Nas últimas semanas, diversos sites e jornais (ver, por exemplo, aqui, aqui e aqui) noticiaram que um estudo publicado na prestigiosa revista The Lancet Psychiatry teria provado que o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) seria, de fato, um transtorno cerebral e não "simplesmente" um transtorno do comportamento. Este estudo, realizado com um grande número de voluntários (mais de 3 mil pessoas de diversos países), teria mostrado que o cérebro de pessoas com TDAH seria "levemente menor" do que o de pessoas sem o transtorno, o que apontaria para a existência de "diferenças estruturais" que seriam responsáveis pelas diferenças comportamentais demonstradas pelos portadores do transtorno. A "diretora do estudo" Martine Hoogman, do Centro Médico da Universidade Radboud, na Holanda, disse, segundo o jornal O Globo, que "os resultados de nosso estudo confirmam que as pessoas com TDAH têm
diferenças na estrutura cerebral, o que sugere que o TDAH é um
transtorno no cérebro" - na verdade, como é possível ver nessa reportagem, Hoogman afirmou que o TDAH é um transtorno DO cérebro (disorder of the brain) e não que é um transtorno NO cérebro (esta distinção aparentemente insignificante, ignorada pelo jornal O Globo, faz toda a diferença na interpretação dos resultados). A pesquisadora disse ainda que espera que sua pesquisa "ajude a reduzir o estigma de que o TDAH é 'apenas um rótulo' para
crianças com dificuldades ou que é provocado por uma educação pobre". A ideia por trás desta fala é que um transtorno só pode ser real se for cerebral; se for "somente" um transtorno "mental" ou "comportamental" ele não passaria de um "rótulo". Um transtorno só é verdadeiro se envolver e afetar o cérebro. O pesquisador Eric Racine - como já apontei anteriormente - chama de "neurorealismo" justamente esta crença de que encontrar alterações cerebrais provaria a existência ou a realidade de determinados sentimentos ou transtornos.
Pois bem, o que os pesquisadores encontraram? De acordo com o artigo, o grupo experimental apresentou em média um volume intracraniano menor, assim como volumes menores em cinco das sete áreas analisadas: núcleo accumbens, amigdala, núcleo caudado, hipocampo e putâmen - já no globo pálido e no tálamo não foram encontradas diferenças significativas entre o grupo experimental e o grupo controle. Cabe apontar que estudos anteriores já haviam constatado uma redução dos volumes do núcleo caudado e do putâmen, mas este é o primeiro estudo a apontar também para pequenas reduções do núcleo accumbens, da amigdala e do hipocampo (áreas relacionadas, respectivamente, ao controle dos impulsos, à regulação das emoções e à memória, dentre outras funções). Uma análise específica da fase de vida dos voluntários indicou que as crianças com TDAH (menores de 15 anos), quando comparadas com aquelas sem o transtorno, possuiam menores volumes no núcleo accumbens, na amígdala, no núcleo caudado, no hipocampo, no putâmen e também no volume intracraniano - o que poderia apontar, segundo os autores, para um atraso na maturação cerebral devido ao TDAH. Já o volume do globo pálido e do tálamo não diferiu entre crianças com e sem o diagnóstico de TDAH. Entre os adolescentes (15 a 20 anos) foi encontrada uma redução apenas no hipocampo. Finalmente, dentre os adultos com e sem o diagnóstico de TDAH (maiores de 21 anos) não foi observada qualquer diferença significativa no volume das áreas específicas assim como no volume intracraniano total - tal efeito foi observado, repito, apenas nas crianças e, em pequena medida, nos adolescentes. Outro achado interessante foi que ao compararem os volumes daqueles que usam medicação psicoestimulante (como a Ritalina) com aqueles que não usam - e também com aqueles que nunca usaram - os pesquisadores não encontraram diferenças, o que sugere que as diferenças observadas entre as pessoas com TDAH e aquelas sem TDAH estão relacionadas ao transtorno em si, e não a um possível efeito do tratamento. Isto significa também que os remédios, ainda que possam contribuir para a redução de certos sintomas comportamentais, não teriam o poder de alterar a estrutura cerebral de seus usuários.
Na discussão dos resultados, os autores apontam para "inúmeras mensagens importantes" de seus achados para os profissionais que atuam na clínica, sendo a primeira e mais importante delas a confirmação de que os pacientes com TDAH "possuem cérebros alterados" o que significaria, em última instância, que "o TDAH é um transtorno do cérebro". Vejam bem que os autores se utilizam originalmente da expressão disorder of the brain, que literalmente significa "desordem do cérebro" mas que convencionalmente traduzimos por "transtorno do cérebro". Mas o que significa dizer que o TDAH é um transtorno do cérebro? E o que há (ou haveria) de novidade nesta afirmação? Sob uma certa perspectiva é um tanto óbvio dizer que o TDAH, a depressão ou a esquizofrenia são transtornos do cérebro. Tendo em vista que a mente depende da existência e do funcionamento do cérebro (mais do que, por exemplo, do fígado ou do pâncreas) e que todos os comportamentos e pensamentos humanos, inclusive aqueles associados a certos transtornos, afetam a estrutura e/ou o funcionamento cerebrais, isto significaria então que todos os transtornos mentais são, efetivamente, transtornos cerebrais. Isto significaria também que não há nada de novo ou surpreendente na afirmação de que o TDAH é um transtorno do cérebro. Muitos pesquisadores, inclusive, defendem o fim da separação entre a psiquiatria, dedicada aos transtornos "mentais", e a neurologia, voltada para as doenças "cerebrais" ou "neurológicas". Se tanto os transtornos mentais quanto as chamadas doenças neurológicas implicam em alterações estruturais e/ou funcionais no cérebro, então não faria sentido distinguir as duas áreas. Daí a proposição feita por alguns pesquisadores de fundir psiquiatria e neurologia em uma nova área, denominada por alguns de neuropsiquiatria e por outros de neurociência clínica.
Mas será realmente correto colocar o TDAH, o TOC e a depressão, por exemplo - que atualmente são considerados "transtornos mentais" - no mesmo pacote que doenças como o Alzheimer e o Parkinson? Não existiriam diferenças entre tais condições? Se sim, quais seriam as diferenças? Embora não hajam respostas conclusivas, muitas reflexões e estudos tem sido feitos sobre tais questões. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o Código Internacional de Doenças em vigor (o CID-10) separa claramente os "transtornos mentais e comportamentais" (capítulo 5), foco da psiquiatria, das "Doenças do sistema nervoso" (capítulo 6), foco da neurologia. Esta separação evidencia por sua vez outra importante distinção entre "doenças" e "transtornos". A diferença é que enquanto as doenças estariam associadas a certas alterações estruturais no corpo (e no cérebro) humano, os transtornos estariam relacionados a alterações no funcionamento, mas não na estrutura, do corpo, assim como à mudanças no comportamento e na relação do sujeito com o mundo. Esta diferença remete, de certa forma, às reflexões feitas na década de 1970 pelo (anti)psiquiatra Thomas Szasz, autor da clássica obra O mito da doença mental, segundo o qual as chamadas "doenças mentais" seriam mitos porque não possuiriam bases biológicas concretas - ao contrário de doenças "verdadeiras" como a diabetes e a tuberculose, por exemplo. Muito embora sua perspectiva não tenha prevalecido no campo psiquiátrico, suas reflexões contribuíram para o fortalecimento da distinção entre "transtornos mentais" e "doenças cerebrais".
Na discussão dos resultados, os autores apontam para "inúmeras mensagens importantes" de seus achados para os profissionais que atuam na clínica, sendo a primeira e mais importante delas a confirmação de que os pacientes com TDAH "possuem cérebros alterados" o que significaria, em última instância, que "o TDAH é um transtorno do cérebro". Vejam bem que os autores se utilizam originalmente da expressão disorder of the brain, que literalmente significa "desordem do cérebro" mas que convencionalmente traduzimos por "transtorno do cérebro". Mas o que significa dizer que o TDAH é um transtorno do cérebro? E o que há (ou haveria) de novidade nesta afirmação? Sob uma certa perspectiva é um tanto óbvio dizer que o TDAH, a depressão ou a esquizofrenia são transtornos do cérebro. Tendo em vista que a mente depende da existência e do funcionamento do cérebro (mais do que, por exemplo, do fígado ou do pâncreas) e que todos os comportamentos e pensamentos humanos, inclusive aqueles associados a certos transtornos, afetam a estrutura e/ou o funcionamento cerebrais, isto significaria então que todos os transtornos mentais são, efetivamente, transtornos cerebrais. Isto significaria também que não há nada de novo ou surpreendente na afirmação de que o TDAH é um transtorno do cérebro. Muitos pesquisadores, inclusive, defendem o fim da separação entre a psiquiatria, dedicada aos transtornos "mentais", e a neurologia, voltada para as doenças "cerebrais" ou "neurológicas". Se tanto os transtornos mentais quanto as chamadas doenças neurológicas implicam em alterações estruturais e/ou funcionais no cérebro, então não faria sentido distinguir as duas áreas. Daí a proposição feita por alguns pesquisadores de fundir psiquiatria e neurologia em uma nova área, denominada por alguns de neuropsiquiatria e por outros de neurociência clínica.
Mas será realmente correto colocar o TDAH, o TOC e a depressão, por exemplo - que atualmente são considerados "transtornos mentais" - no mesmo pacote que doenças como o Alzheimer e o Parkinson? Não existiriam diferenças entre tais condições? Se sim, quais seriam as diferenças? Embora não hajam respostas conclusivas, muitas reflexões e estudos tem sido feitos sobre tais questões. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o Código Internacional de Doenças em vigor (o CID-10) separa claramente os "transtornos mentais e comportamentais" (capítulo 5), foco da psiquiatria, das "Doenças do sistema nervoso" (capítulo 6), foco da neurologia. Esta separação evidencia por sua vez outra importante distinção entre "doenças" e "transtornos". A diferença é que enquanto as doenças estariam associadas a certas alterações estruturais no corpo (e no cérebro) humano, os transtornos estariam relacionados a alterações no funcionamento, mas não na estrutura, do corpo, assim como à mudanças no comportamento e na relação do sujeito com o mundo. Esta diferença remete, de certa forma, às reflexões feitas na década de 1970 pelo (anti)psiquiatra Thomas Szasz, autor da clássica obra O mito da doença mental, segundo o qual as chamadas "doenças mentais" seriam mitos porque não possuiriam bases biológicas concretas - ao contrário de doenças "verdadeiras" como a diabetes e a tuberculose, por exemplo. Muito embora sua perspectiva não tenha prevalecido no campo psiquiátrico, suas reflexões contribuíram para o fortalecimento da distinção entre "transtornos mentais" e "doenças cerebrais".
Mas voltemos ao estudo sobre o TDAH, que motivou este post. É possível dizer que ele comprova (ou, pelo menos confirma) ser o TDAH um transtorno cerebral? Em certa medida sim, pois o estudo aponta para algumas diferenças estruturais - e não somente funcionais - entre pessoas (especialmente crianças e adolescentes) diagnosticadas com TDAH e aquelas sem o diagnóstico. Por outro lado, o TDAH não afeta somente o cérebro, mas, efetivamente, a pessoa como um todo. A hiperatividade e a desatenção características do transtorno se manifestam não somente no cérebro mas também na mente (ou seja, na forma, como o sujeito percebe o mundo e a si mesmo) e no comportamento. Neste sentido, se o TDAH pode ser encarado como um transtorno cerebral ele também pode ser visto como um transtorno mental ou comportamental - tudo depende do seu foco específico da análise (se cerebral, mental ou comportamental). De toda forma, seria possível dizer que este estudo coloca um ponto final em toda a controvérsia relativa ao diagnóstico de TDAH (que eu já retratei em outros posts, por exemplo aqui, aqui e aqui)? De forma alguma! Isto porque um grande problema permanece: o diagnóstico. O que os pesquisadores encontraram foi que, em média, as pessoas diagnosticadas com TDAH possuem determinadas áreas do cérebro, assim como o cérebro como um todo, levemente reduzidos quando comparadas com pessoas sem o diagnóstico. Mas o diagnóstico foi feito previamente à realização dos exames de neuroimagem - e foi feito através de exames clínicos realizados por psiquiatras, que levaram em conta não a estrutura cerebral, mas os comportamentos, pensamentos e sentimentos das pessoas como um todo. E esta forma de exame dificilmente será substituída a curto prazo por um exame cerebral, como desejam muitos psiquiatras. Isto porque o que os pesquisadores encontraram foi uma redução média de determinadas regiões do cérebro - que não ocorreram necessariamente em todas as pessoas, mas na média de toda a população pesquisada. Isto significa que tentar diagnosticar as pessoas apenas observando e medindo seus cérebros ainda não é possível - e dificilmente o será no futuro, em função de uma significativa e persistente variação entre as pessoas (tanto cerebral quanto mental e comportamental).
Finalmente, o estudo não diz nada sobre as causas do TDAH - ou, de forma mais ampla, sobre as causas dos comportamentos hiperativos e desatentos. Ele apenas aponta para certas alterações cerebrais (ou correlatos neurais) e nada mais. Como bem afirmou Marcel Wortel, colaborador da pesquisa, "só encontramos as diferenças, não as causas destas diferenças ou os efeitos de um tratamento". Isto significa que embora seja correto dizer que o TDAH - assim como qualquer outro transtorno ou comportamento humano - possui uma base cerebral/biológica, não é correto dizer que o TDAH é um um transtorno biológico. Isto porque, para sê-lo, é necessário que se prove que sua causa é biológica - e isto não está de forma alguma provado. A origem dos comportamentos hiperativos e desatentos - que sob determinada ótica, podem ser vistos como sendo sintomas de um transtorno psiquiátrico - não está clara. Psiquiatras biológicos tendem a afirmar que a causa é genética e que a pessoa já nasce com TDAH. Outros pesquisadores apontam para possíveis causas ou influências psicológicas, familiares e mesmo sociais. Eu tendo a apostar numa explicação multicausal. Não consigo crer que apenas a biologia ou apenas a psicologia ou apenas a sociologia possam, sozinhas, dar conta de entender e explicar os comportamentos e problemas ou "transtornos" humanos. No caso específico do TDAH, penso - como já disse anteriormente - que se trata de um diagnóstico que se tornou real a partir do momento em que foi inventado. Não nego sua existência da mesma forma como não nego a existência do computador no qual escrevo este texto, que também é uma invenção. Da mesma forma, não questiono a existência de comportamentos hiperativos e desatentos. De fato, existem pessoas mais hiperativas e desatentas que outras. O que eu questiono, de fato, é a tentativa de colocar somente na conta da biologia - e mais especificamente, das neurociências -, a explicação para tais comportamentos. Ainda que o cérebro e o sistema nervoso como um todo tenham um papel neste grande teatro da vida, existem outros atores em cena, como a mente, o comportamento e a sociedade. Entender o TDAH ou qualquer outro transtorno ou comportamento humano como meramente cerebrais é se esquecer que o ser humano é mais do que apenas uma de suas partes.
Observação 1: uma questão que acabei esquecendo de comentar sobre o artigo é a enorme lista de conflito de interesses presente no final da publicação. Uma boa parte dos autores do artigo ou tem ou teve relação direta com a indústria farmacêutica. Só a título de exemplo, dêem uma olhada na declaração de interesse de um famoso pesquisador brasileiro, autor de inúmeros livros e artigos sobre o TDAH: "PM foi palestrante e atuou como consultor para a Janssen-Cilag, Novartis e Shire nos últimos 5 anos; também recebeu destas companhias subvenções para viagens para participar de encontros científicos. Seu programa ambulatorial de TDAH (Grupo de Estudos do Déficit de Atenção/Instituto de Psiquiatria), liderado por PM, também recebeu $uporte para pesquisa da Novartis e da Shire". Não por acaso, tais companhias produzem os remédios utilizados no tratamento do TDAH. Curioso isso, não?
Observação 2: algumas pessoas, especialmente aquelas diagnosticadas com TDAH e seus parentes, se enfurecem quando eu digo que o TDAH é uma invenção. Vejam bem, quando eu digo isto, eu quero dizer que o diagnóstico é uma invenção, não que os comportamentos desatentos e hiperativos são invenções das pessoas. De fato, o diagnóstico de TDAH passou a existir a partir de certo momento; anteriormente, existiam outros nomes para se referir aos comportamentos exageradamente hiperativos e desatentos (encefalite letárgica, dano cerebral mínimo, disfunção cerebral mínima, hipercinesia, etc); mais anteriormente ainda, não existia qualquer diagnóstico psiquiátrico relativo a tais comportamentos. Em certo momento - e eu diria especificamente, a partir do DSM-III, publicado em 1980 - a expressão Transtorno do Déficit de Atenção (com ou sem hiperatividade) passou a existir, o que significa que a partir deste momento histórico determinados comportamentos passaram a ser enxergados sob a ótica da patologia. É claro que previamente à existência do diagnóstico existiam pessoas com comportamentos desatentos e hiperativos, no entanto tais compotamentos não eram vistos como sendo sintomas de um transtorno mental. Em suma, quando eu me refiro à invenção do TDAH eu me refiro à invenção de uma categoria diagnóstica, não à invenção de determinados comportamentos. Algumas pessoas de fato sofrem devido à desatenção e à hiperatividade e em nenhum momento eu pretendi negar esta realidade. Que isto fique claro.