quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Travessias: sobre "Orlando" e "Caminhos cruzados"

"Orlando: minha biografia política" e "Caminhos cruzados" são filmes muito diferentes entre si, com propostas narrativas e estéticas bem diversas. No entanto, estes dois filmes, lançados em julho nos cinemas brasileiros, têm um importante ponto em comum: suas narrativas estão povoadas de pessoas trans e não-binárias, justamente aquelas pessoas que Paul Preciado chamou de dissidentes do sistema sexo-gênero. Mas para além disso, os dois filmes compartilham de uma perspectiva se não positiva ao menos esperançosa com relação ao futuro. No maravilhoso "Orlando", escrito, dirigido e narrado pelo grande pensador e provocador Paul B. Preciado, vemos várias pessoas trans e não-binárias contando suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, interpretando Orlando, personagem do romance homônimo da escritora Virginia Wolf que Preciado toma aqui como um símbolo de todas as pessoas que não se enquadram no sistema cisheteronormativo. O filme vem sendo classificado como um documentário, mas esta não é uma classificação muito precisa - problema que acomete, aliás, boa parte das classificações. E isto porque Orlando tem elementos de documentário e elementos de ficção: se por um lado os "personagens" do filme contam histórias reais sobre si mesmos, por outro, todos interpretam Orlando e recitam trechos do romance de Wolf. Por vezes, como no filme "Jogo de cena", do Eduardo Coutinho, é difícil diferenciar realidade de ficção. E isto me parece intencional já que Preciado pretende com sua obra escrita e, agora também com este filme, questionar todas as "caixinhas" que inventamos e naturalizamos, sejam aquelas concebidas pelo sistema sexo-gênero sejam aquelas utilizadas para se classificar filmes e livros. "Caminhos cruzados", por outro lado, possui uma narrativa ficcional mais convencional e os questionamentos que ele traz e faz são de outra ordem. O filme do cineasta sueco Levan Akin - que foi premiado no último Festival de Berlim com o Teddy Award, dedicado a filmes com temática LGBTQIA+ - conta a história de Lia, uma professora de história aposentada, moradora de uma pequena vila na Geórgia, que após a morte da irmã - e atendendo ao último pedido dela - decide ir até Istambul junto com o jovem Achi para procurar Tekla, sua sobrinha trans que muitos anos antes foi expulsa de casa pelos pais e que, por conta disso, acabou tendo de se prostituir na Turquia, país que faz fronteira com a Geórgia. E nesta Torre de Babel de línguas e culturas que é (ou parece ser) Istambul, Lia e Achi tem os seus caminhos cruzados com o da advogada trans Evrim e com outras tantas pessoas trans que habitam e trabalham na cidade, grande parte no submundo da prostituição. Ainda que seja protagonizado por Lia, uma mulher cis, o filme demonstra grande sensibilidade e empatia por todas essas pessoas trans que (sobre)vivem às margens da cidade e que sofrem contínuas discriminações e violências por parte da conservadora e intolerante sociedade turca. "Caminhos cruzados", assim como "Orlando", tenta dar foco e voz para estas pessoas - com sucesso, eu diria. São dois filmes lindos, sensíveis e impactantes que merecem ser vistos. "Caminhos cruzados" deve ser incluído no catálogo da Mubi no próximo dia 30 de agosto. Já "Orlando" eu não consegui descobrir quando e em que plataforma de streaming ele estará disponível futuramente - muito embora ele já esteja há tempos disponível em plataformas "alternativas".

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