quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Sobre Psicologia, religião e outras misturas


Um dos principais argumentos utilizados pela "psicóloga cristã" em sua defesa - com razão, tenho que admitir - é que ela não é a única psicóloga que mistura psicologia e religião. Várias associações brasileiras estão aí para provar. Listo abaixo algumas delas:



Sobre esta problemática, o CFP divulgou, em Fevereiro deste ano, uma nota pública “de esclarecimento à sociedade e às(o) psicólogas(o) sobre Psicologia e religiosidade no exercício profissional” (leia na íntegra aqui). Logo no início, é dito que “não existe oposição entre Psicologia e religiosidade, pelo contrário, a Psicologia é uma ciência que reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. A relação dos indivíduos com o ‘sagrado’ pode ser analisada pela(o) psicóloga(o), nunca imposto por ela(e) às pessoas com os quais trabalha”.


Em outro trecho, o CFP afirma que, segundo o Código de Ética, os “serviços de Psicologia devem ser realizados com base em técnicas fundamentados na ciência psicológica e não em preceitos religiosos ou quaisquer outros alheios a esta profissão”. O documento finaliza com a seguinte afirmação: 

"A Psicologia como ciência e profissão pertence à sociedade tendo teorias, técnicas e metodologias pesquisadas, reconhecidas e validadas por instâncias oficiais do campo da pesquisa e da regulação pública que validam o conjunto de formulações do interesse da sociedade. Os princípios e conceitos que sustentam as práticas religiosas são de ordem pessoal e da esfera privada, e não estão regulamentadas como atribuições da Psicologia como ciência e profissão".


Tudo isto soa muito bonito na teoria: ciência é ciência e religião é religião; psicologia é ciência e, portanto, não pode se misturar com nenhuma religião ou misticismo; os psicólogos devem se utilizar somente de técnicas fundamentadas cientificamente e reconhecidas por instâncias oficiais. E zéfini! Mas será que, realmente, é assim que acontece? Primeira questão: será que a Psicologia é realmente uma ciência? É uma questão muito complexa mas, sob o risco de ser leviano e não entrando em pormenores teóricos, arrisco uma resposta: em grande parte não! Afinal, quem de fato faz ciência na Psicologia? Um psicólogo clínico atendendo em seu consultório é um cientista? Obviamente não. Ele pode até se embasar em estudos científicos, mas o atendimento em si não tem como ser científico. É uma relação humana individualizada e complexa, sujeita a diversos "viéses". Não há controle. É uma relação de ajuda, não de investigação científica. 

Neste sentido, levar a cabo o princípio da cientificidade na Psicologia, significaria excluir grande parte das teorias e atuações psicológicas. Afinal, a psicanálise, por exemplo, é uma ciência? Muitos psicanalistas afirmam categoricamente: não! Mas isso desmerece e tira toda a legitimidade das teorias e práticas psicanalíticas, amplamente disseminadas no Brasil? Claro que não. Enfim, se o CFP resolver cassar o registro profissional de todos os psicólogos que não praticam ciência, vai sobrar muito pouca gente. Mas também permitir que qualquer psicólogo diga ou faça qualquer coisa também não me parece correto. É preciso haver uma regulamentação.

E aí, chegamos em uma questão crucial: quais são, afinal, as tais "teorias, técnicas e metodologias, pesquisadas, reconhecidas e validadas", referidas na nota pública do CFP? Existe, por acaso, alguma resolução que liste ou indique quais "teorias, técnicas e metodologias" são permitidas de serem empregadas pelos psicólogos? Na contramão, existe alguma resolução que especifique quais "teorias, técnicas e metodologias" estão fora do âmbito da Psicologia e, portanto, caso sejam utilizadas, configurariam infração pelo psicólogo? Mais uma vez a resposta é negativa. 


Em 1994 o CRP-03, da Bahia, chegou a emitir uma resolução vetando ao psicólogo a publicidade de algumas práticas ditas "alternativas", tais como astrologia, numerologia, cristaloterapia, terapia energética, psicoterapia xamânica, psicoterapia esotérica, terapia da transmutação energética, terapia regressiva de vidas passadas, psicoterapia espiritual, terapia dos chacras, terapia dos mantras, terapia de meditação, psicoterapia do corpo astral e trabalho respiratório monhâmico (fonte). Interessante constatar que o que foi vedado foi a publicidade, não o emprego de tais práticas.

No ano seguinte, o CFP publicou a Resolução 016/95, que mantinha a orientação do CRP-03 e acrescentava outras práticas: tarologia; quiromancia; cromoterapia; florais; fotografia kirlian e programação neurolingüística. Posteriormente, a PNL foi retirada desta resolução, tornando-se uma prática "reconhecida". No entanto, pelo que pesquisei, tal resolução foi revogada. Desconheço os motivos. Em 2000, o CFP emitiu uma resolução autorizando e regulamentando o uso da hipnose como técnica complementar ao trabalho do psicólogo e, em 2002, foi a vez, da acupuntura. Desta forma, somente a hipnose e a acupuntura são regulamentadas pelo CFP como práticas complementares. Todas as outras técnicas "alternativas" não são, legalmente, nem permitidas nem proibidas. No entanto, existe um entendimento extra-regulamentar dos CRPs e do CFP sobre as terapias "alternativas" e sobre a "mistura" psicologia-religião: eles são contra! Não sabem muito bem porque, mas são contra mesmo assim. Só que, a despeito desta posição crítica dos conselhos, muitos e muitos psicólogos continuam a se utilizar de técnicas e abordagens místico-religiosas, alheios a toda esta discussão. 


Para finalizar este post, gostaria de citar aqui dois trechos da conclusão da tese de doutorado “As terapias alternativas no âmbito da Psicologia: conflitos e dilemas” (disponível aqui), defendida em 2010 pela minha amiga e ex-colega de trabalho, Rosana Cognalato no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

“Diante de toda essa diversidade que é a psicologia e diante da sua pretensa cientificidade, ela se apresenta como um território fértil para a utilização das ‘terapias alternativas’, o que deixa os Conselhos numa situação bastante desagradável, tendo em vista que a sua função é a de resguardar a identidade/especificidade e a dignidade legítima dessa profissão. É como se os Conselhos quisessem que a psicologia fosse o que ela ainda não é, mas precisa ser, para ser uma profissão séria, funcional e competente. O que traz a noção implícita de que seriedade e cientificidade são sinônimos, indissociáveis.

E conclui: "A relação da psicologia com as terapias alternativas, a partir da sua constituição enquanto 'ciência', de forma tão própria e tão especial, a tornou uma precursora, diante da sua atração pelo 'alternativo'. A cientificidade cambaleante da psicologia a coloca numa condição dubiamente conflitiva e confortável, a partir das indefinições que as terapias alternativas suscitam, e que estão mais explícitas na psicologia do que em qualquer outra ciência. Independente disso, todas elas 'misturam'. Nenhuma ciência é pura".


Update 08/08/12: No dia 7 de Agosto, o blog do jornalista Paulo Lopes, publicou a seguinte notícia: "CRP de Minas adverte grupo que mistura psicologia com religião" (leia aqui).O grupo em questão é o CPPC mencionado acima. Esta notícia só confirma o que eu disse: que o CFP e os CRPs não toleram misturas entre Psicologia e Religião. Se isto é bom ou ruim, cabe o debate...
Comentários
6 Comentários

6 comentários:

Marylu Braga disse...

Olá Felipe,
Tudo bem? Quero somente fazer um aparte. O CPPC não mistura psicologia com religião, não no contexto do atendimento, pois seria um completo absurdo. É só você clicar na figura do site que você colocou aqui, que você verá o posicionamento claro deles, logo na primeira página do CPPC. Dê uma olhada e depois comente, se quiser, ok?
Abraços

Felipe Stephan Lisboa disse...

Prezado anônimo, já li bastante sobre o CPPC e minha posição permanece. Se não há mistura então porque uma o CPPC promove palestras com temas como "a permanente articulação entre a teoria psicológica e a fé cristã"? Se não há mistura, porque criar uma associação de psicólogos e psiquiatras cristãos se já existem tantas associações cristãs, associações de psiquiatras e associações de psicólogos? Também não entendo a diferença entre articulação e mistura. Ok, o CPPC não mistura psicologia e religião nos atendimentos dos profissionais associados. Mas a "psicóloga cristã" está sendo julgada não por sua atuação nos atendimentos, mas por suas declarações públicas. Entenda q não condeno ninguém, apenas trago esta questão à tona. E mais: se vc ler o post todo perceberá q argumento q não há pureza possível na Psicologia, logo não condeno a mistura. Apenas problematizo-a. Um abraço

Marylu Braga disse...

Caro Felipe,
Infelizmente, não posso responder pelo CPPC porque não faço parte do mesmo, porém eu penso que a psicologia pode ser um instrumento de auxílio à igreja e creio que tenha sido nesse sentido e contexto que o CPPC foi criado. Essa é apenas minha opinião. Lendo a manifestação logo na capa, entendo que há uma crítica à "Psicologia Cristã".

Abraços

Anônimo disse...

Oi Felipe! estou totalmente de acordo com seu artigo, o CRP precisa passar por uma reformulação, se o objetivo da psicologia é tratar, levar alívio a dor do outro, que ignorância está fazendo ao excluir as terapias alternativas, os psicólogos não impõem tratamentos, se inscreve para um tratamento deste quem quer, quem se identifica e se sente bem com isso. Acho um retrocesso, uma nova inquisão com os psicólogos praticantes. O CRP deveria se reformular.

Unknown disse...

Adorei o post! Hoje na facul de psico que estou estudando, tive uma conversa com um senhor que me disse que ia à facul pra ter certificação de psicólogo. Eu lhe perguntei e como vc pretenderia ter uma abordagem e clinicar o cliente, por exemplo? Ele me disse que já tem um embasamento Cristão do evangelho e que seria Psicólogo Cristão. Eu internamente fiquei pasma, mas n falei nada pq não queria ser inconveniente, mal conheço o cara.
Mas daí eu vim procurar na net se isso realmente existe, e o pior que sim! Não pq é cristão ou pq eu sou contra, na vdd sou a favo de o sujeito procurar o seu bem, mas se quiser um psicólogo este, ao menos, deva ter um conhecimento das teorias psicológicas e não algo que misture tudo e coloque o indivíduo para fazer outra terapia que ele conseguiria fazer se procurasse em outros locais: Igrejas, templos, etc.
Não vejo as psicologias/abordagens terem nada a ver com religiões, a não ser o fato de procurar levar o bem-estar humano. Enfim, esse papo vai longe, né!! Obg pelo post!

Ramon Medeiros disse...

Cara, parabéns!!! Gostei demais desse post, pois desitifica muito sobre a superiordade do saber científico.