terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Homossexualidade: como curar o que não é doença? (Parte 2)



Na primeira parte deste texto tentei contra-argumentar a noção de que a homossexualidade é uma doença que pode ser curada. Para tanto, recorri à perspectiva do filósofo Georges Canguilhem sobre o normal e o patológico. Nesta segunda parte, pretendo refletir sobre a possibilidade de uma reorientação sexual. Digo reorientação para evitar as expressões “tratamento” ou “cura” que apontam para uma perspectiva patologizante. A pergunta que move esta segunda parte do texto é se é possível mudar a orientação sexual de uma pessoa, seja da homossexualidade para a heterossexualidade ou vice-versa.

Gostaria inicialmente de comentar um episódio que trouxe à tona, mais uma vez, a questão da “cura gay”. Em entrevista cedida à jornalista Marilia Gabriela, o pastor evangélico (e “psicólogo”) Silas Malafaia afirmou, dentre outras coisas que, o “homossexualismo”, como ele chama, é um comportamento passível de mudança por ser eminentemente comportamental. Para ele, a ciência já demonstrou que a genética não tem qualquer influência na orientação sexual de uma pessoa. Poucos dias após a entrevista ser vinculada, circulou pela internet um vídeo de um geneticista que critica Silas afirmando haver muitas evidências científicas de que a genética, ainda que não determine, influencia de forma significativa na constituição da orientação sexual. Segundo esta perspectiva, não sendo a homossexualidade uma escolha, não seria passível de “tratamento”.




Minha posição geral sobre esta briga pode ser resumida da seguinte forma: tirando poucas características e doenças realmente determinadas por genes, todos os outros comportamentos e traços humanos são constituídos num caldo híbrido de natureza e cultura. Definir a causa ou as causas da homossexualidade me parece uma tarefa um tanto infrutífera e, até certo ponto, desnecessária. O fato indiscutível é que existem pessoas que se identificam como gays e elas devem ser respeitadas não porque a homossexualidade é "genética" ou "comportamental", mas porque pessoas adultas devem ter liberdade para se relacionar com quem bem entenderem - desde que seja consensual, obviamente. A defesa deste princípio não deve estar atrelada a teorias científicas, mas a pressupostos humanistas. Ficar brigando sobre quem tem acesso à "verdadeira ciência" ou quem é mais cientista do que quem, me parece, neste caso, irrelevante. Além do mais, dizer que a homossexualidade tem base “genética” ou “comportamental” não resolve o problema fundamental da intolerância, pois ambas possibilidades abrem espaço para perspectivas de tratamento, sejam terapias genéticas ou comportamentais. 

Tudo isto nos traz de volta à pergunta-guia deste artigo: é possível fazer uma pessoa deixar de ser gay? Outra questão relacionada a esta é: sendo possível, COMO isto poderia ocorrer? Uma outra questão ainda é se é possível fazer o contrário: tornar gay uma pessoa hétero. Afinal, se a homossexualidade é uma escolha, a heterossexualidade também o é, e, como tal, poderia ser revertida. Os partidários da “cura gay” fogem desta questão igual “o diabo foge da cruz”, porque, para a responderem, teriam que admitir que tal "conversão inversa", independente de ser ou não possível, não é desejável. E por que? Porque consideram a heterossexualidade o normal, o natural e a homossexualidade um pecado, uma abominação. Desta forma, o caminho só poderia ser da homossexualidade para a heterossexualidade e nunca o inverso. Simples assim. Mas nos concentremos agora nas duas primeiras perguntas: é possível fazer uma pessoa deixar de ser gay? E como isto seria possível? 



Em primeiro lugar, é importante refletirmos sobre a função de uma terapia, quer seja de reorientação sexual ou não. Na minha visão, terapeutas não mudam pessoas, muito menos as curam (como já havia apontado na primeira parte). Terapeutas auxiliam as pessoas a se transformarem. Portanto, diante de um sujeito que deseja reorientar a própria sexualidade, o terapeuta pode, no máximo, auxiliar a pessoa a transformar-se naquilo que ela deseja. O terapeuta sozinho não tem a capacidade de "mudar" ou "curar" ninguém. Neste sentido, gosto da ideia de que o terapeuta é uma espécie de co-piloto, que ouve, acolhe, orienta e sugere, mas quem realmente é o piloto, ou seja, quem define caminhos e possibilidades, é o sujeito, paciente ou cliente. Terapeuta e paciente são, como aponta Irvin Yalom, "companheiros de viagem".

De uma forma geral, as pessoas chegam até um terapeuta por basicamente duas vias: ou o procuram por conta própria, porque sentem que tem alguma coisa errada com a própria vida; ou são encaminhadas, e mesmo forçadas, por outras pessoas a procurarem ajuda, seja porque estão sofrendo muito ou porque estão incomodando os outros. Neste caso, muitas vezes, a pessoa não sente que tem realmente um problema, acreditando que quem deve se tratar são aqueles que a encaminharam. Algumas vezes a pessoa pode estar certa e não haver de fato qualquer problema com ela; em outros, pode-se tratar de um processo de negação, no qual a pessoa não aceita que tem um problema que de fato ela tem. Isto é muito comum de ocorrer com dependentes químicos, que costumam relutar em aceitar tratamento 



Neste último caso poderíamos dizer que a pessoa se encontra, segundo o modelo de mudança proposto por Prochaska e DiClemente, no estágio da pré-contemplação, ou seja, não contempla que tem um problema, acha que está tudo bem, quando de fato, tudo está mal ou nem tão bem assim. A pessoa pode permanecer neste estágio ou passar para o seguinte, que é o estágio da Contemplação, no qual a pessoa já contempla que tem um problema, embora não esteja motivada a superá-lo nem saiba como fazê-lo. Da mesma forma, a pessoa pode permanecer deste estágio ou avançar para o seguinte, que é o da Preparação. Nesta fase o sujeito já concebe que tem um problema, deseja superá-lo e começa a preparar-se para isso. Na fase seguinte, a da Ação, o sujeito já iniciou o seu processo de mudança e está motivado e engajado em fazer diferente. No entanto, não basta iniciar o processo de mudança, ele deve permanecer nele. Neste sentido, a fase da Manutenção é fundamental. Nela, o sujeito procura criar estratégias para manter-se motivado e engajado no processo de mudança. Se as estratégias utilizadas forem bem sucedidas, o sujeito pode permanecer indefinidamente neste estágio. Se não, poderá recair para algum estágio anterior, seja o da pré-contemplação ou o da contemplação. No entanto, esta recaída, bastante comum e até mesmo esperada em qualquer processo de mudança, pode ser apenas momentânea. Este modelo, embora bastante genérico, é bastante útil para compreendermos que o processo de mudança, qualquer que ele seja, depende substancialmente da motivação e do engajamento permanente dos sujeitos - o que talvez explique o fracasso retumbante da maioria dos tratamentos compulsórios que tem se disseminado por aí. E mais: tal modelo aponta para o fato de nenhuma mudança ser necessariamente permanente, sendo as recaídas partes integrantes do processo. 

Por tudo isto, forçar uma pessoa a se tratar não costuma ser uma tática muito eficaz. Logicamente, e vamos pensar no caso dos dependentes químicos, a mudança é possível mesmo que a pessoa inicialmente negue que tem um problema. No entanto, para que ela saia da fase de pré-contemplação e passe para a fase de contemplação é necessário um trabalho cuidadoso de escuta e diálogo que pode levar ou não a pessoa a se dar conta de que tem um problema. No caso deste trabalho fracassar, dificilmente a pessoa caminhará em direção à mudança, o que é um tanto óbvio: se a pessoa não acha que tem um problema por que, afinal de contas, ela se engajaria num processo de mudança? Se, por outro lado, a pessoa passar a contemplar o próprio problema, aí ela pode seguir para as etapas seguintes. Mas nem neste caso, há a certeza do “sucesso” – entendido aqui como a manutenção do processo de mudança (por quanto tempo? Difícil definir. Talvez a palavra sucesso seja inadequada, afinal, por exemplo, um sujeito que conseguiu manter-se abstêmio por 5 anos foi, de certa forma, bem-sucedido em sua empreitada, mesmo que esta não tenha sido “para toda a vida”). Tudo isto aponta para a importância da motivação, ou seja, do desejo de “querer mudar” para que qualquer transformação se efetive. 


No entanto, a motivação, ainda que necessária, não é suficiente. Muitos limites estão em jogo. Nem toda mudança é possível. Se você é negro e deseja se tornar branco, a menos que você seja o Michael Jackson, isto não será possível – ou melhor, ainda não é possível, felizmente. Existem até formas de clarear a pele, mas a menos que você tenha alguma doença, você permanecerá negro, pois isto é, de certa forma, constitutivo. Agora vamos supor que um dia haja uma forma de “reorientar sua cor de pele”. Isto seria desejável? De forma alguma, afinal porque as pessoas buscariam tal forma de “tratamento”? Certamente porque se sentiriam incomodadas com a própria cor de pele. E porque se sentiriam assim? Não tenho dúvidas de que isso ocorreria por viverem numa sociedade em que a pele branca é valorizada e a negra desvalorizada e estigmatizada. Senão, por que elas desejariam ser diferentes do que são? Simplesmente por motivos estéticos do tipo “eu acho branco mais bonito que preto”? Mas será que tal pessoa teria tais preferências estéticas se vivesse numa sociedade em que o negro fosse valorizado? Dificilmente. Afinal, nossas preferências estéticas dizem muito do mundo em que vivemos. Se achamos bonita a pele clara, o cabelo loiro e os olhos azuis é porque fomos “moldados” socialmente a pensar assim. Se fôssemos aborígenes australianos talvez considerássemos tal padrão muito pouco atrativo. 

Da mesma forma, poderíamos perguntar por que, afinal, uma pessoa desejaria, hoje em dia, reorientar a própria sexualidade? E mais: porque o desejo de reorientação se dá sempre da homossexualidade para a heterossexualidade e nunca – repito: NUNCA – no sentido contrário. Ou você sabe de algum caso de um sujeito heterossexual que deseja se tornar gay? Os motivos para isso são absoltamente claros para mim: o sujeito deseja deixar de ser gay e tornar-se hétero porque a heterossexualidade é valorizada socialmente – ao contrário da homossexualidade, que é carregada de estigmas e alvo de um enorme preconceito. Se não fosse assim, porque, afinal de contas, as pessoas procurariam uma “terapia de reorientação sexual”? Com tudo isso quero apontar que tanto o desejo de ser reorientado quanto a disponibilidade de “tratamentos” como esses, só são possíveis num mundo como o nosso. Numa sociedade mais igualitária e menos preconceituosa, ambos seriam simplesmente inconcebíveis.



Uma outra questão é se ser gay é “constitutivo” da mesma forma que ser negro. Biólogos tendem a responder que sim. Sociólogos que não. Psicólogos se dividem a respeito. Eu tendo a pensar que não. Como já expressei em outros momentos, acredito que a sexualidade humana é muito mais complexa do que fazem supor as categorias homossexual e heterossexual. A famosa Escala de Kinsey já apontava para isso no início do século passado. Para quem não conhece, tal escala apontava para uma classificação da sexualidade humana que ia além deste binarismo, apontando mesmo para uma variação de graus. Segundo Kinsey, a orientação sexual dos seres humanos vai desde os "exclusivamente heterossexuais" até os "exclusivamente homossexuais", passando pelos “heterossexuais ocasionalmente homossexuais” até os “homossexuais ocasionalmente heterossexuais” e os bissexuais, que seriam ao mesmo tempo heterossexuais e homossexuais. Na atualidade, o movimento dos assexuados e a emergência dos pansexuais, quebram ainda mais a visão da sexualidade humana enquanto restrita ao binarismo heterossexualidade-homossexualidade. Segundo esta visão, a perspectiva de uma “cura gay” não passaria de uma “passagem de ida”, talvez momentânea, talvez não, da homossexualidade para a heterosexualidade. A “passagem de volta” seria concebida não como uma recaída, mas como uma possibilidade dentre outras. Desta forma, sendo a sexualidade humana concebida de uma forma tão dinâmica e fluida, a noção de certo e errado e de norma e anormal se desfaz. Não há mais ponto de partida ou de chegada. Todos os caminhos são possíveis. 

Mas vamos supor que esta concepção esteja equivocada e a sexualidade humana se resuma basicamente à heterossexualidade e à homossexualidade – sendo a bissexualidade uma mentira, como alguns acreditam. E vamos supor também que um sujeito homossexual procure um psicólogo querendo tornar-se hétero. Como seria este tratamento? 



Bom, em primeiro lugar é preciso diferenciar dois “objetos” possíveis para um tratamento como esse: o comportamento e o desejo. Porque uma coisa é o sujeito deixar de comportar-se como gay (o que pode significar em alguns casos agir de forma menos afeminada ou masculinizada e de uma forma geral deixar de se relacionar com outras pessoas do mesmo sexo, seja afetivamente e/ou sexualmente) e outra coisa é não sentir desejo por pessoas do mesmo sexo. “Tratar” o comportamento pode até ser difícil, mas talvez seja possível. Afinal, nem sempre agimos conforme desejamos. Algumas vezes podemos ter pensamentos homicidas ou suicidas, mas acabamos não os transformando em realidade. O próprio Freud já nos alertava, no início do século passado, que viver em sociedade implica em uma certa renúncia de nossos impulsos sexuais e destrutivos. Mas como evitar o desejo? 

Talvez com um exemplo tosco, a questão fique mais clara. Vamos supor que você goste muito de chocolate. Agora vamos admitir que você passe, em certo momento, a não achar mais correto comer chocolate, seja porque dizem que faz mal ou porque você não quer engordar. Então você decide não comer mais chocolates – ou seja, você quer curar sua chocolatria. Com um certo autocontrole é possível que você consiga evitar comer chocolate. Talvez você evite ir à festas ou a lugares que você ia comprar chocolate para evitar cair em tentação. Talvez você busque prazeres alternativos. Com tudo isso, você segue firme em sua missão de não comer chocolate. Mas será possível nunca mais desejar colocar um chocolate na boca? 



Os partidários da “cura chocólatra” podem afirmar que sim. Com o tempo, poderiam dizer, o desejo vai diminuindo à medida que você se afasta dos estímulos que poderiam lhe fazer cair em tentação. O problema é que, para isso, você talvez tenha que se afastar de tudo e de todos. Sozinho no quarto talvez você consiga realmente atingir seu objetivo. Mas a questão é que você está no mundo, sujeito a ver pessoas comendo chocolate, assistir na TV propagandas de marcas de chocolate... e uma hora, mesmo sem estes estímulos externos, você pode simplesmente desejar colocar mais uma vez uma deliciosa barra de chocolate na boca. Sobre isto, os partidários da “cura chocólatra” tem um argumento “imbatível”: deixar de comer chocolate é como parar de fumar ou abandonar o sedentarismo. No início é difícil, mas com o tempo vai ficando mais fácil até se chegar ao ponto de o desejo inicial nem mesmo existir. Afinal, não existem ex-fumantes e ex-sedentários? Por que então não poderiam existir ex-chocólatras?... E ex-gays? 

Voltando para a questão da “cura gay”, algumas pessoas poderiam utilizar o mesmo argumento: deixar de ser gay é como deixar de fumar ou de comer chocolate. No início é difícil, sofrido, mas com o tempo a pessoa se acostuma com nova realidade até o ponto de o desejo cessar. Neste sentido, poderia se falar em ex-gay como alguém que passou tempo suficiente sem praticar o “comportamento homossexual” que fez cessar o “desejo homossexual”. No entanto, a metáfora do chocolate tem seus limites. Não dá para comparar o desejo por chocolate com o desejo afetivo-sexual, pois estão em planos "existenciais" distintos. A satisfação provocada por um chocolate está, sem dúvida, em um nível mais superficial do que a satisfação (ou insatisfação) provocada por um relacionamento. Neste sentido, negar o desejo por um chocolate talvez seja mais fácil do que negar um desejo afetivo-sexual. Obviamente, a frustração faz parte da vida. Nem sempre podemos ou devemos comer chocolate, mesmo desejando muito. Da mesma forma, nem sempre conseguimos nos relacionar afetiva e/ou sexualmente com aqueles que desejamos. No entanto, uma coisa é não nos relacionarmos com algumas pessoas que desejamos; outra, bem diferente, é não nos relacionarmos com nenhuma das pessoas que desejamos. Se, por exemplo, o sujeito sente desejo exclusivamente por homens e, por algum motivo, só pode se relacionar com mulheres, provavelmente emergirá uma enorme frustração e insatisfação com a vida. Não é por outro motivo que muitos sujeitos que passam por terapias de reorientação sexual tornam-se pessoas depressivas ou atormentadas e alguns chegam mesmo a se suicidar - caso do matemático Alain Turing. Afinal, estão negando uma parte muito forte e profunda de si mesmos. Alguns desses sujeitos, por outro lado, tornam-se famosos militantes anti-homossexualidade - até serem pegos com "a boca na botija", claro.



Com relação aos ex-gays, não tenho como dizer que todos estão mentindo e que tudo não passa de um grande engodo. Como já disse em outro momento, não há como afirmar categoricamente que tal "conversão" seja impossível. O fato de eu e muita gente não acreditar nisso não significa que estejamos certos. Podemos estar errados! Se uma pessoa falar para mim, olhando nos meus olhos, que deixou de ser gay, eu tenho todos os motivos do mundo para duvidar dela, mas não tenho como penetrar em seus desejos mais profundos para desmentí-la. Só o que tenho são suas palavras contra minhas crenças. O que fazer? Uma possibilidade é negar terminantemente: “Não existe ex-gay. Uma vez gay sempre gay. Não é uma escolha, é um destino”. Talvez seja verdade e a tal “reorientação sexual” não passe de um retorno para “dentro do armário”. Mas volto à questão: como lidar com o sujeito que afirma ser um ex-gay? Como provar que ele está mentindo? Vamos colocá-lo diante de um filme pornô gay e verificar se seu pênis fica entumecido ou então se as regiões de seu cérebro ligadas ao prazer se ativam? Podemos até fazer isso com alguns, mas faremos com todos aqueles que se dizem ex-gays? Iniciaremos uma “caça às bruxas” para provar que todos eles não passam de um bando de mentirosos? Por que faríamos isso? Afinal, eles estão fazendo algum mal a alguém? Na minha opinião, eles até podem estar mentindo ou negando um desejo constitutivo, mas eles tem o direito de se relacionarem (ou não se relacionarem) com quem quiser. O problema não está neles, mas sim no mundo ao redor deles, que faz com que esses sujeitos queiram deixar de ser gays para tornarem-se héteros. 

Desejo sinceramente que chegue um momento em que tais “terapias de reorientação sexual” não existam mais. Não por serem proibidas, mas por simplesmente não fazerem mais sentido. Neste contexto, os rótulos não terão o peso que tem hoje e as pessoas poderão ser o que bem entenderem e deixar de ser no momento seguinte, se assim o quiserem. Serão, pelo menos no que diz respeito ao afeto e à sexualidade, livres. 



quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Homossexualidade: como curar o que não é doença? (Parte 1)

Discussões sobre a possibilidade ou impossibilidade de se tratar e mesmo curar a homossexualidade frequentemente vêm à tona. Neste post gostaria de debater algumas questões centrais em toda essa problemática. Antes de tudo, devo dizer que sei que a proposta que circula pelo Congresso Nacional não é exatamente para “curar gays”, mas para permitir (ou deixar de proibir) que psicólogos tratem pessoas que desejam mudar sua orientação sexual. Para quem não está por dentro desta história, explico: o Projeto de Decreto Legislativo nº234/11 (que vem sendo chamado de Projeto de Cura Gay) de autoria do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), visa a revogação de dois dispositivos da Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Esta resolução proíbe o envolvimento do psicólogo com qualquer atividade que favoreça a patologização da homossexualidade - o que inclui tanto pronunciamentos públicos quanto propostas de tratamento. O CFP, obviamente, se manifestou contra tal projeto. No presente artigo, gostaria de tecer algumas considerações sobre toda esta celeuma.

Uma primeira questão é se é possível falar em cura. Na área da saúde existem tratamentos para muitas doenças, mas a cura (ou seja, a remissão completa e permanente dos sintomas) é possível somente em poucos casos. Na saúde mental, então, é praticamente impossível falar em cura. Pelo menos no sentido tradicional de retorno ao que era antes. Para o filósofo (e médico) Georges Canguilhem, em seu estudo clássico O normal e o patológico, um fato biológico fundamental é que a vida não conhece reversibilidade. Desta forma, não é possível falar em cura como um retorno à “inocência orgânica”, mas como um rearranjo, uma nova forma de vida. Curar, para Canguilhem, é criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas. Neste sentido, poderíamos até falar em cura na saúde mental, mas a palavra mais apropriada seria transformação. Psicólogos e psiquiatras não curam, mas auxiliam as pessoas a se transformarem, a construírem novas possibilidades de ser e estar no mundo.

Uma segunda questão é se ser gay é ou não uma doença. Afinal, quer se deseje a cura ou um tratamento para homossexualidade, a ideia implícita a este desejo é que ser gay é algo doentio, algo que não deveria ser. Na verdade, a perspectiva, declarada ou não, dos partidários da chamada “cura gay” é que ser gay é um pecado porque a bíblia assim o diz. Sobre esse argumento não tenho nada a dizer. É um argumento de fé: “a Bíblia disse, então é verdade”. Na verdade este nem é propriamente um argumento. É uma crença. A única coisa que poderia questionar é que a Bíblia também diz inúmeras outras coisas que se aplicavam à época em que foi escrita, mas não à atualidade. Exemplos de recomendações bíblicas absolutamente anacrônicas existem às dezenas, quiça às centenas. Não vou me deter nisso. Se você considera a Bíblia a fonte absoluta da verdade, do bom e do certo, não sou eu que vou lhe convencer do contrário. 



Mas voltando à questão de se a homossexualidade é ou não uma doença, precisamos refletir sobre o que, afinal de contas, é uma doença. Não paramos para pensar nisso normalmente, embora seja uma questão fundamental. Uma resposta possível é: doença é ausência de saúde. Só que esta resposta não resolve o problema, pois se doença é ausência de saúde, saúde é ausência de doença. Trata-se de um argumento circular que não responde a pergunta. A definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que saúde não é somente a ausência de doença, mas o “completo bem estar físico, psíquico e social”. Pegando esta definição e invertendo-a, poderíamos dizer que doença é o “completo mal estar físico, psiquico e social” ou então o “incompleto bem estar físico, psíquico e social”. A primeira anti-definição, o "completo mal estar", é muito extrema, deixando de fora grande parte do que compreendemos vulgarmente como doença. Já a segunda, o "incompleto bem estar" aponta para a possibilidade de todos sermos, em alguma medida, doentes, afinal, quem pode dizer que possui um completo bem estar biológico, psíquico e social? De qualquer forma, o que é doença ainda não está claro.

Uma definição clássica diz que saúde é o silêncio dos órgãos. Se não sentimos nosso corpo isto significa que estamos bem. Quando algum órgão, por outro lado, faz “barulho”, incomoda, dói, aí teríamos uma doença. Esta definição talvez valha para muitas situações da vida cotidiana: se sentimos uma dor de dente, procuramos um dentista; se a dor é no coração um cardiologista; se a dor é de coluna, um ortopedista ou um fisioterapeuta, ou seja, somente quando algo incomoda é que costumamos procurar ajuda – daí talvez a dificuldade de pensarmos preventivamente. Muito embora nem tudo que cause dor seja de fato uma doença (por exemplo, o parto ou uma dor decorrente de um tombo), muitas doenças causam dor. Mas e aquelas doenças silenciosas, como alguns tipos de câncer, que vão corroendo por dentro sem gerar, pelo menos nos momentos iniciais, nenhum sofrimento? O problema de definir doença em função do sofrimento é que nem toda doença gera sofrimento – ou pelo menos não todo o tempo - e nem todo sofrimento é patológico. Mas a relação doença-sofrimento ainda vale para a maioria dos casos – e também porque em algum momento o sofrimento costuma aparecer, mesmo nas doenças silenciosas – o que levou Canguilhem a dizer que “patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”. Mas será que isto vale tanto para as doenças físicas quanto para as chamadas doenças mentais? Podemos dizer que todo doente mental sofre? Um depressivo claramente sofre, mas o mesmo não pode ser dito de um sujeito na fase maníaca do transtorno bipolar. O problema deste sujeito é, de certa forma, justamente a falta de sofrimento. Como podemos então dizer que ele está doente? 


Pra finalizar esta discussão sobre o que é doença, sem pretender concluí-la, obviamente, não poderia deixar de mencionar uma concepção de doença que a identifica com a anormalidade e, o contrario, a saúde com a normalidade. Dizer o que é normal ou anormal é ainda mais complexo do que o que é saúde e doença, mas tradicionalmente normal esteve associado à média estatística: o que se aproxima da média é normal e o que se distancia é anormal. O problema é que é impossível definir o ponto exato onde termina a normalidade e começa anormalidade e vice-versa. Neste sentido, afirma Canguilhem, a estatística não fornece nenhum meio para decidir se o desvio é normal ou anormal, muito menos se determinado traço humano é normal ou patológico. Toda decisão é arbitrária. E, portanto, argumenta Canguilhem, social. Para este autor não existem fatos que sejam patológicos ou normais em si. O que é normal em uma situação pode ser patológico em outra. Para ele, é o próprio sujeito que define o que é ou não doença e se está ou não doente. A norma, para Canguilhem, é sempre individual. A doença não pode, portanto, ser definida por uma média estatística ou um por julgamento social, mas por um julgamento de valor realizado pelo próprio sujeito diante da polaridade dinâmica da vida. Para diferenciar saúde e doença, normalidade e patologia, Canguilhem propõe o conceito de normatividade vital, que é a capacidade do organismo de não somente responder aos desafios de seu meio, mas de criar novas normas ou possibilidades de vida. Tanto a saúde como a doença, para ele, são formas de se lidar com a instabilidade e imprevisibilidade da vida. No entanto, a doença, por limitar o organismo, é considerada uma forma negativa. Já a saúde é potência normativa e implica na capacidade de superar crises e instaurar novas normas e valores. 

Tendo tudo isso em vista e voltando à nossa questão central, poderíamos dizer que a homossexualidade é uma doença? Absolutamente não. Afinal, ser gay não gera em si qualquer sofrimento ou mal estar – além, obviamente, daqueles advindos de vivermos numa sociedade que valoriza a heterossexualidade e desvaloriza outras formas de vivenciar o sexo e a afetividade. Além disso, ser gay não implica em qualquer perda de potência normativa, ou seja, da capacidade de lidar com os desafios do mundo e transformá-lo. No entanto, os partidários da “cura gay” podem argumentar: “mas e os estudos que apontam que somente 10% das pessoas são gays? O normal é ser hétero!”. Então, recorrendo novamente à Canguilhem, poderíamos quebrar tal argumento pensando que nem tudo o que é “anormal” estatisticamente é patológico. Um exemplo disto são as anomalias, que representam tanto algo insólito, inabitual, quanto algo anormal ou estatisticamente desviante. Para o filósofo, as anomalias são conseqüência da variabilidade biológica individual e não são necessariamente patológicas. O que faz de uma anomalia algo normal ou patológico é o favorecimento ou prejuízo da vida. Se favorece ou, pelo menos, não atrapalha, é saudável; se prejudica é patológica. Certas anomalias podem, apesar de estranhas ou monstruosas, não causar nenhum mal ou sofrimento significativo a seu portador, enquanto outras, aparentemente insignificantes, podem trazer grandes prejuízos por atingirem importantes órgãos ou funções anátomo-fisiológicas. O que importa, no final das contas, é a normatividade vital, ou seja, a capacidade de instituir normas de vida. Uma anomalia é saudável se não for incompatível com a vida. É patológica, por outro lado, se o for. Para Canguilhem a questão da anomalia demonstra que diversidade não é doença e que o anormal não é necessariamente patológico. Ao contrário, problemas que afetam grande parte das pessoas (como a cárie e a tristeza) podem não ser doenças. Enfim, nem tudo que é minoritário é patológico e nem tudo que é majoritário é saudável. 



Além do mais, como também aponta Canguilhem, a palavra normal tem dois sentidos: aquilo que é comum e aquilo que é ideal, ou seja, aquilo que “é” e aquilo que “deveria ser”. Quando perguntamos, portanto, se a homossexualidade é normal, precisamos responder à outras duas perguntas: a homossexualidade é comum? A homossexualidade é ideal? A primeira pergunta leva ainda à outra: o que é comum? Algumas pesquisas realmente apontam que cerca de 10% das pessoas são homossexuais. Aparte o fato destas estatísticas desconsiderarem aqueles que estão “dentro do armário”, será 10% um número significativo ou não? Difícil dizer, afinal, para certas questões 10% pode ser muito (por exemplo, 10% dos homens tem câncer de próstata) enquanto que para outras questões pode ser pouco (por exemplo, 10% dos brasileiros usam smartphones). Tudo depende do contexto. Para aqueles que consideram a homossexualidade um pecado, uma abominação, 10% de gays é muito. Para o movimento gay, talvez seja pouco diante do número significativo de gays "dentro do armário". Com relação à segunda questão (a homossexualidade é ideal?), talvez a pergunta correta seja: a homossexualidade é natural? “De forma alguma”, dizem os partidários da “cura gay”: “o natural é o relacionamento homem-mulher. Qualquer outra forma de relação é uma abominação”. Por que, questiono? “Porque a Bíblia disse!”. Outro argumento, por favor... “Ok, porque na natureza o normal é a heterossexualidade”. Argumento falso: existem inúmeros exemplos de relações “homossexuais” na natureza. Outro argumento: “O fim de toda relação sexual deve ser a reprodução. Se não há reprodução, é antinatural”. Ah, então quer dizer que casais heterossexuais que não podem ou não querem ter filhos são abominações também? 

Finalmente, os partidários da “cura gay” podem argumentar: “Ok, você pode até ter razão quanto à tudo isto, mas por que então a Organização Mundial de Saúde, na sua Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e a Associação Psiquiátrica Americana no seu Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) já incluíram a homossexualidade dentre as doenças mentais? E mais, no caso do DSM a homossexualidade só foi eliminada, em 1980, em função de uma intensa pressão do movimento gay - o mesmo ocorrendo em 1990 com o CID. Isto prova que a decisão de retirar a homossexualidade do DSM foi política, não científica. Desta forma, como a ciência ainda não conseguiu mostrar de forma conclusiva que a homossexualidade é ou não uma doença, ela de fato pode ser”. Belo argumento, pena que seja falso. Em primeiro lugar, como já disse anteriormente neste blog, a ciência não tem como provar que a homossexualidade é ou não uma doença ou transtorno mental. Definições como esta são sempre o resultado de acordos coletivos, atravessados por múltiplos interesses e perspectivas e, portanto, dificilmente consensuais. O que os partidários da "cura gay" não percebem, ou não querem perceber, é que é desta forma que TODOS os diagnósticos, especialmente no campo da psiquiatria, são concebidos. Há muito mais política do que ciência neste processo. E mais: ciência e política andam juntas, são inseparáveis. Portanto, o que quer que esteja inserido em qualquer manual de doenças não representa a verdade suprema sobre o que é normal e o que é patológico. A homossexualidade pode até ter sido incluída no CID e no DSM, mas isto não significa que ela é, de fato, uma doença. Significa apenas que certos grupos de "especialistas", imbuídos do espírito de sua época, decidiram, por votação, que a heterossexualidade era a norma.



OBS: Na segunda e última parte deste texto discutirei se (e de que forma), mesmo não sendo a homossexualidade uma doença, é possível auxiliar uma pessoa que deseja deixar de ser gay a converter-se à heterossexualidade - e vice-versa.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Neuroblábláblá (ou Como o cérebro conquistou o mundo)


Reproduzo abaixo, na íntegra, um  excelente artigo do jornalista Sérgio Augusto, publicado dia 31 de Dezembro de 2012 no Estadão. O artigo, muito bem escrito, além de extremamente irônico, trata de um tema atualíssimo: a popularização das neurociências - que será exatamente o tema da minha dissertação de mestrado. Quem quiser ler o artigo na página original clique aqui.

O ano da neurocascata

Em 2012 a palavra do ano foi menos que um vocábulo, foi um prefixo: neuro. Usado e abusado em várias línguas, não se ateve a identificar a ciência que estuda a anatomia e a fisiologia do cérebro humano e o funcionamento do sistema nervoso - neurociência - mas também uma infinidade de atividades presumidamente científicas ou humanísticas e outras nem tanto. 2012 foi o ano do neuroisso, do neuroaquilo, do neurotudo e, em última instância, do neuronada.

Tinham outro objetivo os que fizeram a revolução cognitiva, no final dos anos 1950. O pior é que a neuromania, asseguram os que monitoram o fenômeno desde o início do milênio, não tem prazo para nos deixar em paz. Nem a nós nem à ciência.

Em sua primeira dentição, a neuromania inspirou a expressão "é cuca", aplicada a qualquer sintoma ou distúrbio de origem nebulosa, mesmo aqueles com pouca possibilidade de terem sido causados por problemas de natureza psicológica. Quase ninguém mais diz "é cuca", nem sequer "é psicossomático", mas ainda é na cabeça que quase tudo começa e se resolve, na opinião - vale dizer, na cabeça - de muita gente.



Sofisticou-se o linguajar, especificou-se o diagnóstico: agora sofremos de alguma síndrome (do pânico, a mais comum), da falta (ou excesso) de dopamina, de disfunções que nem de nome conhecíamos até algum tempo atrás. Fala-se em neurônio, sinapse e córtex pré-frontal quase com a mesma intimidade com que desde sempre nos referimos às artérias e ao esôfago. Não precisamos esperar que glia, dendrito e axônio caiam na boca do povo para reconhecer, penhorados, que a popularização da neurociência ampliou tremendamente nossa cultura biológica.

O preço pago por esse enriquecimento vocabular e patológico foi alto demais. Como o marxismo, o freudianismo, a Teoria Crítica e outras visões totalizantes, a neurociência virou o século submetida a abusivas simplificações e aplicações levianas. Vulgarizada para consumo e consolo das massas, a neurociência pop tornou-se uma pestilência intelectual, um engana-trouxa de jaleco a oferecer ensinamentos, no mínimo, discutíveis sobre certas funções orgânicas e determinados processos mentais e soluções para uma infinidade de problemas - dos cognitivos aos emocionais, dos políticos aos econômicos.



Se ainda não ouviu falar em neuroeconomia, neuropolítica, neuroteologia, neurogastronomia, neurocrítica literária, neurodireito, neuroestética, neuromagia, neuromarketing, prepare-se. São o que você imagina, e igualmente dotadas de impositivas imagens por ressonância magnética ou de tomografia axial computadorizada. Como resistir à impressionante visão de um cérebro com aquelas manchas vermelhas, amarelas e verdes excitadas por impulsos nervosos?

"This is your brain..." (É assim o seu cérebro...) virou um meme editorial, um abracadabra para o que sucede em nossa cuca quando estamos felizes, nos apaixonamos, ouvimos música, comemos carboidratos, negociamos ações na bolsa e duvidamos da ressurreição de Lázaro. A dupla Earl Henslin-Daniel Amien fatura horrores nesse ramo de neurocascata. Outros incansáveis praticantes: Louis J. Cozolino, "inventor" da neurociência das relações humanas, e John B. Arden, que tem uma receita neoestoica para "modificar e melhorar" nossa massa cinzenta.



Com o prefixo neuro alçado a padrão ouro da exegese e da autoajuda, as prateleiras das livrarias se abarrotaram de obras que tentam dar respostas até a questões fora da alçada da neurociência ou compartilhadas com a psicologia e outros consolidados ramos do conhecimento. Não há muito mistério: desenvolva uma desconfiança comportamental ou psicossocial sob a forma de tese, busque alguns exemplos que a sancionem, ainda que só parcialmente, enfeite o texto com lantejoulas neurológicas (dopamina, oxitocina, ínsula, glândula pineal, etc.), e pronto - está feita a sua neurobobagem.

Em julho deste ano, Elaine Fox pôs na praça "a nova ciência do otimismo", dividindo o cérebro - que sabemos dotado de dois hemisférios: o esquerdo, responsável pelo pensamento lógico, o direito, pelo pensamento simbólico - em dois hemisférios metafóricos: de um lado, o "chuvoso" (rainy brain), do outro, o "ensolarado" (sunny brain). Poucos meses antes, Chris Mooney "descobrira" que os republicanos são geneticamente diferentes dos democratas, e também menos inteligentes e mais agressivos do que seus adversários políticos "porque têm uma amídala mais ativa", a amídala cerebral, é claro. O que me levou a supor que o filho republicano de Alan Alda em Todos Dizem eu te Amo, que depois de um piripaque se transformava num democrata liberal, teve sua amídala amansada no hospital.




Quando a dicotomia neurometeorológica de Elaine Fox e o maniqueísmo neuroeugenista de Chris Mooney chegaram ao mercado, os best-sellers de Malcolm Gladwell (Blink - A Decisão num Piscar de Olhos) e Jonah Lehrer (Proust Era um Neurocientista e Imagine: Como Funciona a Criatividade) já haviam sido malhados pelos vigilantes da seriedade científica espalhados por publicações especializadas e pela internet; sendo que Lehrer acabou demitido da revista The New Yorker por inventar citações. Existem blogueiros que se dedicam a apontar e gozar erros e abusos cometidos pelos proxenetas da divulgação científica. São os "neurocéticos", que leem tudo o que se publica em jornais, revistas e livros com mais de um grão de sal. Serviço não falta.

Um grupo de cientistas ingleses analisou cerca de 3 mil artigos sobre neurociência publicados na imprensa britânica nos primeiros dez anos da década passada e constatou ser bastante elevada a taxa de informações distorcidas ou edulcoradas pela mídia, por ignorância, negligência ou para servir a algum interesse. Divulgada pela revista Neuron, a pesquisa motivou a comunidade científica a um alerta contra os que ajudam a conferir "uma aparência de seriedade e verdade a pensamentos vagos e indisciplinados" e a difundir a falácia de que as explicações neurocientíficas vieram para eclipsar as interpretações históricas, sociológicas, políticas, econômicas, literárias, e torná-las obsoletas.



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Mudanças no DSM-5: despatologização aspie e trans?



No dia 1º de Dezembro de 2012, o conselho diretor da Associação Psiquiátrica Americana (APA), aprovou a revisão final da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o DSM-5 - também conhecido como a Bíblia da Psiquiatria, embora sua influência extrapole em muito a atuação psiquiátrica. Dentre as inúmeras mudanças, destaco duas realizadas pela APA (saiba mais aqui, aqui e aqui): 1) eliminação do diagnóstico de Síndrome de Asperger, que será, a partir de 2013, incorporado ao diagnóstico guarda-chuva de Transtorno do Espectro Autista e 2) remoção do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero, substituido pelo de Disforia de Gênero. Com relação à estas modificações, cabe a reflexão: trata-se de um movimento de despatologização ou somente de mudanças na nomenclatura e localização dentro do manual?


Com relação à primeira alteração, o argumento da APA é de que a incorporação de diversos diagnósticos em somente um favoreceria um processo diagnóstico mais consistente e preciso das crianças com autismo. Segundo a entidade, inúmeras pesquisas realizadas por cientistas de diversos países, apontaram para a existência de um continuum, de leve a greve, entre as diversas manifestações autísticas e não somente de um “sim ou não” para cada transtorno específico. A APA alerta, no entanto, que tal modificação nos critérios não implicará em qualquer alteração no número de pacientes que recebem tratamento para distúrbios do espectro do autismo em centros de tratamento. Isto significa que uma pessoa que hoje possui o diagnóstico de Asperger, continuará tendo acesso aos tratamentos que recebia. Mas uma pergunta se faz necessária: será que, no decorrer do tempo, haverá uma diminuição no número de pessoas diagnosticadas? Difícil saber, mas provavelmente ninguém que hoje é considerado Asperger ficará sem um diagnóstico. Neste sentido, parece tratar-se mais de uma ampliação do diagnostico de autismo, do que de um movimento de despatologização da Síndrome de Asperger. De qualquer maneira, não é uma mudança pequena. Afinal, os nomes dos transtornos conformam identidades. E muitos indivíduos atualmente, no Brasil e no mundo, se identificam como Aspies, mesmo que seja para criticar o diagnóstico e propor sua despatologização. Em 2004 foi criado nos EUA o movimento Aspie for Freedom, que defende a ideia de que os autistas e os aspies não são deficientes ou doentes, mas sim diferentes - assim como os gays, negros e canhotos. Sendo assim, não precisam ser tratados ou curados, mas entendidos e respeitados enquanto "neurodiversos", ou seja, diferentes dos "neurotípicos", que são todos os não-autistas. Afinal, argumentam, se a neurodiversidade é uma doença, a "neurotipicidade" (ou seja, a normalidade) também o é. Sobre esta visão, é muito interessante conferir o irônico site do Instituto para o Estudo do Neurologicamente Típico, criado por um autista, que define a "síndrome neurotípica" como "um transtorno neurobiológico caracterizado pela preocupação com questões sociais, delírios de superioridade e obsessão pela conformidade". Alguém aí se identificou com este diagnóstico? Para um aprofundamento destas questões, recomendo o artigo O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade, do filósofo (e meu professor) Francisco Ortega.




Já a segunda modificação aprovada pela força-tarefa do DSM-5, isto é, a retirada do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero do futuro manual, poderia apontar para um movimento concreto de despatologização da transexualidade. Será? De acordo com o site da Campanha Internacional Stop Trans Pathologization – STP 2012, um de seus objetivos principais é a retirada da categoria “disforia de gênero/ transtornos de identidade de gênero” das próximas edições dos manuais diagnósticos (DSM e CID). Na recente mudança, foi-se eliminado o rótulo de Transtorno de Identidade de Gênero, mas o de Disforia de Gênero permanece. A perspectiva parece ter sido eliminar a palavra "Transtorno", que traz consigo a ideia de uma doença mental, substituindo-a pela teoricamente menos negativa "Disforia", que apontaria para um sofrimento emocional relacionado à incongruência entre sexo e gênero. Segundo a pesquisadora Jaqueline Jesus (nos comentários desta notícia): "A APA não despatologizou a transexualidade, apenas a realocou dentro do Manual, e a agregou com outras expressões transgênero dentro da categoria 'disforia de gênero', considerando assim que todas as pessoas trans sofrem por terem essa identidade de gênero. Sinto, mas isso ainda é patologizar". Ao mesmo tempo, dentro do próprio movimento pela despatologização trans, existem aqueles, mais pragmáticos, que se posicionam favoráveis à manutenção da medicalização da transexualidade, haja vista que muitos sujeitos trans - mas não todos - desejam se submeter à cirurgia de redesignação sexual. E, para isso, o aval médico é, atualmente, indispensável. Para estas pessoas, a recente modificação no DSM-5 talvez possa representar um avanço. Mas não para outras, que defendem a total retirada da transexualidade tanto do DSM quanto do CID, por acreditarem, como Judith Butler, que 

"O diagnóstico reforça formas de avaliação psicológica que  pressupõem que a pessoa diagnosticada é afetada por forças que ela não entende. O diagnóstico considera que essas pessoas deliram ou são disfóricas. Ele aceita que certas normas de gênero não foram adequadamente assimiladas e que ocorreu algum erro ou falha. Ele assume pressupostos sobre os pais e as mães e sobre o que seja ou o que deveria ter sido a vida familiar normal. Ele pressupõe a linguagem da correção, adaptação e normalização. Ele busca sustentar as normas de gênero tal como estão constituídas atualmente e tende a patologizar qualquer esforço para produção do gênero seguindo modos que não estejam em acordo com as normas vigentes".

Deste ponto de vista, as modificações realizadas pela equipe do DSM-5 não parecem ter modificado em nada o caráter patologizante/estigmatizante do autismo e da transexualidade. Talvez ainda não tenha chegado a hora destas configurações identitárias serem efetivamente despatologizadas e desmedicalizadas, como ocorreu com a homossexualidade algumas décadas atrás. 


Update 07/12/12: Além da eliminação da Síndrome de Asperger e do Transtorno de Identidade de Gênero, diluídos em outras categorias, outras alterações foram realizadas no DSM-5 (veja aqui um release da APA com todas as modificações). Dentre os novos transtornos catalogados estão: o Transtorno da Acumulação Compulsiva (Hoarding Disorder), o Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica (Binge eating desorder), Transtorno da Escoriação (Excoriation Disorder), Transtorno da Desregulação do Humor Disrupitivo (Disruptive Mood Dysregulation Disorder, mais conhecido como "birra"), etc. Outra alteração importante foi a retirada do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de depressão, o que significa que em breve, alguém que acabou de perder uma pessoa querida poderá ser diagnosticado com Depressão. A indústria farmacêutica deve estar dando pulos de alegria...

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Ser formado em Psicologia é igual ser Psicólogo?



Para quem não sabe, dois ícones do conservadorismo brasileiro - o pastor evangélico Silas Malafaia e a senadora ruralista Katia Abreu - são psicólogos. Ou melhor, se formaram em Psicologia e estão inscritos no Conselho Federal de Psicologia (CFP), embora não exerçam a profissão. Uma rápida pesquisa no Cadastro Nacional dos Psicólogos prova que ambos estão realmente inscritos e ativos em seus respectivos Conselhos Regionais (ver imagem abaixo). Deve haver algum motivo para manterem-se ativos, pagando a anuidade do CFP, mesmo que não exerçam a profissão e não precisem da Psicologia para viver. Afinal, ele é pastor e ela senadora e empresária pecuarista. Devem existir outras razões para utilizarem-se publicamente do título de Psicólogo. Razões, imagino, muito pouco nobres...


Com relação ao pastor Silas, não encontrei em seu site oficial (vitoriaemcristo.org) nem em seu perfil no Twitter, nenhuma menção à sua formação em Psicologia, o que apontaria para uma certa honestidade no uso que ele faz da alcunha de Psicólogo já que, efetivamente, ele não atua como um. No entanto, em debates públicos (como na audiência na Câmara dos Deputados ontem, veja o video no final do post), Silas costuma expôr o fato de ter se formado em Psicologia como que para respaldar e dar uma certa credibilidade "científica" à sua fala, mesmo que na realidade não haja nada de Psicologia, muito menos de ciência no que ele diz. Seu discurso é eminentemente religioso e político - e politicamente conservador



Por exemplo, em um discurso proferido na Câmara dos Deputados em 2011, Silas afirmou o seguinte (fonte): “Eu sou psicólogo também, e homofobia é sentir aversão a um homossexual e querer agredir, maltratar. Existe uma diferença entre criticar comportamento e discriminar pessoas. Eles fazem um jogo muito lindo: eles dizem que criticar comportamento é discriminação”. Fica claro que a afirmação "sou psicólogo" é utilizada na tentativa de validar o que ele diz em seguida. Um site gospel chega a afirmar o seguinte sobre esta questão: "O pastor se formou em psicologia clínica [???] e não exerce a profissão, mas faz com frequência menção a sua formação nas pregações aos fiéis". A formação de Silas aparece em destaque também em seus DVDs de auto-ajuda, por exemplo, no Vencendo a Depressão (ver abaixo). No entanto, importante ressaltar que as soluções apresentadas por ele para este e outros problemas, são eminentemente religiosas. Afirmar-se psicológo e vender fé como psicologia me parece mais uma estratégia comercial do que algo coerente e embasado nas teorias psicológicas - se a Psicologia é ciência ou não, discutirei em outro momento.




Segundo notícia do ano passado, O CRP-RJ recebeu diversas denúncias do movimento gay contra Silas, por suas declarações homofóbicas - que batem de frente com a Resolução 01/99 do CFP (o artigo 4° estabelece que "os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica"). Um processo disciplinar foi aberto contra ele e, ao que tudo indica, não deu em nada, pois sua inscrição no conselho permanece ativa. Questionada sobre o processo de Silas no CRP, a "Psicóloga Cristã" Marisa Lobo - que está com um processo disciplinar no CRP-08 pelos mesmos motivos - disse em uma entrevista se tratar de perseguição heterofóbica e religiosa e não acredita que ele será cassado. Será que ela terá a mesma sorte? 



Finalmente, com relação à Katia Abreu, a informação de que é Psicóloga, encontra-se destacada em seu perfil no Twitter, aparecendo antes mesmo do título de senadora. Em entrevista para a Agência Senado (ver aqui), ela disse o seguinte: "Eu estava no último ano de Psicologia. Pretendia ser uma grande psicanalista. E aí eu tive que tocar a fazenda. Tinha um filho de 4 anos, outro de 1 ano e estava grávida de dois meses. Um ano depois que meu marido morreu foi criado o estado do Tocantins, em 1988. Aí eu fui para a fazenda e comecei a trabalhar pra criar os meninos". Ao que tudo indica, ela nunca atuou como psicóloga. O que não consigo entender é porque, depois de tanto tempo atuando como política e empresária pecuarista, ela ainda paga a anuidade do CFP e afirma-se publicamente psicóloga. 


Uma questão importante, que gostaria de trazer como reflexão, é a seguinte: legalmente, qualquer pessoa que finaliza um curso de Psicologia, em qualquer universidade, faculdade ou centro universitário, e obtém um diploma válido, pode ser considerado Psicólogo. No dia seguinte à obtenção do diploma, esta pessoa pode atuar em qualquer área da Psicologia e, publicamente, apresentar-se e dar declarações com o título de Psicólogo. E mais: mesmo que a pessoa não atue ou nunca tenha atuado como psicólogo(a), ela pode falar o que quiser e dizer-se publicamente psicólogo(a). 
Não considero isso correto, haja vista que certas declarações acabam prejudicando a imagem e a credibilidade de toda a categoria, mas é assim que a coisa funciona no Brasil. Ao mesmo tempo, censurar é uma péssima opção. Alguém imagina alguma solução possível para este problema? 




Update 30/11/2012: Encontrei uma fala da Katia Abreu que deixa explícito que, como Silas, ela usa o fato de ter se formado em Psicologia em momentos estratégicos. Em uma audiência na Comissão de Constituição e Justiça, ela deu a seguinte declaração  (fonte): "Sou psicóloga. E percebo que o governo tem uma obsessão compulsiva pelo gasto, que precisa ser tratado urgentemente". Ou seja, ela usa de sua "autoridade de psicóloga" para diagnosticar o governo. Que absurdo!

domingo, 25 de novembro de 2012

Veja e a indústria farmacêutica: jornalismo ou propaganda?



Ontem, passando por uma banca de jornal, vi a capa da edição desta semana da revista Veja: "Depressão: A promessa de cura - A cetamina é a primeira esperança de tratamento totalmente eficaz da doença que afeta 40 milhões de brasileiros". Fiquei consternado! Na verdade, nem sei como ainda me surpreendo com esta revista, que representa o que há de pior no jornalismo nacional - e mesmo internacional. Não digo isso somente porque discordo de suas posições políticas conservadoras mas porque, mesmo em termos jornalísticos básicos, ela comete erros absurdos, inclusive nas seções não-políticas. 

Especificamente com relação aos assuntos ligados à área da saúde, é conhecida - e já analisada em alguns trabalhos acadêmicos - a estreita e promíscua ligação da revista com a indústria farmacêutica. Não é a primeira vez que a Veja, sob a aparência de um jornalismo isento, faz propaganda descarada de alguma medicação. Como afirma a pesquisadora Fernanda Lunkes, que analisou em sua tese de doutorado o discurso de medicalização em várias reportagens da revista, "sob um efeito de cientificidade, compreendo que as matérias se inscrevem em um negócio, e um bom negócio, à indústria farmacêutica e à Veja. As matérias, inseridas principalmente nas Seções medicina e saúde, filiam-se ao discurso da venda e do lucro, onde quem mais ganha é quem vende o produto". Em outro trecho ela afirma que a revista "direciona seus argumentos a favor da indústria e não produz marcas linguísticas de resistência a ela. Ao contrário, ao trazer termos relacionados ao contexto capitalista, como venda, mercado, consumo, ela torna o medicamento um produto a ser vendido/consumido por qualquer um e muitas vezes sem ser por motivos de doença e sim porque está 'na moda' (e se está na moda é preciso consumir)". Por tudo isso, não seria um exagero afirmar que a revista presta um verdadeiro desserviço à população brasileira em matéria de saúde. Ao invés de informar, faz propaganda.


Há pouco mais de um ano, a revista publicou uma reportagem de capa sobre um "milagroso" remédio para emagrecer  "sem grandes efeitos colaterais". Terá sido coincidência sua publicação  justo num momento em que o governo se mobilizava para restringir a venda de alguns remédios para emagrecer? Certamente não. Afinal, sempre que alguma ação governamental é realizada no sentido regulamentar ou restringir o uso de certas medicações, eis que surge a Veja para defender os interesses da indústria. Nesta outra capa, a revista é ainda mais explícita em suas intenções.


Com relação à reportagem de capa desta semana ainda não a li  pois, como me recuso a comprar a revista, estou esperando ela cair na internet - o que ainda não ocorreu. Desta forma, somente analisando a capa, faço algumas considerações preliminares:

1) Como é possível falar em cura para uma doença ou transtorno ou problema como a depressão? Afirmar que existe uma cura para a depressão é como dizer que é possível eliminar definitivamente qualquer tristeza ou ansiedade ou ainda as dúvidas, os receios e os medos, dos quais, dentre outras coisas, a depressão é consequência. É claro que existe algum componente biológico na depressão, mas isto não significa dizer, como querem os psiquiatras modernos, que a depressão é simplesmente um problema genético/cerebral que pode ser eliminado por via química. A coisa é muito mais complexa que isto, mas a revista compra (e vende) muito bem, de forma acrítica, este discurso biologizante/ medicalizante. Uma curiosidade é que há 13 anos, em março de 1999, a revista divulgava, em sua capa, que o mal da depressão "já pode ser vencido com a ajuda de remédios". Será que em 2025 teremos uma nova capa da Veja prometendo mais uma cura definitiva para a "doença da alma"?



2) Sério que 40 milhões de pessoas tem depressão no Brasil? Isto equivale a cerca de 20% da população. Como já discuti neste post, os altos índices de depressão no Brasil e no mundo provavelmente refletem menos a realidade endêmica do problema e muito mais a ampliação e a banalização do diagnóstico moderno de depressão, que desconsidera o contexto em que os sintomas emergem e se mantém. Não sei qual a fonte utilizada pela Veja, mas mas o curioso é que a mesma revista, em 2009, divulgou que 17 milhões de brasileiros tinham depressão. Será que em três anos os índices praticamente triplicaram? Não creio. Este estudo epidemiológico internacional de 2011 aponta que cerca de 10% dos brasileiros teriam depressão. Metade do que aponta a Veja; 

3) A montagem utilizada pela revista para ilustrar a capa se utiliza do clichê da "pílula da felicidade", contrapondo a imagem de uma jovem triste à sua (nova) versão feliz. Esta montagem se assemelha muito àquelas produzidas pela indústria farmacêutica para divulgar seus produtos - seja para médicos ou para a população em geral (o que no Brasil, felizmente, é proibido). Esta semelhança não pode ser simplesmente mera coincidência.



4) Com relação à cetamina (também chamada de ketamina), trata-se de um anestésico que tem sido cada vez mais consumido na Europa e nos EUA. Algumas pesquisas, como a relatada por esta reportagem, apontaram para o alívio imediato dos sintomas da depressão por alguns indivíduos após a ingestão da medicação. O fato é que existem ainda poucos e inconclusivos estudos sobre os efeitos antidepressivos da droga, o que é muito diferente de afirmar que os cientistas descobriram um "tratamento totalmente eficaz" para a depressão. O que esta manchete sensacionalista não diz é que o efeito da cetamina é limitado e que, como qualquer medicação, gera efeitos colaterais e pode, inclusive, levar à dependência. Este estudo alerta ainda para o fato de que "o seu uso não se restringe apenas à prática clínica ou pesquisa, sendo frequentemente utilizada como droga de abuso pelos jovens em festas como um potente alucinógeno". Não sei ainda se isto é mencionado no decorrer da reportagem - o que duvido muito -, mas a capa, pelo menos, passa a ideia de uma medicação 100% eficaz e sem efeitos colaterais. 

A pesquisadora Lia Hecker Luz, neste estudo sobre a "pílula da longevidade à venda nas páginas da Revista Veja" conclui, após analisar 50 matérias sobre saúde, que a revista "assume esse papel de anunciar aos seus leitores, formados pela classe média, o que há de novo no mercado farmacêutico e de equipamentos de saúde, dando às matérias de Jornalismo científico caráter publicitário, citando nomes comerciais de medicamentos e de seus fabricantes" E conclui com um importante alerta: "Antes de ler as matérias da revista, o leitor deve lembrar-se das prováveis respostas a duas questões: quem tem interesse na notícia e quem vai lucrar com a divulgação da mesma". Quem NÃO vai lucrar, certamente, é o leitor da revista.