A história que vou contar aconteceu no ano passado. Estava navegando pela internet quando me deparei com uma entrevista de um grande neurocientista brasileiro, que chamarei aqui de N. Vocês já devem ter ouvido falar de N., pois ele obteve, nos últimos anos, grande visibilidade, tendo inclusive protagonizado uma propaganda de uma marca de telefonia móvel. Quando um neurocientista vira garoto-propaganda do que quer que seja e se torna uma espécie de celebridade, passamos a ter uma noção exata da dimensão e popularidade que as ciências do cérebro adquiriram nos últimos anos. No entanto, a notoriedade de N. não veio à toa, pois suas pesquisas são realmente relevantes e podem contribuir para a superação, no futuro, de problemas que afetam hoje milhões de pessoas. Não tenho dúvidas de que suas pesquisas e a de outros neurocientistas são absolutamente fundamentais. O problema, na minha opinião, começa quando o pesquisador extrapola o conhecimento disponível e começa a querer explicar tudo pela neurociência - ou por qualquer outra visão de mundo. Num passado não tão distante isso ocorreu com a psicanálise: tudo no mundo podia ser explicado pelo inconsciente, pelo Complexo de Édipo e pela pulsão de morte. No entanto, as explicações psicanalíticas já não fazem tanto sucesso como antes. A bola da vez, na área psi, são as explicações neurocientíficas.
Pois bem, na referida entrevista, N. deu algumas declarações bastante polêmicas, afirmando, dentre outras coisas, que Jesus, Moisés e Abraão eram esquizofrênicos. Segundo ele, "a humanidade é dominada por três esquizofrênicos que ouviam vozes, olhavam para o céu e achavam que alguém estava falando com eles. Muito provavelmente os três precisavam de haldol". Assim que li isso, escrevi no Twitter: "Essa afirmação é completamente absurda! Reduzir a experiência religiosa a um transtorno mental é de um simplismo assustador!". Simplismo cometido outro dia mesmo por uma neurocientista inglesa que, questionada em um evento sobre o futuro das neurociências, respondeu que “uma das surpresas pode ser a de ver pessoas com certas crenças como pessoas que podem ser tratadas [clinicamente]". Disse ainda que "alguém que por exemplo, torna-se radical a uma ideologia de culto – nós podemos parar de ver isso como uma escolha pessoal resultado de puro livre-arbítrio e começar a tratá-lo como algum tipo de distúrbio mental". Segundo ela, isto "poderia ser uma coisa muito positiva, porque não há dúvida de que certas crenças em nossa sociedade trazem muitos danos". Assim que li esta notícia comentei na página deste blog no Facebook - e este comentário vale, de certa forma, para a fala de N.:
Que besteira isso! É claro que a religiosidade [ou o fanatismo religioso] poderia ser tratado(a) como doença mental, assim como qualquer outra coisa. Basta um grupo de especialistas conseguir convencer os responsáveis pelos manuais de doenças de que determinado comportamento é doentio que... tcharam... temos uma nova doença! Teoricamente qualquer questão humana pode ser encarada sob a ótica da doença: o amor, a raiva, o ciúme, o sexo, a alegria, a tristeza... e a religiosidade, por que não? Se quisermos entender o fundamentalismo religioso como uma forma de doença mental, nós podemos. Não há nada que impeça isso, afinal o que é ou não doença ou transtorno mental depende essencialmente de negociações e acordos entre especialistas e entre esses e a sociedade. Agora, imaginar que as pesquisas sobre o cérebro provarão que determinada questão é uma doença é de uma ingenuidade sem tamanho. As pesquisas sobre o cérebro não tem como provar que determinado comportamento, pensamento ou sentimento é ou não é uma doença. Isto é determinado anteriormente às pesquisas através, repito, de acordos e negociações. As imagens cerebrais não tem como mostrar que certa característica é ou não patológica, apenas que há uma correlação entre certos comportamentos, sentimentos e pensamentos e certas áreas do cérebro. De qualquer forma esta ideia da neurocientista de que "certas crenças" (quais?) podem ser consideradas patológicas e, portanto, devem ser tratadas (como?), aponta, mais uma vez, para um processo de medicalização de tudo o que incomoda. Concordo que certas formas de fundamentalismo religioso são de fato incômodas e mesmo danosas, mas será realmente o caso de considerá-las doenças? Neste sentido, como definir o ponto exato em que a religiosidade torna-se fundamentalismo? E mais: sendo doença, qual seria o tratamento? Por acaso existe algum remédio para tratar o fundamentalismo religioso? E o fundamentalismo secular (ou científico), também seria tratado? Essa neurocientista devia pensar um pouco antes de falar uma besteira como essa.
N. também. Mas a declaração de que Jesus, Moisés e Abraão eram esquizofrênicos, foi apenas uma das besteiras ditas por ele. Em outro momento da entrevista ele afirma: "acho que a religião faz parte do sistema nervoso" (percebam que ele não disse "religiosidade" ou "sentimento religioso", e sim religião - mas pelo menos ele teve uma mínima humildade de dizer "acho"). Mais a frente na entrevista, falando sobre os comportamentos humanos em geral, N. afirmou que "no frigir dos ovos, tudo se resume a uma mudança de balanço de neurotransmissor e de atividade elétrica do cérebro". Leiam bem: Tudo! Em seu livro, N. deixa bem claro o que entende por "tudo". Percebam o reducionismo de sua visão:
"... essas redes neuronais microscópicas são na verdade as únicas responsáveis pela geração de cada ato de pensamento, criação, destruição, descoberta, ocultação, comunicação, conquista, sedução, rendição, amor, ódio, felicidade, tristeza, solidariedade, egoísmo, introspecção e exultação jamais penetrado por todo e qualquer um de nós, nossos ancestrais e progênie, ao longo de toda a existência da humanidade"
Considerei na época - e ainda considero - as afirmações de N. absolutamente equivocadas e escrevi uma série de tweets criticando-as. Outros colegas do Twitter começaram, então, a opinar sobre minhas críticas e, assim, iniciamos um debate virtual sobre a polêmica entrevista. Alguns se posicionaram a favor do N. e outros contra e, em pouco tempo, finalizamos este interessante debate de idéias. No dia seguinte, abro minha conta do Twitter e qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o próprio N. se encrencou comigo, em função das críticas que fiz no dia anterior. O cara ficou super-ofendido embora minhas críticas não tenham sido nunca pessoais, mas filosóficas. A primeira mensagem dele pra mim foi a seguinte:
Vamos analisar seu tweet. Primeiro ele usa um argumento de autoridade ("tenho 30 anos de carreira"), me chama de "filho" - como se dissesse, "esse Felipe é tão novinho, não sabe das coisas" (e não sei muitas coisas mesmo!) - para, ao final, me solicitar dados. Como assim dados? Quais dados? Dados que provem que Jesus, Moisés e Abraão NÃO eram esquizofrênicos? E a qual ou quais tipos de dados ele se refere? Dados neurocientíficos? Mas eu não sou neurocientista! Então somente um neurocientista para criticar outro neurocientista? Não, não tenho dados, na maneira como ele espera. Não tenho dados "científicos", dados sobre o cérebro. Minha questão é filosófica: será que podemos reduzir tudo ao cérebro? E é exatamente esta visão que permeia seu trabalho, embora ele não se dê conta. Na verdade, esta é minha opinião, só isso, opinião construída a partir da leitura do seu único livro e de declarações dadas por ele na imprensa. Sobre a entrevista que gerou todo o debate, questiono: será que ele tem dados que provem que Jesus, Moisés e Abraão ERAM esquizofrênicos? Gostaria de saber a partir de que dados científicos ele deu esta declaração. Como seria possível provar cientificamente isso? Se ele me solicita dados, eu também solicito a ele.
Com um colega do Twitter e participante do debate sobre a entrevista, N. foi ainda mais ríspido: "E qual é a sua formação em neurociência para falar tanto absurdo? Qual livro texto vc leu meu filho? Falar por falar é fácil d+!". A indicação de que somente alguém com formação em neurociência pode criticar suas idéias permanece. Mas peraí: ele deu esta última entrevista para uma revista "popular", não para uma revista científica. E ele vem realizando, junto com outros neurocientistas, um trabalho de popularização/divulgação das neurociências para o público leigo. Seu livro tem este objetivo claro . Não é um livro voltado somente para neurocientistas - tanto que se tornou um best-seller. Assim, se ele espera críticas somente de iniciados na área, isto significa então que ele espera somente elogios de todo o resto das pessoas? Não, não sou neurocientista. Mas venho estudando alguns autores com posturas filosóficas críticas à certos discursos neurocientíficos. É a partir daí que fiz algumas considerações. N., dirigindo-se a mim, escreveu ainda:
Minha resposta foi sucinta, pois não pretendia iniciar um confronto direto. Meu objetivo com os tweets foi somente debater ideias. Disse apenas: "Caro N., não tenho dados nem 30 anos de carreira. Só acho que se o Sr. dá uma entrevista para uma revista, fica sujeito a críticas". Até certo ponto fiquei orgulhoso pelas minhas considerações terem surtido este efeito. De certa forma, e sem ter a intenção, o incomodei. E se o incomodei é porque toquei em questões importantes. Mas talvez não tenha o incomodado, apenas a seu cérebro...