sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Novidades e controvérsias sobre a cirurgia de transplante de cabeça

PRÓLOGO - Lançado em 1962, o bizarro filme trash O cérebro que não queria morrer (no original The Brain That Wouldn't Die) conta a história do experiente e obsessivo cirurgião Bill Cortner que, paralelamente à sua atuação no hospital, realiza uma série de experiências secretas com transplantes de órgãos. Certo dia, passeando de carro com sua noiva Jan, eles sofrem um grave acidente. Cortner se salva sem muitos ferimentos mas sua noiva é consumida pelo fogo. Sem hesitar, ele pega a cabeça dela, que bizarramente parecia já estar solta de seu corpo, e leva para seu laboratório secreto. Lá ele coloca sua cabeça em uma bandeja e a conecta a uma série de tubos e fios, o que surpreendentemente faz com que Jan, ou melhor, sua cabeça, retorne à vida. No entanto, ao contrário do que sugere o título do filme em português, "o cérebro" de Jan quer morrer e repete insistentemente: "deixe-me morrer!" - na verdade, a expressão wouldn't die do título original aponta para a ideia de que o cérebro não deveria morrer e não que não queria morrer. De toda forma, Cortner não está disposto a deixar Jan morrer; pelo contrário, ele pretende encontrar um novo corpo para sua amada e transplantar sua cabeça nele. O sombrio assistente de Cortner, Kurt, não concorda todavia com este plano, como fica claro neste interessante diálogo entre os dois:

Dr. Cortner: Eu tive êxito com transplantes. Posso fazer isso com ela.
Kurt: Transplantá-la para que?
 - Eu a trouxe de volta. Viverá e arrumarei outro corpo. Posso torná-la completa novamente.
- Só um louco acreditaria que ela seria como antes.
- Não discuta comigo. Eu a amo demais para deixar que fique assim... Você verá!
- Não consegue perceber? Não consegue enxergar? Há um padrão para tudo o que vive. Uma ordem! Uma organização! Ela tinha um coração e um cérebro. O espírito estava em ambos e não em um ou em outro.
- Não! Eu lhe darei um cérebro e um coração.
- E quanto à alma dela? Você diz que a ama. Lembra do amor dela por você? Como pode torná-la uma experiência de horror?

Cortner opta por ignorar as preocupações de Kurt e dá início à busca por um novo corpo para Jan. Para tanto percorre sorrateiramente bordéis e agencias de modelos, em busca do "corpo perfeito" para ela - a ideia é sequestrar e matar uma bela mulher sem que ninguém perceba. Enquanto isso, Kurt e Jan conversam no laboratório. Em certo momento ela afirma: "Ele devia ter me deixado morrer. O odeio pelo que ele fez comigo. Se ao menos ele soubesse como é estar assim... Nada pode ser mais terrível que eu: uma cabeça sem um corpo". Mais adiante Jan, que é enfermeira, questiona o imaginado sucesso do procedimento de transplante de cabeça afirmando que "os tecidos do meu corpo rejeitariam os de outro. Rejeitariam como o corpo estranho que é. O transplante jamais daria certo". Kurt rebate: "Sim, mas a nova descoberta dele, esse novo soro, pode mudar tudo isso. O soro injetado na corrente sanguínea age nos tecidos linfóides, aqui no pescoço. Os linfóides produzem os anticorpos do sangue que detectam membros estranhos transplantados. Não tinha sido testado ainda". A ideia é que tal soro, criado por Cortner, seja usado no transplante de Jan assim como no de Kurt, que perdeu o braço esquerdo e teve um transplante malsucedido feito por Cortner. Pois bem, no fim das contas o cirurgião captura um corpo para Jan. Na verdade, ele consegue atrair para seu laboratório uma modelo que tem uma queimadura na lateral do rosto e deseja passar por uma cirurgia reparadora - temos, enfim, um encaixe perfeito: uma mulher que quer ter um outro rosto e uma mulher que precisa de um outro corpo. Cortner então dá uma substância entorpecente para esta mulher e ela desmaia. No entanto, logo antes de iniciar a cirurgia, uma criatura monstruosa que Cortner mantinha presa em seu laboratório, e na qual ele fazia inúmeras experiências malsucedidas de transplante, se solta, mata Cortner, bota fogo no local e salva a modelo (mas não a cabeça de Jan). O transplante de cabeça não pôde, enfim, ser realizado... nem na ficção e, até hoje, nem na vida real. Mas um cirurgião, visto por muitos como um "cientista maluco" - como o Dr. Cortner ou o Dr. Frankenstein - promete que este ano ocorrerá o primeiro transplante de cabeça da história. E é sobre isso que falarei a seguir...

Sérgio Canavero
Em um post de 2015 eu apresentei e discuti algumas dificuldades técnicas e implicações filosóficas da promessa feita pelo neurocirurgião italiano Sérgio Canavero de que este ano, 2017, será realizada a primeira cirurgia de transplante de cabeça - o paciente, inclusive, já foi escolhido. Valery Spiridonov, um programador russo que sofre de uma gravíssima doença muscular degenerativa chamada síndrome de Werdnig-Hoffman, terá sua cabeça cortada e transplantada em um outro corpo. Ao que tudo indica, a promessa ainda está de pé e pode ser que até o fim deste ano a cirurgia seja de fato realizada - se será bem sucedida é uma outra história... Pois bem, desde o primeiro anúncio em fevereiro de 2015 muitas águas rolaram e muitas controvérsias surgiram. Comecemos pelas novidades - ou supostas novidades, pois muitos estão céticos com relação aos resultados de alguns experimentos realizados por Canavero e seus colaboradores. A primeira novidade é a aproximação de Canavero com cirurgiões e pesquisadores chineses e sul-coreanos. Tal aproximação, além de juntar cirurgiões e pesquisadores que tem o mesmo propósito, pode ainda facilitar a concretização da cirurgia na China ou na Coréia do Sul, haja vista que na Europa uma série de entraves éticos pode dificultar sua concretização. A primeira parceria estabelecida por Canavero foi com Xiaoping Ren, um neurocirurgião chinês que já teria (repito: teria) realizado mais de mil transplantes de cabeça em ratos e até mesmo um transplante em um macaco - sobre essa última suposta cirurgia, Canavero comentou em um evento que após ter a cabeça cortada, resfriada a -15ºC e transplantada em outro corpo, o macaco teria sobrevivido "sem qualquer lesão neurológica" - e também sem  movimentos corporais, pois não houve a tentativa de fundir as medulas da cabeça e do novo corpo. A ideia era replicar o experimento realizado na década de 1970 pelo cirurgião norte-americano Robert White (veja aqui as imagens desta cirurgia) de forma a verificar se era possível manter a cabeça separada do corpo sem lesões cerebrais e com suprimento de sangue - o que, segundo eles, ocorreu. No entanto, o macaco teria sido mantido vivo por apenas 20 horas após o procedimento por "razões éticas" (?!?). Muitos cirurgiões e cientistas estão céticos com relação à realização e suposto sucesso desta cirurgia, pois Ren e Canavero não divulgaram nenhum video do procedimento e nenhum artigo foi publicado em um periódico científico detalhando a cirurgia; só o que temos é a palavra de Canavero e uma foto pós-cirúrgica do macaco - como bem apontou Arthur Caplan, fundador da Divisão de Bioética da Universidade de Nova York, isto "é ciência através de relações públicas"; e acrescentou: "somente quando isto for publicado em uma revista revisada por pares eu vou ficar interessado"

A "suposta" recuperação do cachorro
A segunda parceria estabelecida por Canavero foi com C-Yoon Kim, professor e pesquisador no Departamento de Biologia de Células-Tronco da Faculdade de Medicina da Universidade Konkuk, na Coréia do Sul. Juntamente com outros pesquisadores sul-coreanos, Kim publicou em Agosto de 2016 no periódico Surgical Neurology International, em um volume inteiramente editado por Canavero, dois artigos nos quais relata experiências com dano e reparação da medula espinhal em ratos e em um cachorro. Ambos experimentos foram conduzidos essencialmente da mesma forma: uma lesão cervical "quase completa", de 90%, teria sido feita na medula dos animais e então os pesquisadores aplicaram na área danificada uma substância denominada Texas-PEG, que é uma versão aprimorada do Polietilenogicol (PEG) - o nome Texas-PEG se deve ao fato de que os pesquisadores que a desenvolveram estarem ligados à Universidade de Rice, que fica no estado do Texas nos Estados Unidos. Esta substância estimularia a regeneração das células da medula, funcionando na prática como uma "cola" entre as duas extremidades - daí a expectativa de que ela seja uma peça chave na cirurgia de transplante de cabeça em humanos (o Texas-PEG é, para Canavero, uma espécie de versão 2.0 do "soro" mágico desenvolvido pelo Dr. Cortner). Nos videos divulgados destas experiências (que podem ser vistos aqui) é possível observar uma gradual recuperação dos animais ao longo das semanas. No caso dos ratos, a experiência foi feita com cinco animais, mas apenas um (aquele que aparece no video) teria sobrevivido e gradualmente voltado a andar após duas semanas. No caso do cachorro, um dia após a realização do dano medular, seu corpo permaneceu paralisado; no entanto, após 3 dias, um movimento mínimo foi detectado em seus membros; após duas semanas ele conseguiu se arrastar com ajuda das patas traseiras e após 3 semanas, finalmente, ele conseguiu andar. Jerry Silver, neurocientista da Universidade Case Western Reserve nos Estados Unidos, afirmou sobre estas duas experiências que elas não dão suporte para a replicação da técnica em  humanos. Disse ainda, sobre a segunda experiência, que "o cachorro é um relato de caso e você não aprende muito com apenas um único animal e sem que haja um grupo de controle. [Além disso] eles disseram que cortaram a medula espinhal em cerca de 90% mas não há nenhuma evidência disso no artigo, apenas algumas imagens grosseiras". Já o bioeticista Arthur Caplan, de forma ainda mais crítica, afirmou sobre os dois experimentos: "estes estudos os colocaria [Canavero e Cia]  três ou quatro anos até a reparação de uma medula espinhal em seres humanos, mas a sete ou oito anos de qualquer tentativa como um transplante de cabeça".

O sistema de realidade virtual
Além de críticas relativas à crueldade dos experimentos, os pesquisadores foram bastante questionados com relação ao suposto sucesso do procedimento já que no caso dos ratos, 4 dos 5 animais testados morreram. Desta forma, se não há até agora grande sucesso na recuperação de ratos (e ainda mais tendo em vista que o dano na medula não foi completo) será que é possível pensar já para este ano em uma cirurgia de transplante de cabeça com humanos? Talvez Canavero e seus colaboradores estejam, como diz o ditado, colocando o carro na frente dos bois. O cirurgião italiano, como já era de se esperar, não concorda com esta visão e afirma que tais experimentos, somados a outros que serão realizados ao longo deste ano com animais e também com cadáveres humanos, fornecerão o embasamento necessário para que a cirurgia aconteça até o Natal de 2017. Além disso, Canavero apresentou no ano passado duas novas tecnologias que poderão contribuir para o sucesso da empreitada. A primeira delas é uma "nanolâmina", ou seja, um dispositivo de corte para procedimentos delicados, que ele pretende utilizar durante a cirurgia. Em um evento científico realizado em 2016 nos Estados Unidos, o cirurgião exibiu slides com o projeto desta tal "nanolâmica" mas não apresentou nenhum objeto físico - o que deu ainda mais munição para seus críticos, que entendem que Canavero apresenta sempre muito mais do que possui. A outra tecnologia apresentada pelo italiano no final de 2016 foi um sistema de realidade virtual, desenvolvido pela empresa norte-americana Inventum Bioengineering Technologies, que teria como objetivo ajudar os sujeitos transplantados no processo de adaptação ao novo corpo. De acordo com o presidente da empresa, Alexander Pavlovcik, a ideia é "prevenir a ocorrência de reações psicológicas inesperadas". Segundo ele, "o paciente será imergido em experiências de realidade virtual que envolverão atividades que exigem o uso de movimentos corporais. Essas experiências são desenvolvidas em referência às técnicas utilizadas na neuro(re)habilitação convencional com o propósito de fornecer sensações mais realistas envolvidas nas funções motoras voluntárias. O paciente passará pelo treinamento de realidade virtual meses antes do início do procedimento com o objetivo de se preparar de modo adequado para a normalidade da vida em um novo corpo" - neste video é possível entender exatamente como funcionará esta tecnologia. 

Com relação às controvérsias, a mais bizarra delas foi a teoria de que toda esta história de transplante de cabeça não passaria de uma grande campanha de marketing de um novo jogo de video game chamado "Metal Gear Solid V: Phantom pain". Tal controvérsia teve início com a publicação de um video de divulgação do jogo, que mostrava um médico extremamente semelhante a Canavero (veja a imagem acima). Tanto a empresa Konami, produtora do jogo, quanto o próprio Canavero, negaram tal teoria, que se mostrou, como inúmeras outras teorias da conspiração, uma grande bobagem. A explicação da semelhança entre Canevero e o personagem do jogo é mais simples: o médico serviu de inspiração para o personagem. Nada mais e nada menos que isso. Mas existem outras controvérsias mais sérias e contundentes. Por exemplo, o bioeticista Arthur Caplan, que já mencionei acima, chamou Canavero de "charlatão" e afirmou que com toda essa promessa de transplante de cabeças ele está "vendendo falsas esperanças". Caplan ainda disse que Canavero deveria estudar a regeneração do nervo com o PEG em pessoas com lesão medular antes de tentar um transplante de cabeça. Segundo ele, "há centenas de milhares de pessoas que poderiam se beneficiar de algo que iria regenerar a medula espinhal. É como dizer que eu quero voar para a próxima galáxia, ao passo que seria bom criar primeiro uma colônia em Marte, e eu considero essas mesmas probabilidades", completou. Já Hunt Batjer, presidente eleito da Associação Americana de Cirurgiões Neurológicos, disse à CNN: "Eu não desejo isso a ninguém. Eu não permitiria que ninguém fizesse isso em mim, pois há muitas coisas piores do que a morte" - como Kurt afirma no filme, uma cirurgia como essa seria uma "experiência de horror". Finalmente, Wang Yifang, professor de Ética Médica na Universidade de Beijing, afirmou sobre a cirurgia: "é muito complicado. Você tem sua própria cabeça mas um outro corpo. Então quem é você?". E acrescentou: "mesmo que isso venha a ser possível, ao utilizar o corpo de um doador em apenas uma pessoa, cujos órgãos saudáveis podem ajudar várias outras, pode ser que isso não seja justo". Em geral a comunidade científica se divide entre duas categorias na avaliação que fazem de Canavero: uma parte considerável - eu arriscaria dizer majoritária - o considera uma espécie de Dr. Frankenstein picareta que busca apenas a fama disseminando falsas promessas; uma outra parte, em menor número, o considera um inovador, um sujeito disposto a tentar aquilo que muitos consideram impossível. Tendo em vista que no passado inúmeros cientistas se mostraram céticos com relação às cirurgias de transplante de coração, e mais recentemente, de transplante de rosto, é possível que os céticos (dentre os quais me incluo) se mostrem equivocados. Só o futuro dirá quem tem razão.

Observação 1: no Brasil, o site que vem realizando a melhor e mais completa cobertura das ações e promessas de Canavero e Cia Ltda é o Assombrado.com, que já publicou sete longos textos/reportagens sobre o assunto desde 2015. Para acessá-los clique nos números a seguir, relativos a cada um das publicações: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 #ficaadica

Observação 2: uma refilmagem do filme "O cérebro que queria morrer" já foi gravada e está em fase de pós-produção. A previsão de lançamento é para 2018. Veja fotos dos bastidores e informações detalhadas sobre a produção e o elenco  neste link. Abaixo, o cartaz do filme.

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