quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Sobre exames objetivos para problemas subjetivos



Em Abril deste ano, o site da Superinteressante publicou a seguinte reportagem: "Cientistas criam exame de sangue para detectar depressão em jovens" (leia aqui). Segue um trecho:


Hoje, médicos e psiquiatras fazem o diagnóstico da depressão com base no relato dos pacientes sobre seus sintomas – o que é algo totalmente subjetivo, ainda mais porque às vezes a tristeza tem motivo (perda de um ente querido, fim de um casamento etc.) e nem sempre isso é levado em conta. Agora, pesquisadores da Northwestern University (EUA) desenvolveram uma opção que pode ser muito mais confiável: um exame de sangue capaz de diagnosticar a doença em adolescentes e diferenciar a depressão maior e a depressão maior combinada com ansiedade. O teste, desenvolvido ao longo de um período de mais de 10 anos, pôde identificar mais de 25 marcadores genéticos (mais precisamente, no RNA mensageiro) para a depressão com base em estudos com ratos gravemente deprimidos e ansiosos (pois é, os bichos também podem ter dessas). Estudos adicionais em seres humanos descobriram que muitos desses marcadores também são válidos para adolescentes humanos, e a combinação entre eles permitiu aos pesquisadores usarem o exame de sangue por si só para determinar com precisão quais dos voluntários estavam deprimidos e/ou ansiosos e quais estavam completamente sãos. Mas uma das autoras do estudo, a professora de psiquiatria Eva Redei, disse ao site FoxNews.com que o teste não deve eliminar as conversas entre o médico e o paciente para o diagnóstico. A ideia é servir apenas como um complemento. “O teste apenas ajuda a informar. Queremos dar aos pacientes deprimidos – e existem muitos – a mesma chance que nós estamos dando para quem sofre de diabetes, hipertensão e outras doenças para as quais existem exames”, explicou ela.

A despeito da descoberta de marcadores biológicos ser o sonho dourado da Psiquiatria moderna, não acredito que ela possa um dia vir à prescindir da subjetividade da clínica, se quiser continuar existindo. Afinal, a psiquiatria só existe ainda em função desta subjetividade. Historicamente, sempre que foram descobertos marcadores biológicos para problemas psiquiátricos, eles deixaram de pertencer ao escopo da Psiquiatria e migraram para outras especialidades, em especial a Neurologia. Ou seja, a Psiquiatria, como a Psicologia, só existe ainda em função desta "incômoda" subjetividade. Negá-la, buscando marcadores biológicos objetivos, é como dar um tiro no próprio pé. Na verdade, existem autores que afirmam que a Psiquiatria está com os dias contados. No futuro, dizem, existirão somente neurologistas e "neurocientistas clínicos". Afinal, se problemas "mentais" são, na verdade problemas "cerebrais", quem melhor do que neurologistas e neurocientistas para entendê-los e tratá-los? Desta forma, somente levando em conta esta subjetividade não objetificável - e, portanto, irredutível ao cérebro ou aos genes -, é que a Psiquiatria (do grego, "médico da alma"), poderá continuar existindo. De uma forma geral, minha visão sobre exames objetivos para diagnosticar problemas subjetivos é perfeitamente expressa por este cartum.
 Traduzido e adaptado por mim mesmo. O original pode ser visto aqui.
Comentários
3 Comentários

3 comentários:

Daniel F. Gontijo disse...

Creio que exames objetivos para "problemas subjetivos" podem ajudar bastante -- no diagnóstico, nas intervenções etc. Mas a "subjetividade" na clínica é a COMPREENSÃO do profissional (psiquiatra, psicólogo) acerca da perspectiva privada do cliente, ou dos estados e processos comumente chamados mentais (prazer, angústia, planejamento etc.). Meu amigo Daniel Grandinetti costuma dizer que eliminar a subjetividade implica em eliminar a compreensão do que acontece com os outros. A boa condução de um caso envolve tanto o levantamento de variáveis objetivas/ambientais (genes, acontecimentos etc.) que EXPLICAM certos fenômenos psicológicos/comportamentais como a consideração das variáveis subjetivas que conferem SENTIDO/COMPREENSÃO àqueles fenômenos. Se não estou enganado, a essa dualidade Jaspers denominou "teoria do aspecto dual" (que é diferente do "dualismo de substância"), e essa dualidade deveria ser contemplada pela atuação de todo psiquiatra -- e, como venho crendo, de todo psicólogo (embora eu não ache que os psicólogos precisem necessariamente entender de neurociência).

Um abraço!

Daniel Grandinetti disse...

Bem, se meu amigo Daniel Gontijo está reconhecendo que a investigação da subjetividade é que da sentido à análise das condições ambientais e do histórico das consequências de um comportamento, ele que se prepare para encontrar fortes resistências dentro do meio behaviorista, rss.

Eu acho que a questão da busca desses indicadores objetivos vai muito além. Há questões mais fundamentais por trás, como a da patologização da depressão. Pois, mesmo que a depressão seja considerada uma doença, é de comum acordo na Medicina que uma doença é a tentativa que o organismo faz de curar um distúrbio seu. E, na depressão, esse aspecto positivo jamais é contemplado. Os sintomas depressivos nunca são investigados e analisados como a tentativa de cura para um distúrbio existencial. Eles são simplesmente supressos e abafados, não apenas pela medicação, mas, inclusive, pelas psicoterapias mais comuns. E o pior de tudo é que os próprios deprimidos já assimilaram a cômoda posição de doentes. A depressão é a "doença do século", e hoje se faz necessária uma crítica sobre a história da depressão similar à crítica que Michel Foucault fez sobre a história da loucura.

Anônimo disse...

Como biólogo, neuropsicólogo e psicanalista clínico, trabalhando com neurociência e terapias integradas, posso afirmar que se deve olhar com saudável DESCONFIANÇA os modelos interpretativos da ciência, sejam eles subjetivos ou objetivos. O termo correto - e tão esquecido - é esse mesmo: modelos interpretativos. Sim, pois comportamentos e emoções são aspectos de alta subjetividade e complexidade e toda tentativa de explicá-los é, por si, necessariamente reducionista e meramente interpretativa. É da natureza da ciência querer reduzir ainda mais as questões complexas a modelos explicativos relativamente simples, e nisso envereda-se pela proposição de respostas que nada mais são do que um viés interpretativo para o fato em análise. Por exemplo, desde que se descobriu a neuroplasticidade, cientistas buscam alterações anatômicas no cérebro e usá-las como explicação causal para certos comportamentos; entretanto, esquecem-se (quando não deveriam) que o próprio comportamento pode alterar a anatomia cerebral, gerando interpretação contrária à tese do pesquisador. Em se tratando de genética, dá-se o mesmo: por exemplo, os "marcadores" podem muito bem ser causa ou produto (observe-se a diferença entre causa e produto) de um outro estado emocional/comportamento que não necessariamente a depressão, e esta poderia ser apenas um sintoma do agente causador ou mesmo do produto de tal agente. Tal fato iria mascarar o verdadeiro alvo da investigação, e conclusões como a de que um "marcador genético" seria evidência de depressão teriam sério risco de estarem equivocadas. Embora as correntes organicistas tenham seu papel importante como contra-ponto, conduzindo as interpretações a resultantes mais equilibradas e menos polarizadas, elas tendem, infelizmente, a patologizar excessivamente os comportamentos anômalos, desvirtuando as possibilidades de superação dos mesmos. O resultado esperado, é claro, é a simplória medicalização, o pior dos reducionismos...