sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Entre a fantasia e a realidade: sobre Extremis, Os capacetes Brancos e Black Mirror

Encarar a dura realidade de frente ou viver uma vida de fantasias? Este é um dos dilemas filosóficos mais antigos e persistentes vividos pelos seres humanos. Na grécia antiga, Platão já fazia este questionamento com sua Alegoria da Caverna. Milênios depois, a mesma questão - fantasia ou realidade? - é apresentada a Neo, protagonista do filme Matrix, que tem de escolher entre a pílula azul da fantasia e a pílula vermelha da realidade. Em ambos os casos, a realidade é apresentada como a melhor alternativa - ou pelo menos, como a alternativa necessária. No entanto, enquanto sociedade e também como individuos cotidianamente buscamos fantasias (a religião, a literatura, o cinema, as redes sociais, as drogas, a pornografia, etc) para fugirmos, pelo menos por um instante, da dura e opressora realidade. E sim, a realidade é dura. Se tiver estômago assista - ou pelo menos tente assistir - ao documentário em curta metragem Extremis, produzido pelo Netflix. São apenas 20 minutos de duração, mas acredite: este tempo lhe parecerá uma eternidade, pois o filme expõe tanto sofrimento e dor que eu cheguei a pausá-lo duas vezes para respirar. O filme retrata algumas pessoas em fase terminal em um hospital nos Estados Unidos e com isso acaba por jogar em nossa cara algo que tentamos a todo custo evitar pensar: que somos seres biológicos extremamente frágeis e que iremos um dia morrer, provavelmente depois de sofrermos um bocado (como bem afirma Irvin Yalom, encarar nossa finitude é tão difícil como encarar o sol de frente). Certamente, após assistirmos ao filme, muitos - eu inclusive - continuam a tentar jogar tais pensamentos para um lugar bem fundo de nossas mentes. Talvez seja melhor assim. Talvez esta estratégia, em parte consciente em parte inconsciente, seja a única forma de seguirmos adiante. Se pensássemos o tempo todo em nossa fragilidade e na inevitabilidade da morte talvez ficássemos tão paralisados que não conseguiríamos mais caminhar. Talvez.

Mas talvez passássemos a dar mais valor à vida e aos momentos bons - porque sim, a vida é dura mas não se resume à dureza. Tenho certeza que todos já vivemos momentos maravilhosos e profundos, belos e encantadores, intensos e inesquecíveis. Aliás, logo após assistir Extremis eu senti uma profunda gratidão com a vida  - sim, uma gratidão um tanto egoista (do tipo "tem gente sofrendo horrores por aí, mas eu estou bem") mas ainda sim uma gratidão com o fato de que a vida, ainda que inclua dor e sofrimento, não se resume a isso - nem a minha e nem a vida de todas aquelas pessoas do filme que, embora não tivessem mais propriamente uma vida naquele momento, certamente viveram no passado momentos de amor e alegria. Imagino que muitos daqueles médicos retratados no filme, que lidam diariamente com o sofrimento e a morte, sintam a mesma gratidão egoísta que eu senti. Talvez consigam transformar toda, ou pelo menos uma parte, da carga negativa a que estão expostos em algo positivo. Talvez consigam transformar dor em esperança - como fazem, aliás, os voluntários da Defesa Civil Síria, que prestam os primeiros socorros a vítimas dos bombardeios russos no país. Chamados de "Capacetes brancos" tais voluntários - belíssimamente retratados em um documentário de mesmo nome produzido pelo Netflix - são os primeiros a chegar quando um bombardeio acontece e eles tem a duríssima função de procurar e resgatar sobreviventes dos escombros, assim como recolher os corpos. Trata-se de um trabalho incrivelmente difícil, física e psicologicamente, e também extremamente perigoso - basta constatar que inúmeros capacetes brancos morrem todos os dias na Síria, vítimas dos mesmos bombardeios que matam as pessoas que eles tentam salvar. Era de se imaginar que por trabalharem em algo tão penoso e por lidaram cotidianamente com sofrimento e morte - assim como os médicos do filme Extremis - os capacetes brancos seriam pessoas amargas, pessimistas e desesperançosas. Mas na realidade parece ocorrer o oposto: ainda que vejam com muita tristeza a guerra em que estão imersos, eles parecem nutrir uma grande esperança no futuro e acreditam fortemente na importância do trabalho que executam - muitos inclusive aceitam a possibilidade de perderem própria vida para que outras sejam salvas. Enfim, estas pessoas, escolhem cotidianamente a pílula vermelha da dura realidade, pelo menos durante o período de trabalho - mas certamente devem ter os seus mecanismos de fuga, suas fantasias, suas ilusões, para que consigam suportar o cotidiano e seguir adiante.

Mas imagine só como seria viver 100% do tempo num maravilhoso mundo de fantasia, completamente desconectado da dura realidade. Você gostaria de viver neste mundo? Pois este é exatamente o mote do genial episódio San Junipero da fantástica série Black Mirror - na verdade quase todos os episódios da série giram em torno da questão "viver a realidade versus viver uma fantasia". Pois bem, neste episódio, a escolha dos personagens - se é que é possível falar em escolha neste caso - ocorre entre viver uma vida ilusória de eterna juventude, festas e azaração na maravilhosa e virtual cidade praieira de San Junipero ou encarar a dor, a solidão e a velhice em um asilo para idosos. Mas o episódio ainda coloca outra escolha a ser feita: morrer efetivamente e deixar com que a consciência se dissolva ou viver para todo o sempre em San Junipero - ou melhor, manter apenas a sua consciência, sem um cérebro e sem um corpo, em uma eterna vida virtual. À uma primeira vista trata-se de uma não-escolha, afinal quem escolheria a dor, o sofrimento e a velhice ao invés do prazer, da diversão e da juventude. Somente um louco o faria, você pode pensar. Mas como o episódio sugere, não se trata de uma escolha simples, por diversos motivos. Em primeiro lugar, neste paraíso virtual não estão muitas das pessoas que você ama ou amou durante a vida - pelo que pude captar, somente pessoas idosas tem acesso ao sistema. Em segundo lugar, as memórias de sua vida pregressa vão junto com você para San Junipero - se forem boas memórias, ótimo, mas e se você tiver muitas memórias ruins? Elas lhe acompanharão para todo o sempre. E finalmente, o mais complexo e aterrorizante de tudo isso é exatamente a eternidade. Ir para San Junipero é uma viagem sem volta. Depois que você optou por viver neste paraíso virtual não há como voltar atrás, não há como morrer ou se matar. Você passará toda a eternidade em uma infinita balada, com o "corpo" de uma pessoa jovem e a "mente" repleta de memórias de uma outra vida. Enfim, sob esta perspectiva, San Junipero não seria simplesmente um lugar de eterna liberdade, mas uma prisão. Uma prisão com prazer, diversão e juventude, mas ainda sim uma prisão. Este episódio me fez questionar de uma forma bastante profunda se a fantasia realmente nos salva da realidade. Se por um lado é possível pensar que sim, afinal muitas vezes recorremos a ela para fugirmos daquilo que dói ou incomoda, muitas e muitas vezes a fantasia se torna tão opressora quanto a realidade. Por vezes, ao buscarmos a liberdade acabamos em mais uma prisão.
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