Reproduzo abaixo, com a devida autorização do autor, uma didática e bem fundamentada exposição sobre o impacto de uma possível aprovação do projeto do Ato Médico na categoria dos psicólogos. Para quem não sabe, na última semana, o projeto foi aprovado no plenário do Senado Federal, necessitando agora, para ser instituído, apenas da sanção da presidenta Dilma. Escrito pelo psicólogo Daniel Grandinetti (que já contribuiu com este blog anteriormente), o texto expõe e discute em detalhes os principais pontos do projeto que afetariam diretamente o campo da Psicologia no Brasil. Para quem quiser ler outros textos do Daniel, que é psicólogo e mestre em filosofia, recomendo fortemente sua página no Facebook, a Psicologia no Cotidiano. Boa leitura e boas reflexões!
Vou tentar expor de forma didática como o “ato médico” interfere no exercício da profissão de psicólogo e nas competências legais do Conselho Federal de Psicologia.
A principal polêmica em torno do ‘ato médico’ gira em torno do Art. 4º - I que diz o seguinte:
“Art. 4º - São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica".
O § 1º define o diagnóstico nosológico:
“§ 1º Diagnóstico nosológico privativo do médico, para os efeitos desta Lei, restringe-se à determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo 2 (dois) dos seguintes critérios:
I – agente etiológico reconhecido;
II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.”
Enfim, § 3º estabelece que “doença” é tudo que aparece listado e classificado no CID-10:
“§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na décima revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde".
Em que isso interfere no exercício da profissão de psicólogo? O diagnóstico psicopatológico, incluindo a depressão e os transtornos de ansiedade, sempre esteve incluído na prática do diagnóstico psicológico. Com a aprovação do “ato médico”, tanto o diagnóstico quanto a prescrição terapêutica das enfermidades psicopatológicas passam a ser privativas de médico. Isso retira dos psicólogos, por exemplo, a autonomia para diagnosticar a depressão e tratá-la com psicoterapia. Somente o médico está agora legalmente habilitado para diagnosticar depressão e indicar o tratamento a ela.
O que vem gerando incerteza nessa interpretação é o § 2º, que diz o seguinte:
“§ 2º Não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.”
Nesse parágrafo, o “ato médico” expressa o reconhecimento do diagnóstico psicológico e a competência do psicólogo para realizá-lo. Esse parágrafo vem sendo usado, inclusive, por alguns psicólogos na defesa do “ato médico”, argumentando que ele preserva a profissão do psicólogo e não a invade em nada. Entretanto, a regulamentação da Psicologia não define, em momento algum, o que vem a ser o diagnóstico psicológico. A inclusão do diagnóstico psicopatológico no diagnóstico psicológico sempre foi prática, jamais sendo formalizada. O CFP não tomou o cuidado de definir em lei o diagnóstico psicológico, como muito bem fizeram os proponentes do “ato médico” em relação ao diagnóstico nosológico. Assim, uma vez que o diagnóstico nosológico é agora privativo de médicos, ele passa a ser automaticamente excluído do diagnóstico psicológico, não importando se a prática do psicólogo, desde sua regulamentação, sempre tenha feito do diagnóstico psicopatológico um item do diagnóstico psicológico.
Qual a sugestão do Conselho Federal de Psicologia à redação do “ato médico”? O CFP sugeriu que a redação do Art. 4º fosse modificada de:
“São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;”
Para:
“São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico médico e respectiva prescrição terapêutica;”
O que mudaria com essa reformulação?
A avaliação de personalidade, por exemplo, não é privativa de psicólogos. O que é privativo de psicólogos é a avaliação de personalidade executada via testes psicológicos. A avaliação de personalidade executada por testes psicológicos constitui ‘diagnóstico psicológico’ e é privativa de psicólogos. Qualquer avaliação de personalidade executada por instrumentos ou procedimentos que não exijam a formação plena em Psicologia não é privativa de psicólogos. O CFP entende que o que deve ser privativo de médicos não é o diagnóstico de doenças, mas o diagnóstico de doenças executado por instrumentos e procedimentos médicos que exijam a plena formação no curso de Medicina. Qualquer diagnóstico executado por instrumentos e procedimentos não-médicos não deve ser privativo de médico.
Em suma, o que deve ser privativo de médicos é o uso do saber teórico e prático constituído pela Medicina e que faz necessária a formação completa em Medicina. Mas, ao invés de tornar o saber e a prática médicas privativos de médicos, o “ato médico” torna privativo de médicos as próprias doenças enquanto objeto de estudo. Segundo o “ato médico”, ninguém mais pode se pronunciar sobre ou exercer qualquer prática ligada a doenças além dos médicos, mesmo que os procedimentos utilizados não sejam médicos. Nesse sentido, um místico que oferecesse “curas espirituais” estaria sujeito, a partir de agora, a ser processado por exercício ilegal de Medicina. A primeira questão que eu coloco é a seguinte: Como uma pessoa que não se apresenta ao paciente como médico e que não faz uso de qualquer procedimento médico pode ser acusado de praticar a Medicina ilegalmente?
Voltando à relação com a Psicologia: Segundo o CFP, instrumentos e procedimentos psicológicos habilitam o profissional psicólogo no diagnóstico psicopatológico. Assim, na medida em que os psicólogos se utilizem apenas deles, eles estariam praticando o diagnóstico psicopatológico que consta como diagnóstico psicológico, não como diagnóstico médico. Mas, o CFM discorda que instrumentos e procedimentos psicológicos sejam procedentes para o diagnóstico psicopatológico. E ele tem todo o direito de discordar! Vivemos numa democracia, e todos têm o direito de criticar o que bem entender. Entretanto, a única entidade legalmente estabelecida para decidir sobre a procedência de procedimentos psicológicos é o CFP. Se o CFP afirma que procedimentos psicológicos são procedentes no diagnóstico psicopatológico, o CFM tem que acatar. Pode criticar e debater, mas precisa acatar.
Semelhantemente, a classe médica tem todo o direito de se posicionar contrariamente às curas espirituais ou alternativas. Mas, não tem o direito de transformá-las em exercício ilegal de Medicina, uma vez que não há nada nelas que configure algum procedimento médico lecionado nas faculdades de Medicina. É preciso que as práticas alternativas sejam debatidas e combatidas por meios democráticos, não pela imposição de uma lei incoerente.
Com o “ato médico”, a classe médica se outorgou o direito de avaliar procedimentos psicológicos e decretar sua improcedência. Ela pode argumentar que em momento algum o diagnóstico psicopatológico esteve legalmente incluído na definição de diagnóstico psicológico, e ela está certa nesse ponto. E justamente nesse ponto se faz perceber toda a MÁ-FÉ deste projeto de lei como um todo. Uma vez que o CFP não teve o cuidado de definir o diagnóstico psicológico na regulamentação da Psicologia, o CFM tomou para si o direito de lhe estabelecer os limites e as definições que bem entender.
Nesse sentido, pelo uso da má-fé jurídica, o CFM invadiu as competências legais do CFP.
Além de conferir aos médicos a exclusividade no diagnóstico psicopatológico e de sua respectiva prescrição terapêutica, o “ato médico” também pode coibir a pesquisa da Psicologia nessa área. O “ato médico” confere à classe médica a “propriedade privada” das doenças enquanto objeto de estudo. Consequentemente, psicólogos que desejarem desenvolver experimentos comportamentais sobre a depressão, por exemplo, precisarão ser supervisionados por médicos.
O projeto de lei do “ato médico” foi distorcido em seus propósitos desde o início. A razão da regulamentação de uma profissão é estabelecer os limites da atuação daquele profissional. A intenção do “ato médico” nunca foi a de estabelecer limites à atuação dos médicos, já que os médicos podem fazer tudo! Desde o início, a intenção do “ato médico” foi estabelecer limites à atuação dos outros, à atuação dos demais profissionais de saúde, e aí se funda toda a sua má-fé.