sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Reavaliando a frenologia à luz do século XXI

Franz Joseph Gall apalpando o crânio de uma pessoa
Concebida pelo médico, anatomista e fisiologista alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), a frenologia foi uma teoria muito popular entre cientistas e leigos na primeira metade do século XIX. Sua principal intenção (da teoria e de Gall) era estabelecer ligações entre as funções ou faculdades mentais, as áreas cerebrais e a superfície do crânio. Tendo como ponto de partida sua enorme coleção de crânios, iniciada em 1792, Gall desenvolveu, ainda nesta década, uma técnica de medição sistemática das protuberâncias e reentrâncias do crânio - chamada por ele de cranioscopia - que serviu de base para o desenvolvimento da teoria frenológica. Batizada inicialmente por Gall de organologia e renomeada posteriormente de frenologia por seu assistente e mais famoso discípulo Johann Gaspar Spurzheim (1776 -1832), esta  teoria possuía cinco princípios fundamentais: 1) o cérebro é o órgão da mente; 2) a mente é composta por um grande número de funções ou "faculdades" inatas, sendo algumas intelectuais e outras afetivas; 3) cada faculdade possui sua própria região específica, ou "órgão", no córtex cerebral; 4) certas pessoas são mais dotadas do que outras de certas faculdades e, com isso, apresentam mais tecido cerebral nos locais correspondentes do que as menos dotadas; 5) como o formato do crânio reproduz a superfície do córtex, podemos inferir a intensidade de diversas faculdades do indivíduo analisando a parte externa do crânio. 

Mapa frenológico com 35 faculdades mentais
Ao longo de sua vida e obra, Gall identificou 27 faculdades mentais que teriam localizações precisas no córtex cerebral e, consequentemente, no crânio (veja abaixo) - posteriormente, esta lista foi aumentada por Spurzheim para 35, número comumente encontrado nos chamados mapas frenológicos (em outros é possível encontrar até 50). Tais faculdades, cabe reforçar, estariam espalhadas pelo córtex cerebral - isto é, pela "superfície" do cérebro - e transpareceriam também no crânio da pessoa. Um frenologista experiente, apalpando a cabeça do indivíduo, poderia identificar certas saliências e reentrâncias de seu crânio que revelariam sua dominância em certas faculdades mentais e sua deficiência em outras. Por mais estranho que isso possa parecer atualmente, esta curiosa técnica de investigação da personalidade se tornou extremamente popular no início dos anos 1800. Em pouco tempo se espalharam pela Europa e pelos Estados Unidos "consultórios frenológicos", que ofereciam "leituras" de crânio da mesma forma que ainda hoje quiromancistas oferecem "leituras" de mão. Como aponta Hugh Aldersey-Williams no livro Anatomias - Uma história cultural do corpo humano, no início do século XIX "sociedades frenológicas surgiram por toda parte. Virou moda fazer com que apalpassem nossas protuberâncias. Todas as farmácias vendiam bustos frenológicos. Começaram a se multiplicar periódicos científicos dedicados à frenologia, que tinham suas páginas cheias de análises detalhadas dos famosos e dos mal-afamados, com base em medições do crânio ou de moldes da cabeça". A parte mais complicada disso tudo era a crença de que o exame frenológico poderia ser usado não só para avaliar a personalidade e a inteligência da pessoa - e não coincidentemente, negros e mulheres eram considerados menos capazes do que homens brancos - mas também para definir sua profissão, a seleção em determinado trabalho e até mesmo a pessoa com quem deve ou não se casar - um uso semelhante ao que ainda ocorre, infelizmente, com a astrologia.

Em relativamente pouco tempo após ser concebida, esta teoria - apesar ou em função de sua popularidade e a despeito de toda a "parafernália" de ciência legítima (publicações, sociedades, conferências) - foi alvo de duras críticas por parte de muitos cientistas (e também de religiosos, em função de sua perspectiva essencialmente materialista) e acabou, ainda no século XIX, relegada ao lixo da história, passando a ser considerada uma pseudociência - e Gall, um charlatão. Muito embora as noções frenológicas de que o cérebro é a sede das faculdades mentais (materialismo) e de que as funções mentais estão, de alguma forma, relacionadas a áreas específicas do cérebro (localizacionismo) tenham prevalecido e ainda vigorem na neurociência contemporânea, a frenologia, sem dúvida alguma, foi abandonada - em especial a noção de que seria possível identificar as funções mentais dominantes do indivíduo pela análise das irregularidades de seu crânio. De toda forma, até bem recentemente a frenologia não tinha sido avaliada à luz das modernas técnicas de neuroimagem. Pois isso ocorreu somente no início do ano de 2018 com a publicação do importante artigo An empirical, 21st century evaluation of phrenology na prestigiosa revista Córtex. Neste artigo, os autores relatam os resultados de uma avaliação das principais hipóteses frenológicas realizada a partir dos dados disponibilizados pelo maior estudo de imagens corporais da atualidade, o UK Biobank Imaging Study, que pretende coletar informações detalhadas dos órgãos vitais de 100 mil pessoas - especificamente para esta análise eles levaram em conta dados e imagens cerebrais de 5724 sujeitos. Em síntese, o objetivo dos pesquisadores foi investigar, através de métodos científicos disponíveis no século XXI, as principais alegações feitas pelos frenologistas no século XIX. Como afirmam na introdução do artigo, "acreditamos que é importante que os cientistas testem idéias, mesmo que elas estejam fora de moda ou sejam ofensivas, e não se contentem em descartá-las de imediato". A primeira alegação investigada por eles é de que a "morfologia" (isto é, a forma) do crânio reflete a morfologia do cérebro da pessoa. Já a segunda alegação é de que as a superfície do crânio refletiria as faculdades mentais descritas por Gall. Cada uma destas alegações foi investigada de uma maneira.

Sem entrar nos complexos detalhes metodológicos, é possível dizer que a primeira alegação foi avaliada através de uma comparação entre os contornos da cabeça, do crânio e do cérebro dos sujeitos (veja imagem ao lado). E como já esperavam, os pesquisadores não encontraram qualquer correlação entre o formato do cérebro e o formato do crânio e da cabeça. A primeira alegação da frenologia se mostrou, deste modo, falsa. Agora analisemos a segunda, cuja avaliação foi bem mais complexa. Os pesquisadores agiram, neste caso, da seguinte forma: para avaliar a ideia de que a morfologia do crânio de alguma forma refletiria cada uma das 27 faculdades identificadas por Gall, eles primeiro "transformaram" tais faculdades em características que poderiam ser objetivamente avaliadas - e eles só conseguiram fazer isso com 23 das 27 faculdades. Por exemplo, a faculdade da "amorosidade" (que diz respeito ao impulso para a procriação) foi avaliada pela quantidade de parceiros sexuais que a pessoa já teve; já a faculdade da "filoprogenitalidade" (que diz respeito ao amor e cuidado parental) foi avaliada pela quantidade de filhos que a pessoa tem; muitas outras faculdades foram avaliadas levando-se em conta a profissão da pessoa -  imaginou-se, por exemplo, que cientistas teriam mais desenvolvida a faculdade da "destreza" ao passo que matemáticos teriam maior dominância na faculdade da "numerosidade". Certamente não é nada simples e exato transformar conceitos abstratos e pouco objetivos, como as faculdades identificadas por Gall há dois séculos, em características que pudessem ser avaliadas objetivamente; no entanto, não há uma maneira perfeita e infalível de se avaliar cientificamente tais faculdades. Escolhas precisam ser feitas e os pesquisadores, na minha visão, fizeram o melhor que puderam com os dados que tinham à disposição. Mas prossigamos: após avaliarem as pessoas de acordo com as faculdades identificadas por Gall eles analisaram se a proeminência em certas faculdades teria relação com certas protuberâncias em seus crânios, naquelas regiões específicas apontadas por Gall. Em resumo: o que eles fizeram foi verificar se, por exemplo, uma pessoa com dominância na faculdade de "numerosidade" teria alguma protuberância no crânio na área supostamente relacionada a esta faculdade. E eles não encontraram, novamente, qualquer correlação significativa. "Nenhuma região da cabeça se correlacionou com qualquer das faculdades que testamos", afirmaram. E isto significa, por sua vez, que a segunda alegação dos frenologistas também é falsa.  De uma forma suscinta os autores descreveram os resultados da pesquisa em uma única frase: "Não foram encontrados efeitos estatisticamente significativos para a análise frenológica". Enfim, este importante estudo coloca por terra algumas das principais alegações da teoria frenológica. Se ela não morreu totalmente no século XIX e conseguiu chegar, como um zumbi, no século XX (a Sociedade Frenológica Britânica, por exemplo, só foi encerrada no ano de 1967!) talvez, no século XXI, tenha chegado a hora de enterrar de uma vez por todas esta equivocada teoria. 

 
PÓS-ESCRITO: Em sua obra mais célebre, intitulada On the functions of the brain and of each of its parts [Sobre as funções do cérebro e de cada uma de suas partes, disponível na íntregra aqui], Gall identificou 27 faculdades mentais. São elas (e entre parênteses eu acrescento um sinônimo ou uma breve explicação, fornecidos por este artigo): 1) Amorosidade (impulso à procriação); 2) Filoprogenitalidade (amor parental); 3) Adesão (amizade, fidelidade); 4) Combatividade (disposição para auto-defesa); 5) Destrutividade (tendência ao assassinato e à alimentação carnívora); 6) Destreza (esperteza); 7) Aquisitividade (desejo de possuir coisas); 8) Auto-estima (orgulho, arrogância); 9) Necessidade de aprovação (ambição, vaidade); 10) Cautela (circunspecção); 11) Educabilidade (memória de coisas, fatos); 12) Localidade (senso de localização); 13) Memória de pessoas; 14) Memória de palavras; 15) Linguagem; 16) Coloração (sentido das cores); 17) Afinação (sensação dos sons, talento musical); 18) Numerosidade (habilidade para calcular e manipular números); 19) Construtividade (habilidade para construir); 20)  Comparação (habilidade para comparar); 21) Causalidade (sentido da metafísica); 22) Alegria (senso da graça); 23) Idealismo (talento poético); 24) Benevolência (senso moral, compaixão); 25) Mimetismo (talento para imitar); 26) Senso de Deus e religião; 27) Perseverança (firmeza de propósito, obstinação). Importante ressaltar que para Gall as primeiras 19 faculdades estariam presentes também, em alguma medida, nos animais; já as faculdades de 20 a 27 seriam exclusivas do ser humano.

PÓS-ESCRITO 2: Nesta fantástica cena do filme Django Livre, do diretor Quentin Tarantino, o fazendeiro escravagista Calvin Candle (Leonardo DiCaprio) explica e exemplifica os princípios da frenologia e demonstra como ela foi utilizada para justificar o racismo e a escravidão. Veja só!



Saiba mais no post Imagens da frenologia
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Raphael Martins disse...

Tem uma série no Amazon Prime Video que fala sobre isso. É muito interessante e ao mesmo tempo assustador!

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Sobre mim:
Jovem estudante entusiasta de Psicologia que sofre com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB). No meu blog você vai encontrar desde artigos técnicos informativos de Psicologia, Psicanálise e Saúde Mental, a também reflexões, desenhos e poemas de minha autoria.

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