoa?

No último dia 26 de Setembro o site Aeon publicou um interessante artigo escrito pelo cientista cognitivo Yaïr Pinto, da Universidade de Amsterdã. Segue a tradução que fiz desse texto, cuja versão original pode ser lida aqui.

O cérebro é provavelmente a máquina mais complexa do universo. Ele consiste em dois hemisférios cerebrais, cada um com muitos módulos diferentes. Felizmente, todas essas partes separadas não são agentes autônomos. Elas são altamente interligadas, todas trabalhando em harmonia para criar um ser único: você.
 
Mas o que aconteceria se destruíssemos essa harmonia? E se alguns módulos começassem a operar independentemente do resto? Curiosamente, isso não é apenas uma experiência de pensamento; para algumas pessoas, é a realidade.

Nos chamados "pacientes com o cérebro dividido" (split-brain patients), o corpo caloso - a via de comunicação entre os hemisférios cerebrais esquerdo e direito - é cirurgicamente cortado de forma a impedir crises epiléticas intratáveis de outra maneira.

A operação é eficaz para cessar a epilepsia; se uma tempestade neural começa em um hemisfério, o isolamento garante que ela não se espalhe para a outra metade. Mas sem o corpo caloso os hemisférios praticamente não têm meios para trocar informações. 

O que acontece, então, com a pessoa? Se as partes não estão mais sincronizadas, o cérebro ainda produz uma única pessoa? Os neurocientistas Roger Sperry e Michael Gazzaniga decidiram investigar esse problema nos anos 60 e 70, e encontraram dados surpreendentes que sugerem que, quando você divide o cérebro, você também divide a pessoa. Sperry ganhou o prêmio Nobel de Medicina por seu trabalho sobre o cérebro dividido em 1981.
 
Mas como os pesquisadores comprovaram que dividir o cérebro produz duas pessoas, uma por hemisfério? Através de uma metodologia inteligente que controlava o fluxo de informações visuais para o cérebro.

Eles já sabiam que ambos os olhos enviavam informações para ambos os hemisférios do cérebro - e que o relacionamento entre estes órgãos era complexo. Se você fixou seu olhar em um ponto, então tudo à esquerda desse ponto (o campo visual esquerdo) foi processado pelo hemisfério direito e tudo à direita do seu ponto de fixação (o campo visual direito) foi processado pelo hemisfério esquerdo. Além disso, o hemisfério esquerdo controlou o lado direito do corpo e a produção da linguagem (language output), enquanto que o hemisfério direito controlou o lado esquerdo do corpo.

Quando Sperry e Gazzaniga apresentaram estímulos para o campo visual direito (processados ​​pelo "falante" hemisfério esquerdo), o paciente respondeu normalmente. No entanto, quando os estímulos foram apresentados ao campo visual esquerdo (processado pelo "mudo" hemisfério direito), o paciente disse que não via nada. No entanto, sua mão esquerda desenharia a imagem mostrada. Quando perguntado por que sua mão esquerda fez isso, o paciente pareceu confuso e respondeu que não tinha idéia. 

O que estava acontecendo ali? O hemisfério esquerdo não conseguiu ver o campo visual esquerdo, então, quando um estímulo apareceu lá, ele respondeu, com razão, que não viu nada. No entanto, o hemisfério direito viu o estímulo e indicou isso da única maneira que podia, conduzindo a mão esquerda. A conclusão, formulada por Sperry e Gazzaniga, era clara: um único paciente com cérebro dividido deveria ser entendido como dois pacientes com meio cérebro - tipo gêmeos siameses. Sperry argumentou que esta descoberta superou a mera curiosidade - tendo literalmente provado o conceito de materialismo na área estudos da consciência. Se você divide a pessoa quando você divide o seu cérebro, isso deixa pouco espaço para uma alma imaterial.

Caso encerrado? Não para mim. Nós temos que admitir que os pacientes com cérebro dividido se sentem e se comportam normalmente. Se um paciente com cérebro dividido entra na sala, você não notará nada incomum. E eles mesmos afirmam estar completamente inalterados, além do fato de terem se livrado de terríveis crises epilépticas. Se a pessoa estivesse realmente dividida, isso não seria verdade.

Com o objetivo de ir fundo nesta questão, minha equipe na Universidade de Amsterdã retornou a este problema fundamental, testando dois pacientes com cérebro dividido e avaliando se eles poderiam responder com precisão a objetos no campo visual esquerdo (percebido pelo cérebro direito), enquanto respondiam verbalmente ou com a mão direita (controlada pelo cérebro esquerdo). Surpreendentemente, nestes dois pacientes, encontramos algo completamente diferente do que Sperry e Gazzaniga encontraram antes de nós. Ambos os pacientes apresentaram consciência total da presença e localização dos estímulos em todo o campo visual - direito e esquerdo. Quando os estímulos apareceram no campo visual esquerdo, eles praticamente nunca disseram (ou indicaram com a mão direita) que eles não viram nada. Em vez disso, eles indicaram com precisão que algo havia aparecido e onde. 

Mas os pacientes com cérebro dividido que estudamos não eram completamente normais. Em primeiro lugar, os estímulos não podiam ser comparados ao longo da linha média do campo visual. Além disso, quando um estímulo apareceu no campo visual esquerdo, o paciente se saiu melhor ao indicar suas propriedades visuais (mesmo quando ele respondeu com a mão direita ou verbalmente); e quando um estímulo apareceu no campo visual direito, ele se saiu melhor indentificando verbalmente (mesmo quando ele respondeu com a mão esquerda).

Com base nestes achados, propusemos um novo modelo para a síndrome do cérebro dividido. Quando você divide o cérebro, você ainda continua sendo uma única pessoa. No entanto, essa pessoa experimenta dois fluxos de informações visuais, um para cada campo visual. E essa pessoa não consegue integrar os dois fluxos. É como se ela assistisse a um filme fora de sincronia, mas não com o áudio e o vídeo dessincronizados. Em vez disso, os dois fluxos não sincronizados são ambos videos. E há mais. Enquanto o modelo anterior forneceu evidências fortes para o materialismo (divide-se o cérebro, divide-se a pessoa), o entendimento atual parece aprofundar o mistério da consciência. Você divide o cérebro em duas metades, e ainda assim tem apenas uma pessoa. Como um cérebro, composto por muitos módulos, cria apenas uma pessoa? E como os pacientes com o cérebro dividido funcionam como uma só pessoa quando essas duas partes nem sequer se comunicam uma com a outra?
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