O trabalho do divulgador científico não é fácil. Para atingir o seu objetivo de transformar ou "traduzir" o conhecimento científico para não-especialistas, ele tem o grande desafio de ser simples sem ser simplista, de informar e encantar o leitor sem, contudo, reduzir a complexidade daquilo que comunica. Poucos possuem tal habilidade. De uma forma geral, o cientista detém grande conhecimento sobre seu objeto de estudo e escreve muito bem sobre ele para revistas e eventos científicos, que são lidos e vistos basicamente por outros cientistas, mas, frequentemente, eles demonstram grande dificuldade na comunicação com não-iniciados - e note bem que eu chamo tais pessoas de não-iniciados ou não-especialistas e não de "público leigo", haja vista que o conhecimento científico cada vez mais especializado faz com que mesmo dentro de uma pequena área do conhecimento cada pesquisador seja de alguma forma leigo nas demais subáreas (o que significa, em última instância, que todos, inclusive os cientistas, são leigos com relação à maioria dos assuntos, com exceção daquele que é especialista). Por outro lado, um divulgador que não é um cientista - por exemplo um jornalista científico - comumente acaba se comunicando de forma simplista e equivocada, exatamente por não compreender as complexidades do campo que pretende divulgar. Não é um desafio simples de ser vencido - e só o foi, de fato, por pouquíssimas pessoas.
Eu contaria nos dedos de uma mão os divulgadores científicos que conseguem encantar e despertar a curiosidade dos leitores e, ao mesmo tempo, trazer uma visão não-idealizada, contextualizada e até mesmo crítica da ciência - e nunca é demais lembrar que a crítica está (ou deveria estar) na base da produção e do conhecimento científicos. Divulgadores famosos como Carl Sagan, Richard Dawkins ou Stephen Hawking embora tenham sido bem sucedidos no encantamento de seus leitores, acabaram caindo numa visão excessivamente idealizada da ciência, entendendo a narrativa científica como superior a outras narrativas existentes, como a religiosa, a filosófica ou a artística - Dawkins e sua cruzada pró-ateísmo é um triste exemplo desta tendência. Infelizmente, poucos divulgadores escaparam e escapam deste modus operanti. Stephen Jay Gould, autor, dentre muitos outros, do magnífico livro A falsa medida do homem - um verdadeiro tratado contra o determinismo biológico - foi um deles. O brasileiro Marcelo Gleiser, autor do esplêndido A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido, é outro. O jornalista Sam Kean, autor do recém-lançado O duelo dos neurocirurgiões - E outras histórias de trauma, loucura e recuperação do cérebro humano (Zahar, 2016), de certa forma também compõe este seleto grupo de divulgadores que encantam o leitor e, ao mesmo tempo, contextualizam e expõem as controvérsias envolvidas na produção do conhecimento científico. Certamente, Kean ainda não atingiu o brilhantismo e a sensatez de Gould e de Gleiser, mas ele é jovem ainda e tem tudo para adentrar no panteão dos grandes divulgadores.
Kean, que também é autor das excelentes obras O polegar do violinista, sobre a história da genética, e A colher que desaparece, sobre a história da química, agora se debruça sobre as neurociências,
fazendo um rico e fascinante panorama histórico do campo, ao mesmo tempo
em que apresenta de uma maneira simples, mas sem ser simplista, o conhecimento atual sobre o funcionamento do cérebro. Na verdade, Kean não faz propriamente uma história das neurociências, haja vista que este campo foi criado somente na década de 1960 após a expressão "neurociências" ser cunhada pelo pesquisador norte-americano Francis O. Schmitt (personagem que curiosamente não está presente no livro); na verdade, Kean faz um apanhado de diversas histórias relativas aos estudos e reflexões sobre o cérebro desde o século XVI. O livro tem início com a interessante história que dá título à obra, uma curiosa situação desencadeada por um acidente sofrido pelo Rei Henrique II da França, que colocou em disputa dois importantes cirurgiões: Ambroise Paré, o cirurgião-real e Andreas Vesalius, famoso autor do pioneiro tratado de anatomia De Humani Corporis Fabrica. A partir daí, Kean retrata inúmeras outras histórias que envolvem desde cirurgiões e estudiosos do cérebro (alguns célebres como Paul Broca, Karl Wernicke, Santiago Ramon Y Cajal, Camilo Golgi, Paul Bach-y-Rita, Aleksandr Luria, Wilder Penfield, V.S. Ramachandran, Roger Sperry e Michael Gazzaniga, outros menos conhecidos como Brenda Milner, Edward Spitzka, David Hubel, Carleton Gajdusek, Eduard Hitzig e Gustav Fritsch) até pacientes com lesões cerebrais e/ou vitimas de estranhas síndromes (alguns "anônimos célebres" identificados pelas siglas H.M, C.K, S.M., W.J ou pelos apelidos Tan ou Lelo, outros simplesmente célebres como Phineas Cage, William Douglas ou Woodrow Wilson). O mais interessante é que Kean consegue conciliar a apresentação de casos menos famosos, como aquele que retrata a descoberta dos príons, com a exposição de detalhes pouco conhecidos de casos famosos, como o de Phineas Cage - sobre o qual o último capítulo do livro, denominado "O homem, o mito, a lenda", é dedicado.
E à medida que as histórias vão sendo contadas por Kean, vamos compreendendo como os conhecimentos que hoje possuímos foram construídos. Na história sobre a disputa entre Santiago Ramon Y Cajal e Camillo Golgi em torno da questão de se o sistema nervoso é formado por uma rede contínua (teoria reticular, defendida por Golgi) ou por neurônios individuais (teoria neuronal, defendida por Ramon Y Cajal), acabamos por descobrir como e porque a teoria defendida pelo pesquisador espanhol acabou prevalecendo; já na história sobre a disputa entre os "sopas", pesquisadores que defendiam que a conexão entre os neurônios seria química, e os "faíscas", que defendiam que tal conexão seria elétrica, acabamos por entender como foi o processo de descoberta das sinapses e dos neurotransmissores; finalmente, na história envolvendo os neuroanatomistas Paul Broca e Karl Wernicke podemos compreender como se iniciou a disputa, ainda não plenamente resolvida, entre os localizacionistas e os distribuicionistas, ou seja, entre os defensores da ideia de que cada área do cérebro é responsável por determinadas funções e aqueles que entendem que o cérebro funciona como um todo. Como já deve ter ficado claro por estes exemplos, a história das neurociências - assim como de qualquer outra área da ciência - é a história das disputas entre diferentes ideias. Por uma série de motivos, eventualmente determinadas ideias ou teorias acabam prevalecendo, mas isto não significa que elas sejam verdadeiras, apenas que resistiram às tentativas de refutação. A "verdade", nesse sentido, é aquilo que resiste ao tempo. Pode ser que no futuro, determinadas ideias que hoje julgamos verdadeiras, não resistam mais e acabem por sucumbir - da mesma forma como inúmeras ideias disseminadas e defendidas no passado. O livro de Kean, ainda que não trate propriamente destas questões, é um excelente lembrete de como a ciência é e sempre será um conhecimento provisório, exatamente por ser construída por pessoas reais em contextos históricos e sociais específicos. Como bem afirma o físico e divulgador científico Marcelo Gleiser no maravilhoso livro A ilha do conhecimento, "a versão da realidade que chamamos 'verdadeira' em determinado período da história não continuará a sê-lo na outra... O que chamamos de 'realidade' está sempre mudando".
Update 10/02/2016: existem pouquíssimas publicações no Brasil sobre a "história das neurociências". O único livro quase inteiramente dedicado a este tema que eu tenho conhecimento é o História e filosofia da neurociência (Ed. Liber Ars, 2015). Além disso, nos grandes manuais de neurociência comumente existe um capítulo ou uma seção dedicada à história da disciplina - caso, por exemplo, da obra Neurociência Cognitiva: a Biologia da mente, organizada pelo neurocientista Michael Gazzaniga, que possui um capítulo denominado Breve história da Neurociência Cognitiva (leia aqui). Mas, para além de livros, quem já tem uma considerável produção sobre a história das neurociências é o professor Renato Sabbatini, biomédico e coordenador da revista virtual de divulgação científica Cérebro&Mente - que possui uma série de artigos sobre a história dos estudos cerebrais (veja aqui). Sabbatini também é o responsável por um curso à distância denominado Curso de Introdução à História das Neurociências. Eu já fiz e recomendo. O material didático é excelente e a cada capítulo há uma aula em video do professor falando sobre o tema (veja aqui uma aula introdutória).
Sam Kean |
Update 10/02/2016: existem pouquíssimas publicações no Brasil sobre a "história das neurociências". O único livro quase inteiramente dedicado a este tema que eu tenho conhecimento é o História e filosofia da neurociência (Ed. Liber Ars, 2015). Além disso, nos grandes manuais de neurociência comumente existe um capítulo ou uma seção dedicada à história da disciplina - caso, por exemplo, da obra Neurociência Cognitiva: a Biologia da mente, organizada pelo neurocientista Michael Gazzaniga, que possui um capítulo denominado Breve história da Neurociência Cognitiva (leia aqui). Mas, para além de livros, quem já tem uma considerável produção sobre a história das neurociências é o professor Renato Sabbatini, biomédico e coordenador da revista virtual de divulgação científica Cérebro&Mente - que possui uma série de artigos sobre a história dos estudos cerebrais (veja aqui). Sabbatini também é o responsável por um curso à distância denominado Curso de Introdução à História das Neurociências. Eu já fiz e recomendo. O material didático é excelente e a cada capítulo há uma aula em video do professor falando sobre o tema (veja aqui uma aula introdutória).