quinta-feira, 2 de março de 2017

Como os cientistas do cérebro se esqueceram que os cérebros têm donos

No dia 27 de Fevereiro, a revista The Atlantic publicou um interessante artigo escrito pelo jornalista científico Ed Yong denominado How brain scientists forgot that brains have owners, que eu traduzi e disponibilizo aos leitores deste blog.

Este é um bom momento para se interessar pelo cérebro. Neurocientistas podem agora ligar e desligar neurônios com apenas um flash de luz, permitindo-lhes manipular o comportamento dos animais com excepcional precisão. Eles podem tornar os cérebros transparentes e semeá-los com moléculas brilhantes para desvendar sua estrutura. Eles podem registrar a atividade de um grande número de neurônios ao mesmo tempo. E essas são apenas as ferramentas que existem atualmente. Em 2013, Barack Obama lançou a iniciativa Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies (BRAIN) [Pesquisas sobre o Cérebro por meio do Avanço de Neurotecnologias Inovadoras] - um plano de 115 milhões de dólares para desenvolver tecnologias ainda melhores para entender a enigmática bolha cinzenta situada dentro do nosso crânio.

John Krakauer, neurocientista do Hospital Johns Hopkins, foi convidado para reuniões da iniciativa BRAIN, e descreveu isto como se "a Malévola fosse convidada para o aniversário da Bela Adormecida". Isso porque ele e outros quatro amigos com pensamento semelhante se tornaram cada vez mais desencantados com a obsessão de seus colegas por seus brinquedos. E em um novo artigo que é parte tratado filosófico e parte um tiro de advertência [no original: a shot across the bow] eles argumentam que este fetiche tecnológico está deixando o campo neurocientífico desnorteado. "As pessoas pensam que tecnologia + megadados [Big Data] + aprendizado da máquina = ciência", afirma Krakauer, "Mas isso não é verdade".

Ele e seus rabugentos colegas argumentam que os cérebros são especiais por causa do comportamento que eles criam - que incluiem desde o ataque de um predador até o choro de um bebê.  Mas o estudo de tais comportamentos tem sido preterido ou estudado "quase como uma reflexão posterior". Em vez disso, os neurocientistas têm se concentrado em usar suas novas ferramentas para estudar neurônios individuais ou redes de neurônios. De acordo com Krakauer, a suposição não dita é que se reunirmos dados suficientes sobre as partes, o funcionamento do todo se tornará claro. Se entendermos completamente as moléculas que dançam através de uma sinapse, ou os pulsos elétricos que se aproximam ao longo de um neurônio, ou a rede de conexões formada por inúmeros neurônios, nós poderemos finalmente desvendar os mistérios da aprendizagem, da memória, da emoção e de tudo o mais. "A falácia é que mais do mesmo tipo de pesquisa irá transformar,  em um futuro infinitamente adiado, nosso conhecimento sobre porque a mãe chora ou porque eu me sinto deste jeito", diz Krakauer. E, como ele e seus colegas argumentam, isto não irá acontecer. 

Isso porque o comportamento é uma propriedade emergente - ele resulta de grandes grupos de neurônios trabalhando em conjunto, não sendo perceptível a partir do estudo de apenas um. Você pode estabelecer paralelos disto com um bando de pássaros. Biológos há muito se perguntam como eles conseguem se mover pelos céus em perfeita coordenação, como se fossem uma única entidade. Nos anos 80, cientistas da computação mostraram que isso pode acontecer se cada ave obedece determinadas regras simples, que dita a distância e o alinhamento em relação aos seus pares. Destas simples regras individuais, emerge a complexidade coletiva.

Mas você nunca teria sido capaz de prever a última a partir da primeira. Não importa o quão profundamente você tenha entendido a física das penas, você nunca poderia ter previsto a "revoada dos estorninhos" [no original: murmuration of starlings] sem primeiro vê-la acontecer. Assim acontece com o cérebro. Como o neurocientista britânico David Marr escreveu em 1982, "tentar entender a percepção entendendo neurônios é como tentar entender o voo de um pássaro estudando somente suas penas. Isto simplesmente não pode ser feito". 

Um importante estudo, publicado no ano passado, ilustrou lindamente este ponto de vista, usando jogos de vídeogame retrô. Eric Jonas e Konrad Kording examinaram, ao estilo dos neurocientistas, o microchip MOS 6502, que executava clássicos como Donkey Kong e Space Invaders. Usando abordagens comuns à ciência do cérebro, eles se perguntaram se poderiam redescobrir o que já sabiam sobre o chip - como seus transistores e portas lógicas processam informações e como executam jogos simples. E eles falharam completamente.

"O que nós extraímos foi incrivelmente superficial", Jonas me disse no ano passado. E "no mundo real, isso seria um conjunto de dados de milhões de dólares". Se o tipo de neurociência que passou a dominar o campo não pudesse explicar o funcionamento de um microchip simples e datado, como poderia esperar explicar o cérebro - supostamente o objeto mais complexo do universo?

A crítica não é pertinente neste caso, diz Rafael Yuste da Universidade de Columbia, que trabalha no desenvolvimento de novas ferramentas para o estudo do cérebro. Nós ainda não entendemos como o cérebro funciona, diz ele, "porque ainda ignoramos o meio termo entre neurônios e comportamento, que é a função dos grupos de neurônios - dos circuitos neurais". E isso é por causa das "algemas metodológicas [no original: methodological shackles] que tem impedido os pesquisadores de examinar a atividade do sistema nervoso como um todo. Isto é provavelmente tão inútil quanto assistir TV, examinando um único pixel de cada vez. Ao desenvolver melhores ferramentas que permitam ver os circuitos neurais inteiros em ação, programas como a Iniciativa BRAIN estão trabalhando contra o reducionismo e poderão nos levar mais perto de capturar as propriedades emergentes do cérebro.

Krakauer diz, no entanto, que este ponto de vista apenas substitui "neurônio" por "circuito neural" e comete o mesmo erro conceitual. "Será interessante ver as propriedades emergentes no nível do circuito, mas é uma falácia pensar que você se aproximará do organismo como um todo e que a compreensão virá automaticamente", ele diz.

Ele e seus colegas não estão descartando as tecnologias. Eles não são neuro-luditas [segundo o Dicionário Informal, "o ludismo foi um movimento contrário à mecanização do trabalho proporcionada pelo advento da Revolução Industrial. Adaptado aos dias de hoje, o termo ludita (do inglês luddite) identifica toda pessoa que se opõe à industrialização intensa ou a novas tecnologias"]. "Essas novas ferramentas são incríveis; eu as estou usando neste momento em meu laboratório", diz Asif Ghazanfar da Universidade de Princeton, que estuda a comunicação entre sagüis [no original: marmoset monkeys]. "Mas eu investi sete anos tentando entender primeiramente seu comportamento vocal. Agora eu tenho algumas ideias específicas sobre quais circuitos neurais podem estar envolvidos e eu vou projetar experimentos cuidadosos para testar estas ideias. Muitas vezes parece que as pessoas fazem o inverso: elas olham para a tecnologia e dizem: "Que perguntas posso fazer com isso?" e então se obtém esses resultados que você pode interpretar de maneiras vagas".

Este ponto é crucial. Ao contrário de outros que levantaram acusações de reducionismo contra a neurociência, Ghazanfar e seus colegas não são dualistas - eles não estão dizendo que existe uma mente separada do cérebro e que resiste à explicação. Eles estão dizendo que as explicações existem. A questão é que estamos procurando por elas de uma forma errada. Pior, estamos chegando a explicações erradas.

Considere os neurônios-espelho. Estas células, primeiramente descobertas em macacos, disparam da mesma forma quando um animal executa uma ação e quando vê outro indivíduo fazendo o mesmo. Para alguns cientistas, esses padrões de disparos compartilhados implicam em um certo entendimento: uma vez que o macaco sabe suas intenções, quando movimenta seu próprio corpo, baseado no disparo dos neurônios-espelho, ele deve ser capaz de inferir intenções semelhantes sobre quem ele assiste. E assim, esses neurônios foram compreendidos como a base da empatia, da linguagem , do autismo, do jazz e até mesmo da civilização humana - não por que acaso eles foram chamados de "o conceito mais bem-sucedido da neurociência".

Eis o problema: nos experimentos com macacos, os cientistas quase nunca verificam o comportamento dos animais para confirmar que eles realmente entenderam o que viram em seus pares. Como Krakauer e seus colegas escreveram, "Uma interpretação está sendo confundida com um resultado; isto é, que os neurônios-espelho entenderam o outro indivíduo". Como outros escreveram, existe pouca evidencia sólida para isto - ou mesmo para a existência de neurônios-espelho em humanos. Este é o tipo de armadilha lógica que você cai quando ignora o comportamento.

Em contrapartida, Krakauer aponta para seu próprio trabalho sobre a doença de Parkinson. Pessoas com esta doença tendem a se movimentar lentamente - um sintoma que tem sido relacionado à falta de dopamina. Aumente os níveis desta substância química e você pode acelerar os movimentos de uma pessoa. Isto pode levar a novos tratamentos, o que não é uma vitória insignificante. No entanto, isto não diz ao neurocientista porque ou como a perda de dopamina levou a determinado comportamento. 

Krakauer descobriu uma pista em 2007 ao pedir a pacientes com Parkinson que alcançassem objetos com velocidades variadas. Estes experimentos revelaram que eles são tão capazes de se mover rapidamente quanto pessoas saudáveis; eles estão simplesmente inconscientemente relutantes em fazê-lo. Isto sugeriu que os neurônios produtores de dopamina que conectam duas partes do cérebro - a substância negra e o estriado - determinam nossa motivação para o movimento. Diminua os níveis de dopamina e nós optamos por movimentos menos energéticos para uma determinada tarefa. Daí a lentidão. Experimentos posteriores com camundongos, nos quais técnicas modernas foram utilizadas para aumentar ou diminuir os níveis de dopamina, confirmaram essa ideia.

Existem muitos outros exemplos em que o comportamento ocorreu desta forma. Ao estudarem como as corujas escutam suas presas, os neurocientistas descobriram como seus cérebros - e posteriormente, os de mamíferos - localizam o som. Ao estudar como os sagüis chamam uns aos outros, Ghazanfar aprendeu mais sobre as regras que governam o turn-taking [expressão que pode ser traduzida por "tomada de vez" ou "tomada de palavra"] na conversação humana. Fundamentalmente, esses casos começaram estudando comportamentos que os animais fazem naturalmente, não aqueles que eles tinham sido treinados para realizar. Da mesma forma, morcegos, lesmas de mar e peixes elétricos nos ensinam muito sobre como os cérebros funcionam, porque cada um tem suas próprias habilidades especializadas. "Se você escolher uma espécie que faz um ou dois comportamentos super-bem, você pode identificar os circuitos subjacentes mais claramente", diz Ghazanfar. "Em vez disso, os ratos são tratados como se fossem mamíferos genéricos com versões menores dos cérebros humanos - e isso é um inaceitável".

"Estou entusiasmada por ver este artigo enfatizar a importância do estudo cuidadoso  do comportamento", diz Anne Churchland, que pesquisa a tomada de decisões no Cold Spring Harbor Laboratory. "Eu tenho visto na neurociência que o comportamento é muitas vezes tratado como uma reflexão posterior, sendo estudado com insuficiente compreensão da estratégia do animal". Mas ela acrescenta que tais estudos são árduos. É difícil conseguir que os animais se comportem naturalmente em um laboratório, porque talvez seja necessário recriar aspectos do seu mundo que não são óbvios para nós. 

Ghazanfar concorda. "Se o seu objetivo é entender o cérebro, você tem que entender o comportamento, e isso não é trivial. Eu acho que muitos neurocientistas pensam que é", diz ele. "Talvez uma maneira de avançar seja desenvolver ferramentas que ajudem a resolver a complexidade do comportamento", sugere Ed Boyden do MIT, que foi pioneiro em uma técnica inovadora chamada optogenética. "A investigação comportamental tem uma sólida tradição na neurociência e eu espero que ela cresça ainda mais forte". 

No momento, o problema é que está ficando cada vez mais difícil publicar esses estudos em periódicos de neurociência. Estudos comportamentais são rejeitados por "não terem 'neuro' o suficiente", diz Ghazanfar, e "é como se todo artigo precisasse ser um competição metodológica [no original: methodological decathlon] para ser considerado importante".

Marina Picciotto, da Universidade de Yale, que é editora-chefe do Journal of Neuroscience, diz que tudo se resume a como os estudos são enquadrados. Se eles estão apenas descrevendo um comportamento, eles provavelmente são mais apropriados para um jornal que, digamos, se foque na psicologia. Mas se os experimentos comportamentais explicitamente conduzem a hipóteses acerca dos circuitos cerebrais, ou algo desse tipo, eles são mais relevantes para o campo da neurociência. Mas "a linha que separa o comportamento 'puro' da neurociência é fluida", Picciotto  admite, e se coloca ao mesmo tempo como apreciadora do novo artigo e aberta a discussões sobre os assuntos que ele levanta.

Para Krakauer,  a atual forma de pensamento [na neurociência] degrada o trabalho comportamental, julgando-o valioso "contanto que nos diga onde colar os eletrodos". Mas este é importante em si mesmo. "Meu medo é que as pessoas digam: Sim, é claro, devemos continuar a fazer tudo o que temos feito, mas também realizar melhores estudos comportamentais. Eu estou tentando dizer: Você tem que estudar o comportamento primeiro. Você não pode pilotar o avião enquanto o constrói".  
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