O impactante documentário One of us (Um de nós), recém-lançado pelo Netflix, acompanha três jovens que decidiram sair da comunidade ultraortodoxa dos judeus hassídicos de Nova Iorque. Estes jovens (Etty, Ari e Luzer) tomaram a difícil decisão de abandonar a família, os amigos e toda a comunidade - sendo, por eles, abandonados - em função de não coadunarem mais com as crenças, práticas e, também, violências que acontecem de forma velada no interior desta comunidade extremamente reclusa - que, em geral, não permite aos mais jovens frequentar escolas não-hassídicas, estudar matérias seculares como inglês, matemática e geografia, conviver com pessoas externas, acessar a internet, assistir filmes, ler livros não permitidos, etc. Seus membros vivem, ou melhor, pretendem viver, dentro de uma bolha, fortemente separados do resto do mundo. O grande problema é que, exatamente como uma bolha de sabão, a película que separa o mundo interior do mundo exterior, é extremamente frágil, podendo se romper a qualquer momento. No caso desta comunidade específica, eles vivem no meio de um grande bairro, situado em uma grande cidade, localizada, por sua vez, em um dos maiores e mais seculares países do mundo. Como eles podem se manter isolados de tudo isso? Como podem manter a "pureza" de suas crenças e práticas em um mundo secular como o que vivemos? Bom, eles conseguem isso através de uma série de regras extremamente rígidas que regulam e mesmo impedem o contato e a relação de seus membros com o "mundo exterior". E agindo desta forma eles tem obtido sucesso neste propósito. Afinal de contas, os judeus hassídicos existem há centenas de anos e as atuais taxas de "abandono" não passam de 2%, segundo o documentário. Isto significa que a comunidade tem conseguido se manter coesa e isolada do resto do mundo - não um isolamento total, claro, afinal de contas, os sistemas político e judiciário são os mesmos para todos os cidadãos norte-americanos e grande parte dos produtos que são consumidos por eles são produzidos fora da comunidade. No entanto, apesar deste relativo sucesso, um "vírus maligno" ronda a comunidade hassídica, podendo fazer com que a bolha se rompa de vez e a comunidade se dissolva. Veja só o que disse um dos líderes hassídicos durante uma enorme cerimônia realizada em um estádio:
As pessoas estão entrando em um mundo diferente. Como a mosca que entra na teia de aranha, alguns já foram atraídos. Viemos prestar atenção ao chamado dos líderes espirituais da nossa nação que reconheceram e identificaram os perigos da internet. Algo que ameaça nossa continuidade como pessoas de Deus. Vi com meus próprios olhos darem a crianças de 11 anos Blackberrys, iPhones e iPods. As pessoas estão enlouquecendo?
Você deve estar se perguntando: por que todo este medo da internet, meu deus? E a resposta não é difícil de entender: a internet possibilita aos membros da comunidade hassídica, em especial aos mais jovens (isto é, aqueles cujas crenças ainda não estão totalmente cristalizadas), terem acesso a outras realidades e a descobrirem que a religião que praticam é apenas uma dentre milhares de outras existentes no mundo - e isto significa, em última instância, que a "verdade" que acreditam é somente uma dentre muitas outras possíveis. Enfim, o vírus que a internet traz é o vírus do relativismo, que traz consigo os vírus da dúvida e do questionamento - e não existe nada mais perigoso para grupos fundamentalistas do que o relativismo, a dúvida e o questionamento. Isto porque, como bem apontam os sociólogos Peter Berger e Anton Zijderveld no magnífico livro Em nome da dúvida (que já mencionei em outro post), a relativização é o "processo no qual o status absoluto de alguma coisa é enfraquecido ou, em alguns casos, destruído". No caso da comunidade hassídica o que é enfraquecido através do acesso à internet - e, mais amplamente, através do contato com o "mundo exterior" - é o status absoluto ou indiscutível de suas próprias crenças e práticas. Ao invés de serem entendidas simplesmente como "verdades absolutas" ditadas por Deus, tais crenças e práticas passam a ser compreendidas como "verdades relativas" criadas pelos homens. E chegar a esta percepção pode ser decisivo, em alguns casos, para que a pessoa decida abandonar a comunidade. Quanto tudo aquilo que fazia sentido deixa de fazer, algumas vezes não resta outra opção senão se retirar. No entanto, a liberdade tem um preço. E ele não é barato.
Mas antes de entrar nesta discussão, gostaria de deixar claro porque me refiro à comunidade hassídica como fundamentalista - afinal de contas, quando muitas pessoas pensam em fundamentalismo imediatamente vem à mente a imagem de um terrorista muçulmano. A questão é que esta imagem não corresponde totalmente à realidade. Isto porque: 1) nem todos os muçulmanos são fundamentalistas, 2) nem todos os fundamentalistas são muçulmanos e 3) nem todos os fundamentalistas são terroristas. Mas o que caracteriza, então, uma pessoa ou grupo fundamentalista? Como já apontei anteriormente, o que define o fundamentalismo é a intolerância à dúvida e ao questionamento. O fundamentalista não suporta o relativismo e a pluralidade do nosso mundo e acredita que a sua verdade é a verdade absoluta. Todas as outras crenças e práticas, são vistas como mentiras ou equívocos. Só ele tem a verdade. Mas uma questão interessante sobre os fundamentalistas é que nem todos pretendem impor suas "verdades" sobre os demais. Na verdade, uma parcela significativa deles não age desta forma. Isto porque, como apontam Berger e Zijderveld existem duas versões do "projeto fundamentalista". Na primeira delas, os fundamentalistas "tentam dominar toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela". Este é o caso dos Estados Totalitários, nos quais todas as pessoas que vivem sob seu regime são forçadas a seguir determinadas práticas e crenças - pense, por exemplo, na sociedade retratada pela fantástica série The Handmaid's Tale. Já o terrorismo - ou, pelo menos, algumas de suas manifestações - também poderia ser enquadrado dentro desta forma de fundamentalismo, no entanto, ele se constitui mais como uma estratégia política de desestabilizar o inimigo através da disseminação do medo, do que de uma tática voltada para a imposição uma "verdade". Por outro lado, de acordo com os autores, a segunda versão do fundamentalismo "abandona qualquer tentativa de impor uma crença a todos - a sociedade, em geral, pode ir para o inferno, por assim dizer - mas tenta instituir o não questionamento da crença fundamentalista em uma comunidade muito menor". Eles denominam esta forma de fundamentalismo de "subcultural ou sectário" apontando ainda que a sua principal característica é um "micrototalitarismo" que pressupõe a criação de "rigorosas defesas contra a contaminação cognitiva que contatos externos ameaçam introduzir no sistema". Como você já deve ter notado, este é o caso dos judeus hassídicos e também dos Amish.
Pois bem, este micrototalitarismo de fato funciona para manter a coesão da comunidade hassídica. O grande problema é que, devido às múltiplas formas de contaminação cognitiva (como a internet, a literatura e o cinema), um número pequeno mas crescente de membros tem abandonado a comunidade. E para auxiliar estas pessoas foi criada até uma entidade, denominada Footsteps, que tem como objetivo acolher, apoiar e orientar os "dissidentes". Afinal de contas, abandonar sua família, seus amigos e toda a sua comunidade - e, mais do que isso: todo o universo que te constituiu e que você compreende - não é nada fácil. Como afirma uma das responsáveis pela Footsteps: "Ninguém sai sem estar disposto a pagar o preço. E o preço da liberdade é muito alto. A comunidade é sua família. Se você está doente, alguém aparecerá e cuidará dos seus filhos. Trarão comida para você. Será levado ao hospital se não puder ir sozinho. Você nunca está sozinho, tem muito ajuda. Você perde muito quando sai". Pois um dramático exemplo disto pode ser encontrado na trajetória de Etty. Aos 27 anos ela decidiu sair da comunidade, motivada pelos frequentes abusos e violências de seu marido, e levou consigo todos os seus sete filhos. No entanto, seu ex-marido entrou na justiça e conseguiu a guarda legal de todos eles em função de um absurdo dispositivo judicial denominado status quo - que favorece a guarda pelo progenitor que tem condições de manter as crenças e práticas religiosas anteriores da criança. Ou seja, além de perder seus amigos, parentes e sua fonte de renda (isto é, seu marido), Etty "perdeu" ainda todos os seus filhos. Com os outros sujeitos retratados pelo filme não foi diferente: eles também perderam tudo e tiveram de começar a vida do zero.
Mas não só: eles tiveram, e ainda tem, de aprender como funciona o "mundo exterior" - tal qual Kaspar Hauser, Kimmy Schmidt, os filhos do Capitão Fantástico ou os irmãos do filme Wolfpack. Um interessante depoimento do jovem Ari deixa bem claro como se dá esse processo: "Eu não sei nada. Eu não sei nem o básico da matemática. Nunca frequentei a faculdade, o ensino médio, nada. Frequentei escolas judaicas desde que nasci, desde que entrei na escola. Tenho que aprender muitas coisas novas, começando por inglês, o que acho que aprendi. Eu também tenho que aprender como as pessoas vivem de fato no mundo e como as coisas funcionam". Esta frase dele, curiosamente, é muito semelhante a uma fala de um dos personagens do filme Capitão Fantástico - que conta a história um pai que decidiu educar seus seis filhos de uma forma muito peculiar, isolados do resto do mundo. Pois bem, em determinado momento do filme, o filho mais velho desabafa com o pai, após desastrosas tentativas de interação com pessoas de fora da sua família: "Eu não sei nada! Eu não sei nada! Eu sou uma aberração, por sua causa! Você nos transformou em aberrações! A menos que tenha saído de um maldito livro, eu não sei nada sobre nada!". As pessoas retratadas pelo documentário One of us poderiam facilmente dizer o mesmo para seus pais. Aliás, Ari afirma o seguinte sobre o complexo processo de saída de sua comunidade e recomeço no "mundo exterior": "estruturaram a sociedade [hassídica] para você não sobreviver ao mundo lá fora. Estruturaram o mundo para que, se você sair, o único jeito de sobreviver é sendo um criminoso. Todos que saem acabam voltando, acabam presos ou em uma clínica de reabilitação. Mas nunca sobrevivem lá fora". Este sujeito, especificamente, foi internado em uma clínica de reabilitação devido à dependência de cocaína e, depois de um tempo, acabou por retornar à comunidade. Mas mesmo de volta, não conseguiu deixar de se sentir 'um peixe fora d'água'. Como afirmou ao final do documentário, "eu não me sinto preparado para viver em uma sociedade secular. Sinto uma certa angústia no mundo. Não estou culpando a comunidade ou algum rabino. Eu não estou culpando ninguém. Mas eu ainda não encontrei o meu lugar".
O curioso é que este mesmo sujeito, algum tempo antes, declarou o seguinte sobre estar do lado de fora: "É uma liberdade incrível. Tudo o que eu não deveria fazer, estou livre para fazer. Após saborear esta vida... apague a vida antiga". A grande questão é que a liberdade - no sentido "negativo" de não ser coagido a agir e viver de determinada maneira - é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que ela possibilita ao sujeito exercitar sua vontade e sua capacidade de escolha, por vezes o excesso de escolhas que ele é obrigado a fazer sobrecarrega sua mente e gera esgotamento. Este é o paradoxo da escolha, que já discuti em outro post: tendemos a acreditar que ter mais liberdade e mais opções é sempre melhor, no entanto, quanto mais opções temos, mais perdidos, ansiosos e angustiados nos sentimos. Em uma comunidade fechada e disciplinada, como a que vivem os judeus hassídicos, certamente o nível de liberdade individual é bastante limitado, pois a vida é em grande parte regida pelas normas e regras da comunidade. Por outro lado, esta restrição da liberdade pode funcionar como uma liberação da angústia de ter que tomar decisões a todo momento. Não é por outro motivo que Berger e Zijderveld afirmam que "o totalitarismo, com efeito, é uma espécie de liberação. O indivíduo, confuso e aterrorizado por 'todas as decisões que precisa tomar' pode receber a reconfortante dádiva de absolutos renovados". Com isto eles querem dizer que, contrariamente ao que muitos pensam, o totalitarismo pode gerar uma curiosa forma de liberdade: não aquela liberdade de se fazer o que se quer - pois num regime totalitário isto não é possível - mas aquela liberdade de não ser obrigado a fazer continuamente escolhas e arcar com suas consequências e responsabilidades.
Mas isto não significa, cabe apontar, que o totalitarismo seja bom ou que devemos lutar pela volta do regime militar, como fazem algumas pessoas. Pelo contrário, defender coisas como essa é de uma absurdo sem tamanho. Afinal de contas, se existem alguns ganhos devido à restrição de liberdade, existem também inúmeras e gigantescas perdas, sendo a principal delas a impossibilidade de se fazer as pequenas e grandes escolhas da vida. Se fosse dada à você a possibilidade de escolher entre uma vida "enclausurada" mas "satisfatória" e uma vida "livre" mas "angustiante", o que você escolheria? Eu aposto que muitos - eu não saberia dizer se a maioria - escolheriam a liberdade, com todos os seus problemas e dilemas. Mas o fato é que esta não é propriamente uma escolha. Atualmente, a maior parte das pessoas no mundo ocidental não vive sob regimes totalitários e nem confinados em comunidades sectárias e isto significa, como bem afirmou o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre no clássico O ser e o nada, que estamos todos "condenados à liberdade". Este é o caso também das pessoas retratadas pelo documentário. À partir do momento em que decidiram sair da comunidade elas tiveram e continuarão tendo que lidar com os mesmos problemas e dilemas que todos nós: o que faremos da nossa vida? O que será do futuro? Qual o sentido da existência? Não havendo mais uma comunidade para lhe acolher e lhe dar todas as respostas, a única saída agora é procurar estas respostas por si mesmo - e lidar com as angústias e ansiedades deste processo. Já que o sentido não está mais dado pela comunidade, não resta outra alternativa a não ser construir o próprio sentido. Como bem afirma o dissidente Luzer, "todos nós estamos procurando um propósito, um sentido. E eles [os membros da comunidade] tem isso. Eles tem um propósito e um sentido. Eu sempre tentarei encontrar isso".
Mas antes de entrar nesta discussão, gostaria de deixar claro porque me refiro à comunidade hassídica como fundamentalista - afinal de contas, quando muitas pessoas pensam em fundamentalismo imediatamente vem à mente a imagem de um terrorista muçulmano. A questão é que esta imagem não corresponde totalmente à realidade. Isto porque: 1) nem todos os muçulmanos são fundamentalistas, 2) nem todos os fundamentalistas são muçulmanos e 3) nem todos os fundamentalistas são terroristas. Mas o que caracteriza, então, uma pessoa ou grupo fundamentalista? Como já apontei anteriormente, o que define o fundamentalismo é a intolerância à dúvida e ao questionamento. O fundamentalista não suporta o relativismo e a pluralidade do nosso mundo e acredita que a sua verdade é a verdade absoluta. Todas as outras crenças e práticas, são vistas como mentiras ou equívocos. Só ele tem a verdade. Mas uma questão interessante sobre os fundamentalistas é que nem todos pretendem impor suas "verdades" sobre os demais. Na verdade, uma parcela significativa deles não age desta forma. Isto porque, como apontam Berger e Zijderveld existem duas versões do "projeto fundamentalista". Na primeira delas, os fundamentalistas "tentam dominar toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela". Este é o caso dos Estados Totalitários, nos quais todas as pessoas que vivem sob seu regime são forçadas a seguir determinadas práticas e crenças - pense, por exemplo, na sociedade retratada pela fantástica série The Handmaid's Tale. Já o terrorismo - ou, pelo menos, algumas de suas manifestações - também poderia ser enquadrado dentro desta forma de fundamentalismo, no entanto, ele se constitui mais como uma estratégia política de desestabilizar o inimigo através da disseminação do medo, do que de uma tática voltada para a imposição uma "verdade". Por outro lado, de acordo com os autores, a segunda versão do fundamentalismo "abandona qualquer tentativa de impor uma crença a todos - a sociedade, em geral, pode ir para o inferno, por assim dizer - mas tenta instituir o não questionamento da crença fundamentalista em uma comunidade muito menor". Eles denominam esta forma de fundamentalismo de "subcultural ou sectário" apontando ainda que a sua principal característica é um "micrototalitarismo" que pressupõe a criação de "rigorosas defesas contra a contaminação cognitiva que contatos externos ameaçam introduzir no sistema". Como você já deve ter notado, este é o caso dos judeus hassídicos e também dos Amish.
Pois bem, este micrototalitarismo de fato funciona para manter a coesão da comunidade hassídica. O grande problema é que, devido às múltiplas formas de contaminação cognitiva (como a internet, a literatura e o cinema), um número pequeno mas crescente de membros tem abandonado a comunidade. E para auxiliar estas pessoas foi criada até uma entidade, denominada Footsteps, que tem como objetivo acolher, apoiar e orientar os "dissidentes". Afinal de contas, abandonar sua família, seus amigos e toda a sua comunidade - e, mais do que isso: todo o universo que te constituiu e que você compreende - não é nada fácil. Como afirma uma das responsáveis pela Footsteps: "Ninguém sai sem estar disposto a pagar o preço. E o preço da liberdade é muito alto. A comunidade é sua família. Se você está doente, alguém aparecerá e cuidará dos seus filhos. Trarão comida para você. Será levado ao hospital se não puder ir sozinho. Você nunca está sozinho, tem muito ajuda. Você perde muito quando sai". Pois um dramático exemplo disto pode ser encontrado na trajetória de Etty. Aos 27 anos ela decidiu sair da comunidade, motivada pelos frequentes abusos e violências de seu marido, e levou consigo todos os seus sete filhos. No entanto, seu ex-marido entrou na justiça e conseguiu a guarda legal de todos eles em função de um absurdo dispositivo judicial denominado status quo - que favorece a guarda pelo progenitor que tem condições de manter as crenças e práticas religiosas anteriores da criança. Ou seja, além de perder seus amigos, parentes e sua fonte de renda (isto é, seu marido), Etty "perdeu" ainda todos os seus filhos. Com os outros sujeitos retratados pelo filme não foi diferente: eles também perderam tudo e tiveram de começar a vida do zero.
O curioso é que este mesmo sujeito, algum tempo antes, declarou o seguinte sobre estar do lado de fora: "É uma liberdade incrível. Tudo o que eu não deveria fazer, estou livre para fazer. Após saborear esta vida... apague a vida antiga". A grande questão é que a liberdade - no sentido "negativo" de não ser coagido a agir e viver de determinada maneira - é uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que ela possibilita ao sujeito exercitar sua vontade e sua capacidade de escolha, por vezes o excesso de escolhas que ele é obrigado a fazer sobrecarrega sua mente e gera esgotamento. Este é o paradoxo da escolha, que já discuti em outro post: tendemos a acreditar que ter mais liberdade e mais opções é sempre melhor, no entanto, quanto mais opções temos, mais perdidos, ansiosos e angustiados nos sentimos. Em uma comunidade fechada e disciplinada, como a que vivem os judeus hassídicos, certamente o nível de liberdade individual é bastante limitado, pois a vida é em grande parte regida pelas normas e regras da comunidade. Por outro lado, esta restrição da liberdade pode funcionar como uma liberação da angústia de ter que tomar decisões a todo momento. Não é por outro motivo que Berger e Zijderveld afirmam que "o totalitarismo, com efeito, é uma espécie de liberação. O indivíduo, confuso e aterrorizado por 'todas as decisões que precisa tomar' pode receber a reconfortante dádiva de absolutos renovados". Com isto eles querem dizer que, contrariamente ao que muitos pensam, o totalitarismo pode gerar uma curiosa forma de liberdade: não aquela liberdade de se fazer o que se quer - pois num regime totalitário isto não é possível - mas aquela liberdade de não ser obrigado a fazer continuamente escolhas e arcar com suas consequências e responsabilidades.
Mas isto não significa, cabe apontar, que o totalitarismo seja bom ou que devemos lutar pela volta do regime militar, como fazem algumas pessoas. Pelo contrário, defender coisas como essa é de uma absurdo sem tamanho. Afinal de contas, se existem alguns ganhos devido à restrição de liberdade, existem também inúmeras e gigantescas perdas, sendo a principal delas a impossibilidade de se fazer as pequenas e grandes escolhas da vida. Se fosse dada à você a possibilidade de escolher entre uma vida "enclausurada" mas "satisfatória" e uma vida "livre" mas "angustiante", o que você escolheria? Eu aposto que muitos - eu não saberia dizer se a maioria - escolheriam a liberdade, com todos os seus problemas e dilemas. Mas o fato é que esta não é propriamente uma escolha. Atualmente, a maior parte das pessoas no mundo ocidental não vive sob regimes totalitários e nem confinados em comunidades sectárias e isto significa, como bem afirmou o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre no clássico O ser e o nada, que estamos todos "condenados à liberdade". Este é o caso também das pessoas retratadas pelo documentário. À partir do momento em que decidiram sair da comunidade elas tiveram e continuarão tendo que lidar com os mesmos problemas e dilemas que todos nós: o que faremos da nossa vida? O que será do futuro? Qual o sentido da existência? Não havendo mais uma comunidade para lhe acolher e lhe dar todas as respostas, a única saída agora é procurar estas respostas por si mesmo - e lidar com as angústias e ansiedades deste processo. Já que o sentido não está mais dado pela comunidade, não resta outra alternativa a não ser construir o próprio sentido. Como bem afirma o dissidente Luzer, "todos nós estamos procurando um propósito, um sentido. E eles [os membros da comunidade] tem isso. Eles tem um propósito e um sentido. Eu sempre tentarei encontrar isso".