Compartilho abaixo a tradução que fiz do excelente artigo Inside Out: a crash course in PhD philosophy of self that kids will get first, escrito pelo jornalista e filósofo britânico Julian Bagginie e publicado no jornal The Guardian em 27 de Julho de 2015.
Quando você vai assistir a um filme da Pixar, sabe que vai ver algo inteligente, engraçado e inventivo. O que você não espera, entretanto, é ver um tratamento extraordinariamente inteligente para uma das questões filosóficas mais complicadas e confusas de todas: o "eu" [no original: self].
Eu escrevi uma tese de doutorado sobre isso e posteriormente um livro [The ego trick: what does it mean to be you], e sempre que eu falo sobre essa questão, eu aponto que a teoria mais confiável e amplamente aceita (entre filósofos, pelo menos) é contraintuitiva e difícil de entender. E aí surge um desenho animado que torna os pontos-chave desta teoria inteligíveis para as crianças. Divertida Mente [no original Inside Out] virou meu mundo de cabeça para baixo.
O filme nos leva para dentro da mente de uma garota de 11 anos, Riley, onde cinco homúnculos - Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojo - estão literalmente pressionando todos os seus botões. A maioria dos analistas se concentrou em como esse dispositivo engenhoso ensina lições difíceis sobre maturidade emocional, especialmente sobre como você não pode ser feliz o tempo todo e sobre como a tristeza também tem seu papel a desempenhar.
Isso é verdade. Mas, embora de forma esquemática e simplificada, o filme também reflete sobre algumas das mais importantes verdades sobre o que significa ser uma pessoa individual.
A primeira delas é que não existe um "você" único e unificado. Seu cérebro não é um pequeno mundo cheio de criaturas antropomórficas, é claro. Mas é composto de vários impulsos diferentes, muitas vezes concorrentes. "Você" é simplesmente como tudo se junta, a soma de suas partes psíquicas.
Esta, no entanto, é apenas a primeira rachadura no mito do "eu" duradouro e unificado. O que o filme também mostra é que cada uma dessas partes é impermanente. A personalidade de Riley é representada por uma série de ilhas que refletem o que mais importa para ela: amizade, honestidade, família, bobeira e hockey. Mas, à medida que a vida se torna mais complexa, cada uma delas, por sua vez, ameaça desmoronar. E é assim que funciona no mundo real: à medida que crescemos e mudamos, e a vida cobra seu preço, algumas das coisas que mais importam para nós irão perdurar, outras irão desaparecer e novas irão surgir em seus lugares.
Tudo isto se soma à criação de uma imagem do "eu" como algo coerente a uma única narrativa, mas que não tem nada de permanente e imutável em seu núcleo. Estamos sempre em fluxo, sempre no processo de crescer a partir do que fomos para o que vamos ser.
Acho que a razão pela qual isso pôde ser transmitido em um filme infantil é que, em muitos aspectos, as crianças são mais receptivas a essa mensagem do que os adultos. As crianças mudam tão rapidamente que podem entender a idéia de impermanência mais facilmente do que os adultos, cuja autoconcepção muitas vezes ossifica. As crianças não têm problemas para imaginar que elas podem crescer para serem bem diferentes, ao passo que os adultos assumem que estão presos às pessoas que acabaram sendo.
Os melhores filmes infantis costumam ter um duplo propósito. Eles ajudam as crianças a desenvolver, mas também lembram os adultos do que perderam fazendo isso. Divertida Mente atinge de forma brilhante ambos os objetivos.
OBS: assista à palestra TED "Existe um verdadeiro você?", do autor deste artigo, clicando aqui.