Ontem assisti à premiada peça "Ato de comunhão", baseada no famoso e bizarro caso do canibal alemão. Para quem não conhece ou não se lembra da história, segue um resumo (saiba mais aqui e aqui): desde pequeno, o alemão Armin Meiwes tinha o sonho se alimentar de carne humana. Adorava, inclusive a historia do João e Maria, em que a bruxa come o garoto. Por motivos óbvios, reprimiu este sonho... até a morte de sua mãe, quando resolveu, finalmente colocá-lo em prática. Com o nickname de "antropófago", procurou na internet, por dois anos, alguém que aceitasse lhe servir de alimento. E eis que, em 2001, o engenheiro de computação Bernd Brandes, à época com 42 anos, aceitou a oferta, afirmando: "Espero que me ache saboroso". Brandes vai, então à casa de Meiwes e, diante de uma câmera, declara ser o seu desejo ser comido por ele. Inicialmente, Meiwes corta o pênis de Brandes, frita-o, temperando-o com pimenta e alho, e ambos degustam o órgão. Meiwes, então, dá alguns medicamentos para Brandes e, após este apagar, retira-lhe as vísceras e os ossos e guarda sua carne picada no freezer, consumindo-a no decorrer de alguns meses.
Em uma famosa entrevista (que virou o livro "Entrevista com um canibal") Melves afirma: "Eu salguei o filé de Bernd com sal, pimenta, alho e noz-moscada. Comi ele com croquetes 'princesa', couve de Bruxelas e molho de pimentão verde". Segundo ele, ao comer sua carne, sempre acompanhada de um bom vinho, sentia Bernd incorporando-se ao seu corpo, num verdadeiro ato de comunhão: "A primeira mordida foi com certeza única, indefinível, já que eu tinha sonhado com isto durante trinta anos, com esta conexão íntima que se faria perfeita através desta carne".
Nesta mesma entrevista, Meiwes afirma ser uma pessoa normal. E, pelo que pesquisei, avaliações psiquiátricas e psicológicas chegaram a esta mesma conclusão. Segundo reportagem do jornal alemão Der Spiegel (traduzida aqui) "Um exame psiquiátrico feito antes do seu julgamento concluiu que ele não é louco, mas tem uma 'alma muito perturbada''. Assim, sendo considerado imputável, ou seja, responsável por seus atos, foi condenado à prisão perpétua. O caso gerou, entretanto, uma polêmica jurídica na Alemanha, já que defensores de Meiwes afirmaram que Bernd queria ser morto, o que não configuraria homicidio, mas sim uma espécie bizarra de suicídio. De acordo com este site, no segundo julgamento, Meiwes "disse ao juiz que sua fome de carne humana já estava saciada e que estava arrependido de seus atos". Tal argumento não convenceu o júri.
Apesar de se dizer normal, contraditoriamente, o próprio Meiwes afirmou que "se eu tivesse ido a um psiquiatra há alguns anos, provavelmente não teria feito o que fiz.”. Disse ainda: "Eu quero ir para a terapia, sei que preciso, e espero que isto aconteça em algum momento". A despeito de suas crenças sobre si mesmo, uma coisa é certa: o que ele fez não é normal, sob nenhum ponto de vista. O filósofo Georges Canguilhem dizia que a palavra normal traz implícitos dois significados: o primeiro aponta para aquilo que é comum. Sob esta perspectiva, a atitude de Meiwes, assim como a de Brandes, não tem nada de normal, afinal não é comum comer e ser comido - literalmente - por aí. Mas também é óbvio que os dois não são os únicos no mundo a partilharem deste mórbido fetiche. Segundo a reportagem do Der Spiegel, "a polícia estima que em torno de 10 mil pessoas, na Alemanha somente, partilham o fascínio de Meiwes pelo canibalismo". Tendo a Alemanha uma população de mais de 80 milhões de pessoas, nenhum malabarismo estatístico seria capaz de demostrar ser este um "fascínio" comum.
O segundo sentido atribuído por Canguilhem à palavra normal, é o de ideal, aquilo que deve ser. Sob este aspecto então, Meiwes não é, em absoluto, normal. Afinal, matar e comer pessoas (ou ser comido) não é algo bem visto, sequer tolerado, na nossa e em quase todas as sociedades. Mesmo em sociedades indígenas antropófagas, pelo que sei, comer um outro ser humano era muito mais parte de um ritual coletivo de incorporação do poder do inimigo do que uma atitude visando saciar um desejo individual, como fez Meiwes. Neste segundo sentido da palavra normal, portanto, não podemos considerar a atitude do canibal alemão, algo normal.
Alguns poderiam argumentar que pessoas normais fazem coisas anormais e este seria o caso de Meiwes. Ele seria uma pessoa normal, "em geral", mas que, "neste caso", tomou uma atitude anormal, mas isto não faria dele todo anormal. Ok, até aceito este argumento, desde que se defina o que é uma "pessoa normal" (e se puder, dê algum exemplo). Eu não sei o que é. Certamente é muito mais fácil dizer o que é anormal do que o que é normal. Assim como é mais fácil dizer o que é uma doença do que o que é saúde. É claro que se pode sempre definir uma coisa pela negação do seu contrário (saúde é ausência de doença e normalidade é ausência de anormalidade), só que essa conceituação circular não resolve o problema.
A questão central sobre este caso, na minha opinião, não é se Meiwes é normal ou não, mas se ele tem uma doença mental ou não. Porque dizer que ele é um doente significa desresponsabilizá-lo pelo que fez. É por este motivo que algumas pessoas e grupos defendem a retirada da pedofilia do DSM. Pois se o pedófilo é um doente, não deve ser punido, mas tratado. Na contramão, afirmam estes grupos, pedofilia é crime, não doença. Afinal, poderiam dizer, nem tudo que é anormal é necessariamente patológico. Mas o que é algo patológico? Para Canguilhem "patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada”. Segundo ele, não existirem fatos que sejam patológicos ou normais em si. O que é normal em uma situação pode ser patológico em outra. Sendo assim, é o próprio sujeito que define o que é ou não doença e se está ou não doente. A norma, para Canguilhem, é sempre individual. A doença não pode, portanto, ser definida por uma média estatística ou um por julgamento social, mas por um julgamento de valor realizado pelo próprio sujeito diante da polaridade dinâmica da vida. Segundo este critério, o ato canibalista de Meiwes não pode ser considerado patológico, afinal não lhe trouxe qualquer sofrimento. Pelo contrário, gerou-lhe prazer - e não seria incorreto dizer que gerou prazer inclusive em Brandes, que desejava ser comido (e este caso é exemplar ao expor a enorme variabilidade humana no que diz respeito ao que gera sofrimento e prazer).
Há, no entanto, um outro critério para definir o que é doença, que Canguilhem aponta mais tarde em sua obra, após ler Foucault, que é a normatividade social, ou seja, as normas estabelecidas pela sociedade. Afinal, são as sociedades que definem o que é normal e o que é patológico. Não há uma essência para o que é saudável e para o que á patológico. Um comportamento que hoje é entendido como patológico, amanhã pode deixar de ser, da mesma forma que coisas que hoje são vistas como doenças, no passado não o eram. Por exemplo, fumar era algo normal, corriqueiro e valorizado, enquanto hoje trata-se de um comportamento altamente indesejável e até mesmo estigmatizado; ser homossexual era uma doença, hoje não é mais, embora existam grupos que lutem por sua re-patologização. Tudo isto demostra que nenhum comportamento é, em si mesmo, normal ou patológico. Complicado, não?
E pra você, Meiwes (acima) tem ou não uma doença mental?