terça-feira, 16 de julho de 2024

Cinquenta tons de apatia: uma resenha do filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou"

Ann é uma mulher novaiorquina de trinta e poucos anos, que exerce um trabalho entendiante e que tem frequentes encontros de submissão voluntária com alguns homens, que ela chama de "mestres" - ela é, em suma, masoquista e adepta da prática BDSM. Pois esta é a sinopse do interessante e estranho filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou", escrito, dirigido, editado e protagonizado pela Joanna Arnow - e que acabou de estrear em alguns cinemas. O filme é composto por uma sucessão de de cenas curtas de Ann sozinha em casa ou então com seus pais, com seus (poucos) amigos, com seus colegas de trabalho e, especialmente, com seus "mestres" - e as melhores e mais engraçadas cenas do filme, sem dúvida, são estas (não é sem sentido, portanto, que ele venha sendo definido como uma "comédia BDSM"). Algo que me chamou muita atenção na narrativa é o enorme tédio/apatia que a Ann manifesta quase todo o tempo com relação à quase tudo - o que me remeteu à brutal indiferença do protagonista do livro "O estrangeiro", do Albert Camus.  "Aquela sensação", enfim, é uma obra muito peculiar sobre uma millenial tentando encontrar o seu lugar em um mundo que Bauman definiria como líquido. Esse filme, aliás, é - todo ele - muito baumaniano! Se tiver a possibilidade - e a mente aberta a experiências cinematográficas diferentes - não deixe de assistir a esse filme, que o jornal New York Times caracterizou de forma irônica e precisa como "cinquenta tons de apatia".

E agora uma pequena crônica sobre a sessão de cinema: Logo antes do filme "Aquela sensação" começar, foi exibido o trailer do documentário "Orlando: minha biografia política", dirigido pelo Paul Preciado - que eu estou louco para assistir, já que considero Preciado um dos grandes pensadores dos nossos tempos. Mas o ponto é que após o trailer de Orlando ser exibido, uma senhora que estava sozinha em uma poltrona logo atrás de mim comentou em voz alta - ela não chegou propriamente a gritar, mas falou alto o suficiente para que os outros dois espectadores que estavam na sala pudessem ouvir, eu incluído: "Que porcaria!". O que a incomodou provavelmente foi a profusão de pessoas trans e não-binárias que aparecem no trailer de Orlando. Mas daí o filme que viemos assistir começou e eu não consegui deixar de pensar o que ela estaria achando de um filme que inclui algumas dezenas de cenas da protagonista completamente nua se submetendo a um "mestre" - em uma das cenas, por exemplo, ela coloca um biquíni e um nariz de porco e se masturba seguindo as ordem de um homem. A senhora permaneceu todo o tempo em silêncio, mas assim que o filme terminou ela não se conteve e gritou "Que porcaria! Que filme nojento!". Me veio a vontade, na hora, de gritar pra ela "Vai assistir Brasil Paralelo, p@rra!" mas eu lembrei que jamais agiria dessa maneira e me contive. E ela continuou manifestando sua indignação descendo as escadas do cinema: "Que porcaria! Que porcaria!" Eu imagino que ela não estava se referindo à cena da fantasia de porco...

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