quinta-feira, 23 de abril de 2020

Será que um dia voltaremos ao normal?

A palavra "normal" tem sido amplamente utilizada nestes tempos de pandemia. Em uma rápida consulta ao Google Notícias é possível encontrar manchetes como "Médicos preveem que Brasil não volta ao 'normal' antes de agosto" ou "Escócia não 'volta ao normal' antes do ano que vem, diz primeira-ministra" ou ainda "Nada disso é 'normal': como a covid-19 escancara velhas anomalias do Brasil". Curiosamente, em todos estes casos, a palavra normal, talvez devido à sua imprecisão, foi utilizada entre aspas - o que é bastante "normal". De toda forma, a ideia (e o desejo) de uma "volta ao normal" tem sido verbalizada por muitas pessoas. Outras, incluindo muitos analistas sociais e cientistas, tem apontado para a impossibilidade deste "retorno ao normal" e para a emergência de um "novo normal". Esta expressão, não por acaso, foi utilizada em inúmeras reportagens publicadas nas últimas semanas, tais como, E se ficar em casa for o novo normal?, Qual será o novo normal do mundo após a pandemia do coronavírus? ou Um novo normal com a COVID-19: os próximos passos que nós precisaremos dar. A palavra "normal" também tem sido bastante utilizada em reportagens e textos sobre saúde mental no período da quarentena. Alguns exemplos: um psicólogo afirmou para uma reportagem que "a ansiedade é normal, o que não é normal é o pânico"; em uma rede social a cantora Iza escreveu: "Estamos vivendo um momento muito complicado e é normal se sentir numa montanha russa de sentimentos". E eu próprio, no post anterior, apontei que "é normal se sentir anormal em situações anormais". Mas, afinal de contas, o que é (e o que não é) normal?

Quem acompanha este blog sabe que se trata de uma questão extremamente difícil cuja resposta não é e provavelmente nunca será consensual - especialmente no campo da saúde mental, que até hoje não chegou a qualquer entendimento amplamente aceito nem do que é saúde, nem do que é mental, e muito menos do que é normal. Mas façamos um esforço para compreender o significado - ou, mais precisamente, os significados - atrelados a esta palavra. O dicionário Aurélio, por exemplo, define normal como aquilo "que é segundo a norma; habitual, natural". Já o Michaelis aponta que normal é aquilo "que é comum e que está presente na maioria dos casos; habitual, natural, usual" e também "tudo que é permitido e aceito socialmente". O dicionário ainda acrescenta: "diz-se de pessoa que não tem defeitos ou problemas físicos ou mentais". Só por estas definições já é possível perceber um duplo sentido da palavra normal - duplo sentido este analisado com precisão pelo filósofo e médico francês Georges Canguilhem em sua clássica obra O normal e o patológico, publicada em 1943. Um primeiro sentido é aquele que equivale normal a comum, habitual ou usual. Um comportamento normal, portanto, seria aquele praticado pela maioria da população. A homossexualidade, por exemplo, poderia ser vista (e o é por muitas pessoas, infelizmente) como uma orientação sexual "anormal", por ser "praticada" por uma minoria da população. O mesmo poderia ser dito de todos os comportamentos ou características minoritários, como por exemplo, ser canhoto, ruivo ou possuir alguma deficiência. Todos estes casos seriam (e frequentemente são ou já foram, no passado) tachados de "anormais" por se desviarem daquilo que é considerado comum.

Acontece que existe um segundo sentido para a palavra normal, que equivale normal a natural. Neste caso, normal não seria mais aquilo "que é" mas aquilo que "deve ser" - ou mais precisamente, aquilo "que é segundo a natureza". A ideia de "parto normal", por exemplo, está atrelada a este segundo sentido, pois diz respeito não ao tipo de parto que é mais comum (e o parto normal já não é o mais comum, ao menos no Brasil) mas ao tipo de parto visto e entendido como mais natural. Neste segundo sentido, a ideia de homossexualidade como algo anormal deixa de existir pois se trata, sem dúvida, de algo natural - ao menos de acordo com certas concepções de "natureza". Como bem afirma o historiador Yuval Noah Harari no livro Sapiens: uma breve história da humanidade, em uma perspectiva biológica, "não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros". Vemos, portanto, que a palavra "normal" traz em seu ventre dois sentidos completamente diferentes e antagônicos, que frequentemente entram em choque - afinal, nem tudo o que é "comum" é necessariamente "natural" e nem tudo o que é "natural" é necessariamente "comum". E para complicar ainda mais a situação, existem inúmeros e infindáveis desacordos relacionados aos conceitos de "comum" e "natural". 

Se a situação já é difícil em geral, na área de saúde mental então, a coisa fica bastante complicada. Quando um paciente me pergunta - ou pergunta a seu psicólogo - se tal comportamento ou sentimento que ele vivencia é ou não é normal (ou pior, se ele, como um todo, é uma pessoa normal), como poderíamos respondê-lo? A um paciente ansioso, por exemplo, é possível dizer que a ansiedade é um sentimento normal, haja vista ser bastante comum e disseminada na população e também, ao mesmo tempo, uma reação natural - ao menos em um sentido biológico ("se existe, é natural"). Por outro lado, o paciente não percebe tal sentimento como sendo normal e não quer se sentir dessa forma. Como agir, então? Não há certamente uma resposta muito precisa, haja vista a enorme e permanente incerteza que domina o campo da saúde mental quando se trata da demarcação entre saúde e doença ou entre normalidade e patologia. A questão de quando determinado comportamento ou sentimento deixa de ser normal e se torna patológico está longe, muito longe, de ser resolvida, seja na área da psicologia, seja na área da psiquiatria. Ao longo dos séculos e décadas, diversas propostas de se demarcar e diferenciar normalidade e patologia foram propostas e defendidas, nenhuma consensualmente aceita - os manuais da psiquiatria bem que tentam simular esse consenso, mas sempre foram e continuam sendo alvos de críticas e questionamentos extremamente pertinentes. Em minha prática clínica eu tento não me prender às categorias diagnósticas da psiquiatria e a outras demarcações supostamente objetivas entre a normalidade e a patologia. No meu entender a subjetividade é parte constitutiva dessa demarcação e não poderá jamais ser eliminada - e isto significa que o que é ou não é "normal" só pode ser avaliado pelo próprio paciente. É somente a própria pessoa, comparando os próprios comportamentos e sentimentos no presente e no passado, que pode definir se o que está vivenciando é ou não é normal ou saudável. Quanto à questão de ser ou não uma "pessoa normal" trata-se, no meu entendimento, de uma não-questão. Afinal de contas o que é ou seria uma "pessoa normal"?

Mas voltando ao ponto inicial, gostaria de refletir sobre a questão de ser ou não possível retornarmos a uma normalidade pré-pandemia ou, se, por outro lado, não há retorno e teremos inevitavelmente de lidar com o "novo normal"? Na verdade, prefiro reformular essa questão descartando a problemática e contraditória ideia de normalidade: será possível retornarmos à vida como ela era antes da pandemia ou viveremos uma nova vida daqui em diante? Na minha visão não há qualquer retorno possível - como, aliás, nunca houve. A vida nunca voltou e nunca voltará ao que já foi. A vida segue para frente, inevitavelmente. Como afirma Canguilhem, na já referida obra, "a vida não conhece reversibilidade". Quando, por exemplo, nos recuperamos de determinada doença, não voltamos ao estado anterior pois nos tornamos outros - assim como nossos corpos. Para Canguilhem não é possível falar em cura como um retorno à uma “inocência orgânica”, mas como um rearranjo. Curar, em sua visão, é criar para si novas normas e formas de vida, às vezes superiores às antigas. Da mesma forma, se desejamos "curar" o mundo e a nossa própria vida precisamos pensar em como reorganizá-los e não como fazê-los retornar ao que era antes. Como apontei em um outro post, não concordo em definitivo com certas visões conservadoras que desejam e pleiteiam um retorno a um passado idealizado - que nunca existiu. A história, como a vida, não volta nunca, mesmo quando parece voltar - como teria dito Mark Twain "a história não se repete, mas rima". Tudo isto significa que a vida anda, como sempre andou, para frente. O mundo não será o mesmo após a pandemia - assim como nós próprios - porque o mundo nunca permaneceu o mesmo. A transformação é uma das forças invariáveis da história. Como afirma Harari no livro Homo Deus, "as pessoas comumente têm medo da mudança porque temem o desconhecido. Mas a única grande constante da história é que tudo muda". Eu não tenho dúvidas de que, em algum momento - e provavelmente de forma gradual - a quarentena terá um fim, assim como o comércio reabrirá e as atividades profissionais e estudantis terão um recomeço (como já tem ocorrido em algumas cidades e países), mas isto não significa, de forma alguma, que as coisas voltarão ao "normal" no sentido de voltarem a ser como antes. E eu não digo isso apenas devido ao impacto social, econômico e também psicológico do período de pandemia e quarentena mas também, e especialmente, devido à impossibilidade de voltarmos ao passado. Não há volta agora porque nunca houve volta.
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