segunda-feira, 2 de julho de 2012

South Park e a "cura gay"



Georges Canguilhem, em seu clássico livro "O normal e o patológico", alertava para o duplo sentido da palavra "normal". Ao mesmo tempo que aponta para aquilo que é comum e habitual, indica o estado ideal. Ou seja, aponta tanto para aquilo que "é" quanto para aquilo que "deve ser". Por exemplo: falar em uma orientação sexual normal significa dizer que a heterossexualidade é normal porque é mais comum e/ou que é normal porque é assim que deve ser. Os militantes da "cura gay" tendem a se utilizar das duas concepções indiscriminadamente, especialmente da segunda. Afirmam que a homossexualidade é um pecado ou uma doença porque foge a uma espécie de "design divino", afinal deus criou o homem e a mulher para procriarem. Se não há procriação não há casamento e logo, não há família. Está lá na Bília, dizem. No entanto, os homossexuais existem. Mas como podem existir se vão contra os designos de deus? Seriam uma espécie de erro de deus? Mas ele não é onisciente e onipotente, como poderia cometer um erro tão "grave" como este?


Assisti outro dia uma episódio do South Park (meu seriado favorito!), intitulado "Cartman sucks", que dá uma ótima resposta para estas questões. Quem quiser assistir, legendado, clique aqui. Neste episódio, o sacana Eric resolve zoar o inocente Butters, vendando seus olhos e colocando o pênis em sua boca para tirar uma foto e mostrar para todo o colégio. Neste momento, o pai de Butters entra no quarto e vê a cena, ficando assustado. Eric sai e Butters, sem entender nada do que está acontecendo, é taxado de bi-curioso por seu pai, que recorre a um padre para lhe ajudar. O padre pergunta a Butters se ele se sente confuso e este afirma estar realmente muito confuso - mas por não saber o que está fazendo ali. Diante desta resposta, o padre lhe envia para um acampamento religioso, chamado New Grace, para curar sua bi-curiosidade. 


Chegando lá, seu pai o deixa com os responsáveis. Um deles lhe diz: "Seu filho só precisa aprender a se endireitar se quiser". Ou seja, a bi-curiosidade é entendida como uma escolha, passível de ser corrigida voluntariamente. Um dos responsáveis leva, então, Butters para o quarto onde ficará com seu monitor, Ryan. Sobre este é dito: "Ryan achou que nunca poderia mudar, mas agora está aprendendo que com o poder de Cristo e das preces, ele pode ter uma nova vida". Entrando no quarto, descobrem que o garoto acabara de se enforcar. Mas não só ele, durante todo o episódio, vários garotos se matam (como ocorreu, na vida real, com o matemático Alan Turing - saiba mais aqui). Arranjam então outro monitor para Butters, o Bladley, um garoto que declama versículos bíblicos obsessivamente durante todo o tempo, de uma forma um tanto quanto mecânica. 


Em uma palestra para os internos, o pastor Philips, um "ex-gay" super-afeminado, diz o seguinte: "Sim, acreditando ou não, eu tinha desejos impuros e, como muitos de vocês, achei que era assim mesmo, que não tinha escolha. Mas daí eu percebi que Deus não queria que eu fosse assim. Deus queria que eu fosse homem. Então eu apertei o cinto da minha roupinha e orei pra ser normal e adivinhem: deu certo!". Nesta frase fica explícito duas "técnicas" utilizadas no tratamento da bi-curiosidade: a "abstinência" e a oração. Na cena seguinte, outra estratégia se evidencia: o evitamento de estímulos visuais. Uma foto de propaganda de cuecas é encontrada no quarto do Bladley e, tanto ele quando Butters, são punidos. Durante a realização da tarefa punitiva, copiar a Bíblia por 4 dias, Bradley confessa à Butters que ainda se sente confuso e demonstra um certo interesse por ele, interesse este interrompido bruscamente por sentimentos de culpa. "Pensamentos ruins! Pensamentos ruins!", diz Bradley. O desespero toma conta dele: "Oh Deus! Não temos conserto. Não percebe que somos causas perdidas. Somos perversos e nada pode nos mudar! Não tem saída, Butters, temos que nos suicidar". 


Desesperado, Bradley corre para a ponte e ameaça pular. Um dos responsáveis pelo acampamento implora para que ele não faça isso, ao que ele afirma: "Afaste-se! Sou uma abominação de Deus. Não sou normal nem nunca serei". Butters intervém, retrucando que ele é normal sim. O responsável discorda, falando que ele é tão confuso quanto Bradley. Butters então, numa fala final absolutamente brilhante, afirma:

“Estou cansado de todos falarem que eu sou confuso. Eu não era confuso antes que outros começassem a dizer que eu era. Quer saber o que eu acho? Acho que talvez os confusos sejam vocês. Eu não vou mais ficar confuso só porque vocês dizem que eu deveria estar! Meu nome é Butters, tenho oito anos de idade, sou sangue O positivo e sou bi-curioso! E está tudo bem! Porque se eu sou bi-curioso, e sou de alguma forma feito por Deus, então eu acho que Deus deve ser um pouquinho bi-curioso também!”

O que será que os partidários da "cura gay" teriam a dizer sobre isto?



segunda-feira, 4 de junho de 2012

Exigências ambíguas

Inspirado na leitura do livro "Somos todos desatentos?", do Prof. Rossano Cabral (IMS/UERJ). Livro esgotado, disponível aqui.

domingo, 3 de junho de 2012

Difícil diagnóstico - Sérgio Telles


Reproduzo abaixo, na íntegra, o excelente artigo do psicanalista Sérgio Telles, publicado no dia 26 de maio do site do Estadão. O artigo serve como uma espécie de resumo de toda uma complexa discussão travada atualmente no campo da saúde mental. 

Difícil diagnóstico

Excluindo as doenças mentais mais graves - nas quais as perturbações das funções psíquicas são facilmente reconhecíveis através de sintomas como delírios, alucinações ou crises de agitação psicomotora -, é difícil estabelecer um diagnóstico em psiquiatria. Não há parâmetros unívocos para detectar com precisão as alterações na estrutura do pensamento, na produção das ideias, na intensidade da atenção, nas nuances da senso-percepção. As fronteiras entre a chamada normalidade e a psicopatologia não são bem delimitadas e mudam em função das circunstâncias socioculturais. O psiquiatra conta apenas com a capacidade de observação e a subjetividade para avaliar este imponderável material que é a vida psíquica. Isso faz com que os diagnósticos em psiquiatria muitas vezes oscilem, não tenham a firmeza desejada.

 


Em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) lançou a primeira versão do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais, que passou a ser mundialmente conhecido como DSM. Suas três primeiras versões não diferiam muitos dos grandes compêndios de psiquiatria, com suas densas descrições da psicopatologia, na maioria das vezes baseadas em pressupostos psicanalíticos. Em 1980, saiu sua terceira edição, o DSM3, com um enfoque diferente, procurando uniformizar e padronizar os dados observados, com o objetivo de deixar os diagnósticos psiquiátricos menos vagos e imprecisos. Grosso modo, ao invés de atentar para os meandros do psiquismo e as profundezas da psicopatologia ou da psicodinâmica psicanalítica, o DSM3 se centrou no registro dos sintomas observáveis no pragmatismo e na conduta do paciente, mais fáceis de quantificar e avaliar estatisticamente. Os motivos conscientes ou inconscientes que poderiam estar ligados a estes sintomas não são valorizados, não é feita uma relação de causa e efeito entre vivências existenciais traumáticas e a sintomatologia. O exame psiquiátrico não se interessa pela vida do paciente.




Esse enfoque reflete uma mudança na própria abordagem e compreensão da doença mental. Abandonou-se a visão analítica psicogênica e se defende a ideia de que o funcionamento normal do psiquismo resulta do equilíbrio dos neurotransmissores cerebrais, substâncias existentes entre os neurônios a facilitarem a circulação dos impulsos e sinais. Os sintomas seriam evidências do desequilíbrio dos neurotransmissores. Em sendo assim, não importam as vivências atuais e passadas do paciente e sim o repertório de sintomas que exibe e que será eliminado com uma medicação que devolve aos neurotransmissores o equilíbrio perdido. As psicoterapias são desvalorizadas e quando indicadas, devem seguir a linha cognitivista, que ensina o paciente a lidar com o sintoma através de treinamentos e condicionamentos conscientes. Não pode ser ignorado que este panorama se instala dentro de dois grandes referenciais econômicos - a indústria farmacêutica e os seguros-saúde, ambos beneficiados pela ênfase quase exclusiva na medicação. O primeiro, pelo incremento nas vendas, pois das medicações prescritas nos Estados Unidos, as psicotrópicas são as mais vendidas, tendo movimentado mais de US$ 14 bilhões em 2008. O segundo, que passa a impor para os segurados um modelo cognitivo de terapia com poucas sessões, que lhes é bem mais barato do que as longas terapias que antes tinham de pagar.


Largo debate se estabeleceu desde então. Os aspectos positivos deste enfoque são a tentativa de uniformização dos critérios diagnósticos, compartilhados facilmente por psiquiatras de várias culturas e formações diversas, o que deu novo alento à pesquisa e epidemiologia em psiquiatria. Como pontos negativos, ressalta-se a proliferação desenfreada de diagnósticos, a patologização e medicalização de modos de ser, a expansão para a infância de diagnósticos antes restritos a outras faixas etárias, como o transtorno bipolar.


A própria psiquiatria sofre uma certa desumanização, na medida em que o paciente fica despojado de sua singularidade, em que sua história é ignorada. Descarta-se o saber psicanalítico e a consulta psiquiatra fica rebaixada a um mero check-list de sintomas, na qual o paciente não tem oportunidade de falar de sua angústia e sofrimentos. Ao relegar sua vertente psicoterápica a um segundo plano e enfatizar excessivamente o lado medicamentoso, cuja importância não pode ser diminuída, a prática psiquiátrica fica empobrecida. Além do mais, se a psicopatologia fica reduzida a um mero desequilíbrio dos neurotransmissores, qualquer médico não psiquiatra se sente autorizado a passar antidepressivos e tranquilizantes, como ocorre atualmente.



Este é o pano de fundo que se instalou progressivamente desde os anos 80. Agora se aguarda com expectativa o DSM5, a quinta edição do manual, a ser lançada em maio do próximo ano. No último dia 11, o dr. Allen Frances, que liderou uma das forças-tarefa do DSM4, escreveu um artigo no New York Times fazendo pesadas críticas ao modo como os trabalhos estão sendo encaminhados.

Allen teme que o DSM5 seja um "desastre", pois insiste em ampliar cada vez mais os critérios diagnósticos, invadindo a infância e procurando transformar as preocupações, angústias e tristezas inerentes à vida em sintomas a serem medicados. Com isso, "introduzirá muitos diagnósticos novos e não comprovados que irão medicalizar a normalidade", resultando numa "fartura desnecessária e prejudicial de prescrição medicamentosa".


Allen diz que a fabricação de diagnósticos - desvio no qual as DSM são pródigas - é mais danosa do que a proliferação de medicação, embora uma coisa leve à outra. Apesar de afastar a acusação mais comum de que o grupo do DSM5 está atrelado à indústria farmacêutica, sabe-se que mais de 70 % dele declarou ter algum tipo de vínculo com ela. Allen vai mais longe ao propor que a própria APA abdique da função de estabelecer o que é mentalmente são ou doente, pois acredita que o mundo mudou e que essa atribuição não pode mais ficar restrita a uma associação de psiquiatria e, sim, a um leque muito mais vasto de representantes da sociedade.



Vê-se que o DSM tentou resolver um problema - a excessiva subjetividade na formulação do diagnóstico - e caiu noutro, a produção excessiva de diagnósticos "objetivos". É um impasse, que não deve ser entendido como uma prova da insuficiência da psiquiatria e, sim, como evidência da complexidade do fenômeno do qual ela trata.

Não é fácil medir e pesar a loucura dos homens, como tão bem sabia Machado de Assis. Em O Alienista, o Dr. Simão Bacamarte também oscilava em firmar o diagnóstico - serão todos loucos em Itaguaí, ou não há louco nenhum? Sem chegar a uma conclusão, termina por se internar sozinho no Hospício de Casa Verde, numa decisão mais filosófica do que clínica.


Reducionismo cerebral

Traduzido e adaptado por mim mesmo. Original aqui.

sábado, 2 de junho de 2012

Problemas de atenção

Traduzido e adaptado por mim mesmo.

Sugestões para o DSM-5 - Parte 4

Traduzido e adaptado por mim mesmo. 
No original: "Annoying Little Bastard Disorder"

Sugestões para o DSM-5 - Parte 3

Traduzido e adaptado por mim mesmo.

Normalização

Traduzido e adaptado por mim mesmo.

Razão versus emoção - Parte 2

Traduzido e adaptado por mim mesmo.

Terapias alternativas - Parte 1

Traduzido e adaptado por mim mesmo