sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Com um buraco na cabeça: uma história ilustrada das trepanações

Foto minha de dois crânios trepanados, disponíveis no
Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, em Lima/Peru
Na visita que fiz ao Peru, em 2017, além de conhecer a magnífica "cidade perdida" de Machu Picchu, pude observar de perto, em excelentes museus de Lima e Cuzco, inúmeros crânios trepanados pelos Incas e por outros povos pré-colombianos que viveram na região. Caso você não saiba, a trepanação - ou craniotomia, na terminologia médica contemporânea - consiste na cirurgia de remoção de um pedaço do crânio. Trata-se do mais antigo procedimento cirúrgico conhecido, praticado em todas as partes do mundo ao longo da história, do período Neolítico até os dias atuais. O primeiro crânio "furado" foi encontrado pelo frade beneditino Bernard de Montfaucon (1655-1741) na região de Cocherel, na França, em 1685, mas este achado não foi entendido, naquele momento, como sendo um crânio trepanado. Outros crânios semelhantes foram encontrados nos séculos XVII e XVIII, mas os buracos foram interpretados como sendo o resultado da ação de armas, lesões acidentais ou alterações feitas após a morte, e não de um procedimento cirúrgico intencional feito com a pessoa viva - e provavelmente sem anestesia! O primeiro crânio a ser amplamente reconhecido como um caso de trepanação foi "descoberto" apenas em 1865 pelo arqueólogo e explorador norte-americano Ephraim George Squier (1821-1888). Durante uma visita à Cuzco - narrada em detalhes em seu livro Peru: incidentes de viagem e exploração na terra dos Incas, lançado em 1877 - Squier recebeu um presente inusitado de sua anfitriã local: um "belo" crânio trepanado, advindo de um cemitério Inca. Como ele descreve na página 456 deste livro, a "senhora Zentino", uma rica colecionadora de artes e antiguidades peruanas, "foi gentil o suficiente para me conceder [o crânio] para investigação e ele tem sido submetido à avaliação dos melhores cirurgiões dos Estados Unidos e da Europa e considerado por todos como a mais notável evidência de cirurgia entre aborígenes descoberta neste continente" - mais especificamente da cirurgia de trepanação, que, segundo ele "é um dos mais difíceis processos cirúrgicos". Ainda de acordo com Squier, tal procedimento não teria sido feito pelos Incas com uma serra, mas sim com algum dispositivo semelhante a um buril, que é um instrumento de metal pontiagudo utilizado para talhar pedras. Esta hipótese de Squier de fato foi confirmada: sabe-se atualmente que os Incas utilizavam certos instrumentos de metal, denominados "tumi", na realização das trepanações.

Instrumentos utilizados pelos Incas nas trepanações
Fonte: artigo Preconquest Peruvian Neurosurgeons
Após regressar desta viagem, Squier teve sua "descoberta" apresentada aos membros da Academia de Medicina de Nova York e a plateia, de uma forma geral, se mostrou extremamente incrédula com relação às hipóteses de que a cirurgia teria sido feita com a pessoa viva e de que esta pessoa teria sobrevivido ao procedimento - afinal, se no próprio século XIX a trepanação ainda tinha uma baixíssima taxa de sobrevida (cerca de 10%), como acreditar que os "primitivos" Incas, há mais de 2000 anos, conseguiriam realizá-la de forma bem-sucedida? Para resolver este impasse, Squier levou o famoso crânio até a França para que ele pudesse ser analisado por Paul Broca (1824-1880), um dos mais célebres antropólogos e craniologistas do século XIX - e que também foi responsável pela descoberta de uma área do cérebro especificamente relacionada à linguagem, atualmente chamada de Área de Broca. Após uma análise minuciosa, concretizada com a publicação do artigo Trépanation chez les Incas [Trepanação nos Incas], Broca concluiu que o "buraco" encontrado no crânio repassado a ele por Squier teria sido o resultado de uma "avançada cirurgia", realizada com a pessoa ainda viva - e que provavelmente esta pessoa teria falecido uma ou duas semanas após tal procedimento, como indicariam certos sinais de inflamação encontrados por ele (de acordo com um estudo recente este provavelmente foi o destino de 30 a 50% dos Incas submetidos à trepanação, um índice de mortalidade surpreendentemente baixo, haja vista a complexidade e os riscos envolvidos no procedimento). Além disso, Broca especulou a respeito do motivo ou dos motivos para a realização das trepanações. Inicialmente ele imaginou que este procedimento estaria relacionado a rituais religiosos de expulsão de demônios do corpo, mas posteriormente passou a aventar a possibilidade de alguns usos terapêuticos. A grande questão é que qualquer especulação com relação aos motivos para a realização de trepanações em comunidades antigas e ágrafas, caso dos Incas, será exatamente isso: uma especulação. Uma investigação dos motivos para a trepanação só pode ser feita, basicamente, de duas formas: através da análise histórica de comunidades ou sociedades com tradição escrita que realizavam o procedimento - caso, por exemplo, da Grécia Antiga, onde os médicos hipocráticos praticavam a trepanação para tratar ferimentos e lesões na cabeça; e também através da análise antropológica de comunidades que praticam ou já praticaram tal procedimento - caso, por exemplo, de algumas comunidades no Pacífico Sul, que ainda hoje realizam trepanações com o objetivo de tratar desde fraturas, epilepsias e dores de cabeça até a "loucura". Pode ser que as comunidades antigas, não somente as pré-colombianas, tenham feito trepanações por estes ou por outros motivos.  Jamais saberemos de fato. Por outro lado, o que já se sabe com grande confiança é que as trepanações foram realizadas ao longo de toda a história da humanidade, seja em rituais religiosos seja no tratamento de doenças neurológicas ou transtornos mentais - e até hoje continuam sendo praticadas. Os métodos certamente mudaram; em comum permanece apenas a intenção de fazer um buraco na cabeça.

Veja abaixo a galeria de imagens sobre as trepanações.

Livro clássico de Squier, publicado em 1877, sobre a viagem que fez ao Peru na década de 1860. Na página 457 ele expõe a famosa ilustração do crânio trepanado a ele doado pela senhora Zentino, e faz ainda algumas breves considerações sobre a descoberta.  Fonte: Arquive.org





Famosa ilustração do crânio trapanado "descoberto" por Squier no Peru em 1865 - na verdade, ele foi presenteado com esta descoberta. Fonte: Archive.org
Instrumentos de trepanação utilizados no século XVII. Esta ilustração está incluída na obra The surgeons mate, or Military and domestique surgery, escrita pelo cirurgião militar inglês John Woodal (1570-1643) e publicada em 1639. Fonte: Wikipedia
Quadro "A extração da pedra da loucura", do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). A pintura representa uma cirurgia realizada durante a Idade Média que consistia na retirada de uma pedra que acreditava-se causar a loucura. Fonte: Museu do Prado
Instrumento de trepanação utilizado durante o período do Renascimento (séculos XIV a XVI). Gravura de Peter Treveris (1525). Fonte: Wikipedia
Instrumentos de trepanação utilizados no século XVIII. Disponível no Germanisches Nationalmuseum Nürnberg. Fonte: Wikipedia
Ilustração de uma cirurgia de trepanação feita no século XIX. A autoria é do cirurgião, anatomista e neurologista Charles Bell (1774-1842) . Fonte: Wikipedia

O maior defensor contemporâneo do uso terapêutico e espiritual da trepanação foi um livreiro holandês chamado Bart Huges, falecido em 2004, que fazia alegações pseudocientificas de que o procedimento poderia ser utilizado para se atingir um nível mais elevado de consciência além de tratar uma série de problemas mentais, como as psicoses. No ano de 1965 ele fez uma célebre auto-trepanação utilizando uma furadeira elétrica, procedimento retratado nesta foto. Se tiver coragem, assista ao video de sua auto-trepanação aqui. Fonte da imagem: Imgur
"Vote Feilding - Trepanação para a saúde nacional": Cartaz utilizado por Amanda Feilding em suas campanhas para o Parlamento inglês em 1979 e 1983. Amanda, que é diretora da Fundação Beckley, defende publicamente, há décadas, a realização de trepanações como forma de aumentar o bem-estar e a saúde das pessoas - ela própria se auto-trepanou na década de 1960. Leia uma entrevista com Amanda no site Vice.

Ilustração do procedimento da craniotomia, versão contemporânea das antigas trepanações. Esta cirurgia é realizada por neurocirurgiões em casos de aneurisma, tumores, hematomas cerebrais e fraturas no crânio. Como aponta este site, "um dos principais objetivos da craniotomia é aliviar o cérebro, quando submetido à pressão elevada". Atualmente, o pedaço de crânio retirado é geralmente substituído por uma placa de titânio. Fonte: Steve Hughes Visuals

Dois importantes livros sobre a história das trepanações. Ambos possuem na capa a famosa imagem de Squier.
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