segunda-feira, 28 de julho de 2014

Uma crítica ao cerebralismo na educação



As crianças estão sentadas diante de mesas enfileiradas todas na mesma direção. Em suas cabeças estão instalados capacetes de metal ligados por cabos elétricos a uma máquina na qual o professor deposita livros enquanto seu assistente, girando uma manivela, faz com que seus conteúdos sejam diretamente implantados ou transplantados na cabeça de seus estudantes. Foi desta forma que os ilustradores franceses Jean-Marc Côté e Villemard imaginaram, em 1899, a escola e a educação no ano 2000. Interessante observar como os artistas, ao conceberem um futuro, não conseguiram se libertar do presente: a escola imaginada por eles não era muito diferente da que havia naquele momento. A única e significativa diferença estava na tecnologia. É a máquina, no caso, que possibilita – ou potencializa – o aprendizado. Mas a função ativa do professor, entendido como aquele que deposita o conhecimento, e passiva dos estudantes, concebidos como meros receptáculos do saber alheio, permanece, assim como a organização do espaço da sala de aula. O ideal educativo de corpos dóceis e úteis, como aponta Foucault (2008) ou de uma educação bancária, como diz Freire (1987), permaneceu neste futuro imaginado.



Já passamos do ano 2000 e tal mecanismo de transferência direta de conteúdos para os cérebros dos aprendizes ainda não foi inventado – se é que um dia, de fato, será. No entanto, tem se disseminado pelo mundo, e pelo Brasil, propostas de “educar” o cérebro. De uma forma geral, como apontam diversos autores, o cérebro vem se tornando um verdadeiro ator social configurando-se, na cultura ocidental contemporânea, como o órgão central na definição de nossa identidade pessoal, fenômeno chamado pelo antropólogo da ciência Rogério Azize de cerebralismo. Este processo culmina no entendimento reducionista, amplamente disseminado no mundo ocidental, de que “eu sou o meu cérebro”. Segundo o filósofo Francisco Ortega, tal afirmação tornou-se auto-evidente em função de um contexto de emergência de uma neurocultura, na qual explicações cerebrais tem privilégio sobre outras formas de compreensão da realidade. E é justamente nesse contexto, no qual emerge a figura do sujeito cerebral, que “o cérebro vai à escola”. Com isso queremos dizer que o cérebro tem sido cada vez mais considerado um importante ator e mesmo o protagonista do processo educacional. No material aqui analisado, de fato, encontramos inúmeras referências à ideia de que é o cérebro que vai para a sala de aula e é para ele que é destinado o processo de ensino-aprendizagem. O cérebro seria, enfim, aquele que aprende. 



Sobre isto, gostaríamos de fazer algumas reflexões. Certamente, não há vida humana possível sem um cérebro. Basta constatar que bebês anencéfalos não vivem, com raríssimas exceções, mais do que poucos dias. Além disso, lesões significativas no sistema nervoso central comprometem e até mesmo impedem, em alguns casos, a vida. O clássico caso do operário Phineas Cage – que após um acidente que lesionou seu lobo frontal teve uma significativa e abrupta mudança de personalidade -, deixa claro a importância do cérebro na constituição do que somos, da nossa personalidade. Isto aponta para o entendimento de que o cérebro é absolutamente necessário para estarmos vivos e sermos o que somos. A existência de doenças graves como o Alzheimer, que atrofiam os tecidos cerebrais e alteram (e mesmo impedem) nossa consciência do mundo e de nós mesmos, e o fato de certos medicamentos influenciarem nossas emoções e nossos comportamentos, só confirma este entendimento.

Ao mesmo tempo, apesar de absolutamente necessário, ter um cérebro não é suficiente para sermos o que somos. Antes de tudo, precisamos de um corpo. Um cérebro em uma cuba não é nada mais nada menos do que um pedaço de carne. Não há vida possível sem um corpo. Mesmo sujeitos com corpo parcialmente paralisado ou extremamente comprometido possuem alguma relação corporal com o mundo e com as outras pessoas – caso, por exemplo, do físico norte-americano Steven Hawking. No caso de sujeitos com o corpo completamente paralisado – pessoas em coma, por exemplo - a relação com o mundo e com as outras pessoas é impedida ou se torna muito difícil. Mesmo que se desenvolvam formas de se comunicar com estas pessoas – e isto já está sendo testado – seria difícil negar a importância do corpo em nossa relação com o mundo, com as pessoas e com nós mesmos. 

Certamente, além de um corpo é necessário um mundo para este corpo atuar e também de outras pessoas, com seus corpos e cérebros, para se relacionar. Ou seja, nosso cérebro está num corpo que, por sua vez, está num mundo e com ele interage. Como afirma o neurocientista Steven Rose no livro O cérebro do século XXI, “os cérebros e os corpos são sistemas abertos, não fechados, em interação contínua com os mundos externos, material, biológico e social”. E é nesse sentido, que o filósofo canadense Alva Noe em seu livro Out of our heads, defende que nós não somos o nosso cérebro. Para o autor, nós somos seres vivos encarnados (em um corpo) e em permanente interação com o mundo e com as outras pessoas. Nesse sentido, segundo o autor, não é possível explicar a consciência somente em termos cerebrais porque a consciência não acontece no cérebro sozinho. A atividade neural, para Noe, ainda que necessária, não é suficiente para explicar nossa consciência de nós mesmos e do mundo. 

Para o filósofo não há nada dentro de nós que pensa e sente e é consciente. A consciência não é algo que acontece dentro de nós. É algo que nós fazemos. Segundo ele, o cérebro é necessário para a consciência assim como um motor é necessário para um carro. Mas o motor não dá origem à condução; dirigir não é algo que acontece dentro do motor. Da mesma forma, a consciência não é algo que ocorre dentro do cérebro. Outra metáfora utilizada por Noe é o dinheiro. Segundo ele, não é possível dizer que o valor do dinheiro está na nota. Se pegássemos um microscópio e a observássemos detalhadamente, não encontraríamos nela qualquer valor, porque este não se encontra em suas propriedades físicas ou químicas. O que faz uma nota de 10 reais valer efetivamente 10 reais são práticas, convenções e instituições e não qualquer materialidade da nota. Da mesma forma, para Noe, a consciência não está no cérebro, mas sim - como o título de seu livro aponta - fora de nossas cabeças. Mas isto não significa que Noe defenda a noção antiga de um espírito ou alma imaterial. De forma alguma. O que o filósofo defende é que a consciência é relacional, não material.

Evald Vassilievich Ilyenkov
Este entendimento possui grande proximidade com as ideias do filósofo soviético Evald Vassilievich Ilyenkov (1924-1979), conforme análise realizada pelo filósofo David Bakhurst. Pertencente a uma geração de pensadores marxistas pós-Stalin, Ilyenkov desenvolveu uma forte crítica ao que chamou de cerebrismo (brainism), isto é, a visão de que “(1) a vida mental de um individuo é constituída por estados, eventos e processos no seu cérebro e (2) que os atributos psicológicos podem legitimamente ser atribuídos ao cérebro”. O autor rejeita tal perspectiva em prol de um personalismo (personalism), entendimento de que “os atributos psicológicos são apropriadamente atribuídos somente a pessoas e que os fenômenos mentais não ocorrem ‘dentro’ da pessoa, mas são aspectos do seu modo de engajamento com o mundo”. Assim, para Ilyenkov o sujeito psicológico é a pessoa e não seu cérebro. Nesta perspectiva seria incorreto dizer, por exemplo, que o cérebro pensa ou que o cérebro aprende. Quem pensa e aprende são as pessoas.

Será que está realmente explicado?
Como aponta Bakhurst, o personalismo defendido por Ilyenkov não é uma forma de dualismo cartesiano. A mente, para o personalista, não reside em qualquer substância ou órgão material, mas diz respeito à pessoa como um todo – e pessoas são coisas materiais que habitam um mundo natural. A existência de um cérebro, neste sentido, é entendida como pré-condição para a existência de uma vida mental, mas ambos não se equivalem nem se reduzem um ao outro. Segundo o autor, é possível ter um profundo conhecimento da mente humana sem nada entender sobre o funcionamento cerebral – como foi o caso de Aristóteles e Platão. Em contrapartida, se abrirmos o crânio de uma pessoa e olharmos para o seu cérebro (mesmo munidos das mais modernas tecnologias de neuroimagem) não encontraremos pensamentos, sensações, crenças ou intenções. 

Este entendimento personalista possui grandes pontos de contato com a perspectiva do filósofo da mente Thomas Nagel, conforme exposto em seu artigo What is like to be a bat? (leia aqui o artigo traduzido). Segundo este autor, por mais que observemos o cérebro ou a atividade cerebral de alguém, nunca poderemos saber (ou sentir) como é ser aquela pessoa – ou, como aponta no título de seu artigo, como é ser um morcego. Isto porque os estados mentais possuem uma dimensão qualitativa, subjetiva, fenomenológica (designada na filosofia da mente de qualia), que não pode ser depreendida da análise objetiva, científica, da atividade cerebral da pessoa. No linguajar do autor, não é possível entender a perspectiva de primeira pessoa através da perspectiva em terceira pessoa. São perspectivas ou pontos de vista irreconciliáveis. Como aponta Bakhurst, provavelmente um personalista concordaria com este entendimento. È neste sentido que o autor aponta que as neurociências estão aptas, no máximo, a estabelecer correlações entre atividade mental e cerebral. Isto não significa, no entanto que a mente seja o (ou se equivalha ao) cérebro. O personalista, aponta Bakhurst, entende que o cérebro permite a mente, mas não a constitui.

Cérebros em sala de aula
Imbuído de uma visão sócio-histórica da mente e do cérebro, compartilhada por seus conterrâneos (ainda que não contemporâneos) Lev Vygotsky e Alexander Luria, Ilyenkov estava especialmente preocupado com a influência do cerebrismo na educação. Via como um desastre a visão do processo educacional como uma forma de treinar cérebros, assim como a perspectiva de que a capacidade do cérebro de aprender estaria constrangida por fatores inatos/genéticos. De acordo com esta perspectiva, criticada por ele, se uma pessoa é inteligente ou talentosa isto se deveria ao tipo de cérebro que ela possui. Da mesma forma, se a pessoa falha no aprendizado isto se deveria a alguma falha inata ou genética. Para Ilyenkov, a verdadeira falha reside no processo educacional. Para ele, não há nada inato ou constitutivo que faça com que a criança aprenda ou tenha dificuldade para aprender. Segundo Bakhurst, “a capacidade da criança para aprender tem horizontes ilimitados”. Em função disso, se alguma coisa sai errada no processo de aprendizagem, deve-se estar atento às causas sociais mais do que para as biológicas de tal processo. 

Analisando a produção recente do campo da Neuroeducação, Bakhurst aponta para uma predominância da visão cerebrista, o que pode ser observado tanto pela recorrência de expressões que humanizam o cérebro, como “o cérebro aprende”, quanto pela disseminação do entendimento de que os problemas de aprendizagem se deveriam a falhas ou erros no funcionamento cerebral. O autor defende, no entanto, que mesmo que o personalismo seja verdadeiro e que os atributos psicológicos não estejam contidos no cérebro, as neurociências ainda sim poderiam ser relevantes para o campo educacional na medida em que estão aptas a explicar os processos cerebrais envolvidos ou correlacionados com a aprendizagem. O que não se poderia perder de vista, aponta, é que a educação é um esforço comunicativo e não um problema de engenharia. Isto significa que educar não é implantar informações ou habilidades nas cabeças das crianças, como sugere a ilustração de Côté e Villemard, mas uma atividade essencialmente comunicativa, um “encontro de mentes”.

Assim como Bakhurst, não negamos que as neurociências possam trazer valiosas informações para os educadores e para a educação. Entender o funcionamento do cérebro pode contribuir, juntamente com outras abordagens e visões, para uma compreensão ampliada e complexa dos processos relacionados com a aprendizagem – como, aliás, defende a importante publicação Como as pessoas aprendem, produzida pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos. Da mesma forma não negamos o papel do cérebro para a educação. Sem o cérebro, obviamente, não há aprendizado possível. Isto não significa, contudo, que este seja o único elemento ou ator em cena ou que a aprendizagem seja um processo realizado por um cérebro. Pelo contrário, concebemos o cérebro como mais um ator em jogo, um ator necessário certamente, mas não suficiente. Além disso, seguindo Ylenkov e Noe, concebemos o aprendizado como algo realizado pela pessoa e não por seu cérebro. As dificuldades de aprendizagem, da mesma forma, devem ser entendidas levando-se em consideração a pessoa como um todo em sua relação com o ambiente físico e social e não simplesmente como uma falha na maquinaria cerebral. Enfim, juntamente com autores da chamada Neurociência Crítica, defendemos uma visão do cérebro como um órgão embodied, embedded, enacted, extended affective, ou seja, como algo encarnado (em um corpo), inserido (em um meio), que ganha sentido pela ação no mundo, e que é afetivo. Por tudo isso, consideramos prudente permanecer entre os extremos do neuroceticismo e do neuroentusiasmo compreendendo que o campo neurocientífico, ainda que possa gerar conhecimentos relevantes para a Educação, não é capaz, sozinho, de explicar a aprendizagem e suas dificuldades e muito menos de resolver os inúmeros problemas e desafios do campo educacional.

Trecho retirado, com pequenas alterações, das Considerações Finais da minha dissertação, intitulada "O cérebro vai à escola": um estudo sobre a aproximação entre neurociências e Educação no Brasil (para ler na íntegra, clique aqui)
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